Reestruturação de questões agrárias também foi foco dos debates do movimento agroecológico
*Por Rafael Oliveira
A poucas semanas de iniciar oficialmente, em 1º de janeiro de 2023, o terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vai tomando forma. Alguns ministérios já tiveram seus ministros e ministra anunciados pelo presidente eleito, como Fernando Haddad (PT), para assumir a Fazenda, Flávio Dino (PSB), na Justiça e Segurança Pública, e a cantora Margareth Menezes para a Cultura.
A construção do novo governo também envolveu uma equipe de transição, que foi composta por 50 pessoas remuneradas e um grupo de voluntárias e voluntários para compor os diferentes grupos de trabalho - com cerca de 290 integrantes no total. O objetivo dessa equipe foi de fazer um diagnóstico da situação deixada pelo governo de Jair Bolsonaro (PL) - a partir de informações públicas e sigilosas - e indicar caminhos possíveis de reconstrução a curto e médio prazos.
A equipe de transição contou com a participação não somente de pessoas que ocupam cargos em órgãos públicos ou indicadas por partidos políticos, mas também de representantes da sociedade civil organizada. Desde as primeiras semanas de novembro, integrantes do movimento agroecológico se dedicaram à discussão e construção de propostas que beneficiem toda a sociedade a partir da implementação de políticas públicas que apoiem a agricultura familiar camponesa, os povos indígenas e as comunidades tradicionais.
Segundo representantes do campo agroecológico ouvidas pela reportagem, não há como saber o que se dará concretamente a partir do ano que vem, mas a participação de organizações e movimentos sociais e populares nesse processo de transição foi um passo determinante para a recuperação de espaços de discussão entre Estado e sociedade.
"Sem dúvidas, uma das maiores conquistas desse processo é fazer uma transição com participação popular, com participação social. Isso é um grande diferencial, que desde a transição os movimentos sociais sejam ouvidos", avalia Sarah Luiza Moreira, representante da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e integrante voluntária do grupo de trabalho de Desenvolvimento Agrário da equipe de transição.
Para Maria Emília Pacheco, assessora da ONG FASE e voluntária na equipe técnica sobre Desenvolvimento Social e Combate à Fome, o debate sobre participação social "é crucial porque nós estamos saindo de um período em que se pretendeu impor o silenciamento da sociedade civil nos espaços institucionais, mas esse silenciamento não ocorreu na vida autônoma da sociedade. Então, é importantíssimo dizer isso: a sociedade continua ativa, criou inovações".
"Eu fico muito motivada e emocionada pela capacidade das articulações da sociedade de se movimentarem nesse momento. E a iniciativa da transição de construir esses grupos de trabalho foi muito importante, porque eles mobilizam quem está oficialmente nos grupos técnicos, mas há muito mais gente na retaguarda nessa dinâmica. Isso é algo que precisa ser reconhecido nessa história de um novo amanhã", complementa Maria Emília, que também integra os núcleos executivos da ANA e do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN).
Agroecologia em pauta
No fim de novembro, os diversos grupos de trabalho entregaram os primeiros relatórios à coordenação do grupo de transição, que está a cargo do vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin (PSB), com apoio da deputada federal Gleisi Hoffmann (PT) e do ex-ministro Aloízio Mercadante (PT).
Dentre as principais propostas apontadas pelo grupo de trabalho de Desenvolvimento Agrário, cujo relatório final foi entregue à coordenação no último dia 11, está a criação do Ministério da Agricultura Familiar e Alimento Saudável, uma pasta que superaria o extinto Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). "Nós sugerimos uma estrutura de ministério onde as questões da agroecologia, das mulheres, dos povos e comunidades tradicionais tivessem prioridade. É um ministério que vem junto com outras políticas de combate à fome e que vem fortalecer a produção de alimentos", afirma Beth Cardoso, coordenadora executiva do Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA-ZM) e integrante da coordenação do GT de Mulheres da ANA. "A gente entende que o governo precisa apoiar aquelas pessoas que querem produzir alimento saudável. É uma questão de saúde pública também", complementa.
A perspectiva agroecológica foi tema comum nos grupos de trabalho de Desenvolvimento Agrário e de Desenvolvimento Social e Combate à Fome. De acordo com Sarah Luiza Moreira, o diálogo interdisciplinar é fundamental para a construção de políticas que contribuam com um dos principais objetivos do novo governo, que é de retirar o Brasil do Mapa da Fome. "Para a agroecologia, é muito importante ter esse olhar sistêmico. Nós temos afirmado que a agroecologia não pode ser pensada como uma pasta, como um tema, mas precisa ser um olhar orientador de todas as políticas de desenvolvimento agrário, da terra, do território, da produção de alimentos, do abastecimento".
Nesse sentido, Maria Emília destaca que o grupo de trabalho de Desenvolvimento Social e Combate à Fome apontou diversas propostas relativas à produção em base agroecológica, à questão alimentar e nutricional e que convergem de forma profunda com o que está em debate no Desenvolvimento Agrário. "Nós não podemos ficar reduzidos a uma proposta de crédito. É preciso que haja propostas 'desbancarizadas', como é o caso do fomento, do PAA [Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar] e do PNAE [Programa Nacional de Alimentação Escolar], e isso atravessa uma perspectiva dos dois grupos de trabalho. Também quando falamos da erradicação da fome, é preciso dizer que nós estamos salientando que é preciso que a população brasileira tenha alimentação, mas uma alimentação saudável", pontua.
Confiantes, mas alertas
O sentimento de satisfação pela retomada de espaços nas discussões entre governo e sociedade civil é unânime entre as entrevistadas para esta reportagem. No entanto, é também consenso a necessidade de manter a mobilização social para garantir a implementação das pautas populares. "Como perspectivas, é possível dizer que segue o desafio de contribuir, de pautar o governo com as demandas do movimento agroecológico, do movimento feminista, do movimento ambiental. Mas, também fortalecer nossa atuação como movimento para pressionar que essas pautas, frente a esse governo tão amplo de coalizões, consigam incluir o povo", aponta Sarah Luiza Moreira.
Maria Emília Pacheco reforça a necessidade da sociedade manter-se mobilizada e atenta às demandas populares. "Nós debatemos e queremos a participação e controle social no plano institucional, mas também nos resguardamos a essa importância que é manter autonomamente as organizações, os movimentos sociais, redes e articulações. Acima de tudo, entendemos que sem mobilização social, sem a presença ativa da sociedade com suas várias organizações, será muito difícil alcançarmos novas conquistas", finaliza.
*Rafael Oliveira é comunicador popular da Articulação Nacional de Agroecologia.
** As opiniões expressas nesse texto não representam necessariamente a posição do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo