Não é de hoje que parte da mídia e figuras públicas passaram a chamar a PEC da Transição, proposta do governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT), de PEC da Gastança ou PEC Kamikaze. Desde então, recebem críticas pelo uso dos termos que reduzem a PEC da Transição a uma suposta "gastança desenfreada".
João Feres Júnior, cientista político do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e coordenador Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública (LEMEP), associa a utilização dos termos como "PEC da Gastança" à ausência de pluralidade no jornalismo brasileiro.
Os jornais de maior circulação e audiência "continuam ainda de um lado só e não abrem o espaço da imprensa para outras versões e para pessoas que pensam de maneira diferente, ainda que haja de fato entre os economistas muitos que pensam de maneira diferente".
"Os grandes meios de comunicação só ouvem pessoas que defendem o ponto de vista fiscalista. Cadê os economistas que cuidam da verdade da política econômica, da administração pública? Cadê os economistas keynesianos e neokeynesianos que não pensam nessa maneira de fiscalista? Cadê uma grande mídia que defende outro ponto de vista? Não temos. Isso distorce demais o debate", questiona o professor.
Em suas palavras, esse cenário "diz muito mais sobre as pessoas que empregam esse termo do que sobre a PEC da Transição. Diz que infelizmente a grande imprensa brasileira ainda continua na defesa da restrição do gasto público, o que numa situação em que a gente se encontra no Brasil, é mortal, porque a gente tem um desemprego altíssimo, gente passando fome, ou seja, tem que gastar mais dinheiro, tem que tirar as pessoas da miséria. Acho que os jornais não veem isso", afirma Feres.
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O professor Rodrigo Rodriguez, do Departamento de Evolução Econômica da UERJ, afirma que associar a PEC a uma “gastança” é um equívoco, já que o projeto não busca viabilizar excessos, mas garantir o "mínimo essencial", como o próprio ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), escreveu ao retirar o Auxilio Brasil do Teto de Gastos.
"O próprio uso do termo PEC da Gastança não faz sentido na medida em que [a PEC] vai viabilizar o que a gente tem de mais elementar em política social no Brasil. A gente não está nem falando de excesso. É uma questão de urgência. O mínimo que a gente espera de um governo é que ele chegue com as condições adequadas para viabilizar o seu projeto. E acho que é esse o grande ponto que o mercado está fazendo oposição."
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O relator-geral do Orçamento de 2023, o senador Marcelo Castro (MDB-PI), afirmou recentemente que a PEC "não é cheque em branco, não é farra da gastança. São ações que sem as quais o País não funciona".
O parlamentar afirmou que o orçamento enviado por Jair Bolsonaro (PL) é "absolutamente inexequível". "Estou preso com relação ao Orçamento da União porque fico na dependência da PEC."
Castro explicou que a expansão fiscal pode chegar a R$ 150 bilhões, com base na lógica de 19% do Produto Interno Bruto (PIB) destinado às despesas orçamentárias. "Se nós colocarmos os mesmos 19% para o PIB 2023 evidentemente não haveria motivo para o mercado estranhar tanto. E esses 19% corresponderiam a R$ 136 bilhões. Alguns assessores fazem cálculos usando os 19% que chegariam a R$ 150 bilhões. A equipe de transição propõe R$ 175 bilhões. Então, não são números tão díspares, tão distantes que se possa ter um impacto no mercado diferente do que já tem hoje", afirmou.
Repercussão nas redes
Nas redes sociais, as críticas se avolumaram. "Essa história de PEC da Gastança reflete bem o quão tosco é o debate econômico no jornalismo brasileiro. Nenhuma saudade do tempo em que eu tentei, em vão, dar o mínimo de racionalidade ao debate sobre o teto de gastos nas páginas da Folha em 2016", afirmou a economia Laura Carvalho que já escreveu para o jornal Folha de São Paulo.
Na mesma linha, a filósofa Márcia Tiburi criticou o termo em suas redes. "A imprensa golpista chama a PEC da transição de PEC da Gastança. Comida para gente que não tem o que comer é direito humano fundamental, mas os neoliberais e sua corja são a favor da fome e a miséria do povo brasileiro."
As críticas também compararam os termos utilizados pela imprensa para se referir à PEC do governo de Jair Bolsonaro que buscou furar o Teto de Gastos em plena campanha eleitoral aos termos utilizados para a PEC da Transição.
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"Bolsonaro furou o teto de gastos para tentar reeleição e a Folha chamou de 'pacote de bondades'. Agora está chamando a PEC da Transição, que garante o Bolsa Família e o reajuste do salário mínimo no próximo governo de 'PEC da gastança'. Dá pra acreditar?", publicou a vereadora de São Paulo Luana Alves (PSOL).
Até mesmo a página "Choquei" no Twitter, conhecida originalmente por publicar notícias sobre famosos, entrou nas críticas. "A PEC visa garantir o Bolsa Família em R$ 600 reais, recursos pro Vale Gás e a recomposição da Farmácia Popular. O termo 'gastar' não deveria nem sequer ser usado nessa matéria. Isso se chama investimento. Ajudar o povo pobre. Mas vocês só estão preocupados com a Faria Lima", publicou o perfil.
Edição: Nicolau Soares