Depois de dezenas de e-mails, telefonemas inconclusivos com atendentes de telemarketing e idas inúteis aos polos presenciais de atendimento em São Paulo, graduados do Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU) descrevem sentir "desespero". Histórico escolar, disciplinas cursadas e, principalmente, o diploma são alguns dos documentos pelos quais estudantes estão batalhando – sem sucesso.
Ao menos 28 formados em cursos por Ensino à Distância (EAD) confirmaram não ter recebido nem o diploma e nem uma resposta da instituição de ensino superior (IES) privada a respeito do problema, que afirmam ser generalizado. A desconfiança de alunas ouvidas pelo Brasil de Fato é que os dados tenham sido perdidos. A situação se arrasta ao menos desde fevereiro de 2022. Nesse ínterim, se acumulam vagas de emprego, de concurso e de pós-graduação perdidas.
O deputado estadual de São Paulo Carlos Giannazi (PSOL) enviou representações ao Ministério Público Estadual, ao Procon (órgão de proteção e defesa do consumidor) e à Defensoria Pública, mas até o momento nenhuma providência foi tomada.
O Ministério Público Federal (MPF) também foi acionado, "por se tratar de reiterada conduta da IES na falha da prestação de serviços educacionais", argumentou o deputado, "indicando que possa existir uma omissão na fiscalização dessa instituição pelo Ministério da Educação".
A FMU, que possui cerca de 30 mil alunos, foi procurada insistentemente pelo Brasil de Fato ao longo de 12 dias. Se limitou a informar, no entanto, que busca "aperfeiçoar e melhorar a experiência dos nossos alunos" e que a instituição "preza pelo atendimento".
A reportagem também entrou em contato, por e-mail e três chamadas telefônicas em dias diferentes, com o Ministério da Educação (MEC), que optou por não se pronunciar.
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"Nos sentimos humilhados"
Elaine Costa da Silva já não sabe mais o que fazer. Entrou no curso de pedagogia na FMU em 2018, como bolsista do Prouni na modalidade EAD. "Durante a graduação enfrentamos muitos problemas com falta de suporte, falta de professor para tirar dúvidas, erros no lançamento de notas", descreve.
"Acreditei que meu pesadelo chegaria ao fim quando concluí o curso em julho deste ano, mas a saga estava só começando. Foi quando descobri que alunos formados em 2020 e 2021 não haviam pego o diploma ainda" conta Elaine.
Desde que perdeu seu emprego em abril, Elaine vive de bicos e viu escorrer pelas mãos duas possibilidades de trabalho, o plano que tinha de prestar concurso para professora da prefeitura em 2023 e o ingresso numa pós-graduação. "Perdi a conta de quantas vezes mandei e-mails, estive na faculdade, fiz carta ao reitor [Arthur Sperandéo de Macedo], reclamei na ouvidoria", expõe, ao relatar que vem tendo crises de ansiedade.
"Tem pessoas na minha turma que passaram dificuldades até com falta de alimentação em casa para pagar a faculdade", se indigna Elaine. "Nos sentimos humilhados, é um descaso sem tamanho", completa.
Inversão: aluno tem que provar que estudou
Somada à resposta de "sem previsão de entrega", a FMU passou a exigir que estudantes reapresentem documentos. No caso de Elaine, pediram que ela mostrasse, como já fez no ato da matrícula, seu diploma de ensino médio. Ela o fez. A faculdade, então, afirmou que o documento não valia.
Como a escola que frequentou quando adolescente já não existe mais, Elaine teve de ir até a Secretaria de Ensino da cidade de Itapevi para conseguir um documento que provasse, uma vez mais, que ela concluiu o ensino médio. Mesmo assim, o diploma universitário não vem.
Para Victor Guerreiro, assessor do mandato de Giannazi que vem coletando as denúncias, fica evidente que funcionários da FMU "estão orientados a protelar o máximo que puderem. Chegam a pedir o mesmo documento que a pessoa já enviou na própria conversa de e-mail", afirma.
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Integrante da Rede de Educadores do Ensino Superior em Luta, Gabriel Teixeira define a situação como uma "inversão de mérito". "Se tiverem perdido os dados, o aluno vai ter que refazer a disciplina que já fez, que já pagou? É o estudante que vai ter que comprovar o que fez, quanto tirou?", questiona.
Foi exatamente o que aconteceu com Adriana Santos, que também concluiu a graduação em pedagogia no primeiro semestre de 2022 e está até agora sem diploma. Em fevereiro deste ano, houve uma migração da plataforma da FMU. Depois disso, seu histórico de disciplinas passou a constar errado no site.
A atendente da FMU, conta Adriana, "afirmou que eles não tinham acesso à antiga plataforma e que se eu tivesse como provar que fiz as disciplinas, eles levariam meu caso ao setor para fazer as devidas correções".
Já Thamara de Amorim Lima, moradora da periferia da zona sul de São Paulo prestes a completar um ano de formada, não consegue nem mesmo acessar o portal da FMU, quanto mais o diploma. É como se nunca tivesse estudado lá. "Preciso de ajuda", escreveu Thamara em letras maiúsculas em reclamação ao Procon.
Conglomerados empresariais de ensino
A FMU, junto com outras dezenas de universidades do país que somavam 260 mil estudantes, pertenceu até novembro de 2020 à Laureate, uma gigante da educação superior privada. Depois de denúncias de fraudes para o reconhecimento de cursos no MEC, a empresa transnacional de origem estadunidense se retirou do Brasil. Vendeu suas instituições para o grupo Ânima por R$ 4,4 bilhões. A única que ficou de fora da transação foi a FMU, que passou para o controle do fundo de investimentos Farallon.
Gabriel Teixeira foi professor na Universidade Anhembi Morumbi quando ela era ainda pertencente à Laureate e foi um dos que, junto com Victor Guerreiro, trouxe à tona denúncias envolvendo o grupo educacional. Entre elas, documentos forjados entregues ao MEC e o uso de robôs no lugar de docentes, sem que alunos soubessem.
Acompanhando de perto a situação da FMU há cerca de quatro anos, Victor avalia que há "uma decadência franca da faculdade, chegando ao cúmulo dessa situação para a qual a gente prevê que eles não tenham solução".
Educação na prateleira
Para Catarina de Almeida Santos, professora da Universidade de Brasília (UnB) e integrante da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a situação é sintomática de um problema profundo, impulsionado pela concentração da educação em grandes conglomerados empresariais.
"Esse processo vem ao menos desde meados da década de 1990, quando a educação superior entrou no campo dos serviços pela Organização Mundial do Comércio (OMC) e no mercado de ações", contextualiza Catarina. Assim, a qualidade da formação profissional paulatinamente perde espaço para a lógica do lucro.
"O conjunto de dispositivos legais emitidos pelo governo federal, sobretudo a partir de 2014, facilita o credenciamento e a continuidade da oferta desses grupos empresariais nestes moldes, principalmente em relação à expansão do ensino à distância", ressalta a professora.
EAD: massificação da oferta sem compromisso com qualidade
A preocupação com que Catarina Santos observa o crescimento da graduação online não está relacionada com a tecnologia em si. "Mas no contexto em que ela se insere", explica, "o EAD favorece a precarização do ensino".
Entre 2019 (ano que precedeu a crise sanitária de covid-19) e 2021, o número de matriculados em graduações presenciais no Brasil caiu 28%. Os dados divulgados pelo Inep em novembro deste ano mostram ainda que em 2021, de cada 10 ingressantes no ensino superior, seis entraram em cursos à distância. A modalidade cresceu 474% em uma década.
"Na pandemia, as instituições – ou as empresas, porque elas têm muito mais características de empresa do que de instituição educativa – demitiram professores e começaram a colocar muito mais alunos por disciplina, às vezes com docentes em áreas que nem eram as suas", afirma Catarina.
Atos organizados pelos estudantes denunciam situação da educação pública e das universidades federais durante o governo Bolsonaro / Júlia Vasconcelos/Brasil de Fato PE
Para ela, isso só é possível por falta de regulação estatal. "A flexibilização para credenciamento e reconhecimento de curso tornou esse processo completamente banalizado. A educação à distância vem na esteira disso", avalia. "Não precisa comprovar que tem infraestrutura física, professores, bibliotecas", exemplifica, "e aí vemos essas instituições oferecendo vagas à distância em uma quantidade absurda".
Desdobramentos para a sociedade
Os impactos da mercantilização da educação, que tem como a ponta do iceberg situações como as vividas por Elaine, Adriana e Thamara, extrapolam a vida de cada uma delas. Na visão de Catarina, os desdobramentos atingem toda a sociedade.
"Esse ignorar a situação dos estudantes, a massificação sem a qualidade, a plataformização, a precarização dos professores, a falta de interações face a face, a ausência de espaço para a criatividade e criticidade… o que está por trás disso?", elenca a professora da UnB. "No fundo, a gente está construindo a manutenção de uma sociedade desigual – em todos os sentidos", resume.
"Aí a gente se surpreende quando vê profissionais da ciência negando a ciência, a eleição polarizada que teve, os ataques às escolas, o crescimento de grupos nazifascistas", critica Catarina. "Ou a gente radicaliza, na lógica de ir à raiz, e entende que a educação é para formar gente, ou o desencadeamento vai ser exatamente esse."