A população trans da Venezuela está mais perto de conquistar o direito à mudança de nome no registro civil. Após protestos, movimentos LGBTQIA+ conseguiram, com o apoio de deputados governistas, iniciar na última semana reuniões com os órgãos competentes para avançar na criação de um protocolo voltado para as solicitações das pessoas trans venezuelanas.
A reivindicação dos ativistas é que as autoridades cumpram o artigo 146 da lei de Registro Civil do país, que prevê que qualquer pessoa que se sinta lesada pelo próprio nome ou quando este não corresponda a seu gênero possa solicitar a mudança.
A lei está vigente desde 2009, mas segundo os movimentos as solicitações feitas por pessoas trans através da norma não são atendidas por transfobia dos agentes responsáveis.
A advogada e ativista trans venezuelana Richelle Briceño é uma das lideranças que agora participa das negociações com o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) e o Serviço de Identificação e Migração (SAIME), os órgãos responsáveis pelos registros civis na Venezuela. Ao Brasil de Fato, ela afirma que as exigências dos movimentos são o cumprimento da lei e a definição de protocolos específicos para a população trans.
“Nas reuniões que estamos realizando entre os movimentos, a Assembleia Nacional e os órgãos competentes estamos esperando definir quais sedes do CNE terão capacidade de receber as solicitações de mudança de nome, quais serão os prazos estabelecidos para esse procedimento e quais serão os requisitos exigidos pelos órgãos”, diz.
Segundo Briceño, há uma lista de 263 pessoas trans que já manifestaram junto aos movimentos LGBTQIA+ do país o desejo de mudar de nome, mas que para as primeiras negociações os ativistas apresentarão a solicitação de 10 pessoas e esperam que esse grupo inaugure o procedimento para a população.
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Pessoas trans são aquelas que não se identificam com o sexo que lhes foi atribuído no nascimento. Até 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) considerava a transsexualidade como uma "doença mental". Naquele ano, o órgão alterou o termo na Classificação Internacional de Doenças (CID) passando-o para a categoria de "saúde sexual", medida considerada um avanço por movimentos LGBTQIA+ e em defesa dos direitos humanos.
A prática da mudança de nome é encarada pelos movimentos como o direito das pessoas trans serem tratadas de acordo com o gênero com o qual se identificam, de maneira que não fira a dignidade humana. Na região, a Argentina foi o primeiro país a autorizar a mudança de nome e de gênero no registro civil, com a aprovação de uma lei em 2012. Equador, Uruguai, Bolívia, Peru e Colômbia possuem legislações semelhantes.
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou em 2018 que pessoas trans possam alterar o nome e o gênero no registro civil sem que se submetam à cirurgia de redefinição sexual ou tenham que entrar com ação judicial.
Briceño argumenta que, na Venezuela, o dispositivo previsto na lei de Registro Civil já deveria bastar para garantir ao menos a mudança de nome, mas o mecanismo não é cumprido. “Já temos 13 anos dessa lei e nossa mobilização é para que esse artigo seja respeitado”, diz.
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A advogada afirma que ainda há outras exigências por parte dos movimentos para promover os direitos da população trans na Venezuela, pois “a mudança de nome não é suficiente para reconhecer todo o compêndio da identidade”.
“A identidade comporta os nomes, os sobrenomes, mas também o gênero com o qual a pessoa se identifica e o gênero com o qual ela vive. Resgatar o direito à mudança de nome não significa garantir totalmente a identidade das pessoas trans na Venezuela, ainda falta avançar em direção a uma lei de identidade de gênero, uma lei especial que realmente permita reconhecer a identidade das pessoas trans como um direito humano”, afirma.
Sobre os protocolos a serem debatidos com o CNE e o SAIME, Briceño diz esperar que os órgãos não cogitem criar requisitos retrógrados que envolvam informes médicos e que se crie um procedimento rápido e acessível para a população.
“Espero que não se patologize a identidade das pessoas trans pedindo informes psiquiátricos ou informes médicos que pedem 2 anos de tratamento hormonal ou cirurgia. Nesse momento é importante colocar nossa confiança nos deputados da Assembleia Nacional que estão levando adiante esse processo para que o direito finalmente seja cumprido pelo CNE”, diz. O CNE e o SAIME foram procurados pela reportagem, mas não responderam até o fechamento desta matéria.
‘Somos revolucionários, temos que fazer as mudanças’
Apesar das negociações para a conquista do direito à mudança de nome das pessoas trans, os movimentos LGBTQIA+ prometem permanecer mobilizados para reivindicar o avanço de outras pautas como o reconhecimento de famílias homoparentais e a aprovação do matrimônio igualitário, cujo projeto de lei está paralisado no Legislativo desde 2014.
Ao Brasil de Fato, o ativista Leandro Villoria afirma que a Constituição aprovada em 1999, por iniciativa do governo do ex-presidente Hugo Chávez, trouxe avanços importantes para o combate à discriminação e para a promoção do respeito à diversidade. Entretanto, ele explica que a população LGBTQIA+ possui demandas específicas que precisam da atenção devida das autoridades e acredita que há espaço na sociedade para debater e avançar.
“Essa geração é a geração menos homofóbica, menos conservadora e nada indica que isso vai retroceder. A sociedade venezuelana, na verdade, está esperando a resolução de todas essas reivindicações”, diz.
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Além disso, o ativista afirma que o conservadorismo existente em alguns setores sociais e políticos não pode servir como justificativa para interromper os debates, pois a decisão “deve partir dos nossos tomadores de decisões”.
“Nós não somos mais machistas que os mexicanos, nós não somos mais católicos do que a Itália, não somos mais conservadores que a Colômbia, que nunca havia tido um governo de esquerda. Então do que estamos falando? Não é um problema para a população venezuelana, é um problema dos tomadores de decisão. Nós consideramos que somos uma sociedade revolucionária, então devemos fazer as mudanças que devem ser feitas”, diz.
Edição: Arturo Hartmann