Há resistências no Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) e no Superior Tribunal de Justiça (STJ) à possível federalização das investigações acerca do assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes, em março de 2018. A possibilidade foi anunciada pelo novo ministro da Justiça Flávio Dino, durante a sua cerimônia de posse.
Na ocasião, o ex-governador do Maranhão disse primeiramente que não medirá esforços para que a Polícia Federal (PF) dê auxílio para a Polícia Civil do Rio de Janeiro, responsável pela investigação, a partir de um diálogo. Posteriormente, será avaliado se é o caso de federalização devido à “dimensão sistêmica” do caso. Dino afirmou que solucionar o caso é uma “questão de honra” para o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
A família Marielle já foi contra a federalização por entender que sob o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) não haveria comprometimento com as investigações, uma vez que Bolsonaro já demonstrou falta de interesse no caso e até mesmo descaso em diversos momentos. "Ninguém conhecia a Marielle até o dia em que ela foi, lamentavelmente, assassinada. Ninguém conhecia, ninguém se lembrava dela", disse Bolsonaro em junho do ano passado.
Hoje, a viúva de Marielle Franco, a vereadora do Rio de Janeiro Monica Benicio (PSOL), considera que o contexto é diferente e comemora a possibilidade de federalizar o caso. “Tanto eu quanto a outra parte da família da Marielle e a família do Anderson montamos o comitê de justiça por Marielle e Anderson e fizemos uma campanha pela não federalização, entendendo que o governo Bolsonaro não tinha comprometimento com a elucidação desse caso”, afirmou Benicio ao Brasil de Fato.
“Quando a gente tem um chefe de Estado que, diante de um crime como este, não se pronuncia publicamente, por si só é uma sinalização muito ruim, além de Marielle representar a oposição à política bolsonarista.”
Por outro lado, ela afirma que o governo de Cláudio Castro (PL) no Rio de Janeiro “não inspira confiança”. “É um governo que quase cinco anos depois não demonstra avanços, não chama a família para dialogar, não demonstra publicamente interesse na ilustração desse caso”, afirma.
“A gente sabe dos problemas que existem em uma parte da polícia do Rio de Janeiro. Sabemos que uma parte da polícia está envolvida em esquemas de corrupção, o que nos deixa apreensivos e receosos de quais são os rumos. Tivemos diversas trocas de delegados nesses anos e promotoras se retirando do caso de forma voluntária por possíveis interferências externas no caso”, relembra Benicio.
Posições contrárias e a favor
Ainda que a federalização seja apenas uma possibilidade por enquanto, o MP-RJ já afirmou que deslocar as investigações para a Polícia Federal “não afastará a dificuldade e a complexidade do caso". Segundo o órgão, isso poderia levar a prejuízos tanto ao trabalho já realizado quanto ao "julgamento dos executores já identificados no júri que se avizinha, que necessita de promotores de Justiça que conheçam profundamente as provas produzidas em milhares de páginas e milhões de terabytes produzidos pelas quebras realizadas", de acordo com nota do MP enviada ao UOL.
Na mesma linha, um dos ministros da Terceira Seção do STJ, que em maio de 2020 negou o pedido de federalização feito pela então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, afirmou a O Globo que deslocar o caso é “muito difícil”. Outro, sem se identificar, ainda destacou que “a matéria já foi apreciada” e que por isso “novos e consistentes fundamentos” para a federalização devem ser apresentados.
Na época em que o pedido foi negado no STJ, a relatora do processo, a ministra Laurita Vaz, concluiu que não constatou “inércia, tampouco desinteresse da Polícia Civil e do Ministério Público do estado” na solução do caso, um dos elementos necessários para que a federalização ocorra. No entanto, a Polícia Federal pode também investigar casos de violação a direitos humanos, segundo legislação estabelecida em 2002.
Mais recentemente, Raquel Dodge afirmou que mantém o posicionamento de que o caso deve ser federalizado. “O assassinato da Marielle e do motorista [Anderson Gomes] é um caso de grave violação de direitos humanos porque ela era uma representante eleita pelo povo. Não é um assassinato qualquer”, afirmou.
Se realizada, a federalização será uma espécie de constatação de que a Polícia Civil não foi capaz de solucionar o caso. Nesse sentido, para Roberto Tardelli, advogado criminalista, procurador de Justiça aposentado e integrante do Grupo Prerrogativas, é necessário “admitir que a investigação pela Polícia Civil do Rio fracassou”.
Ainda assim, diante do cenário, Tardelli acredita que federalizar é uma possibilidade distante. “É muito mais difícil a apuração agora, depois de tanto tempo do crime ocorrido”, afirma.
Segundo o procurador aposentado, o Brasil contabiliza apenas três casos de federalização desde 2004, quando a Emenda Constitucional 45 foi sancionada. A legislação, conhecida como Reforma do Judiciário ou incidente de deslocamento de competência (IDC), permitiu a federalização dos crimes contra os direitos humanos.
Um desses casos foi o julgamento de Antério Mânica, ex-prefeito de Unaí, a 650 quilômetros a noroeste de Belo Horizonte, em Minas Gerais. Ele foi condenado a 64 anos de prisão pelo homicídio triplamente qualificado dos quatro agentes fiscais do trabalho Almeida Gonsalves, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva, e o motorista Ailton Pereira de Oliveira.
O que mudaria?
Segundo José Carlos Portella Junior, advogado criminalista e membro do coletivo Advogadas e Advogados pela Democracia (AAD), o que mudaria com uma eventual federalização seria o âmbito da investigação, que poderia sair de um ambiente com forte influência política e econômica para um local teoricamente mais neutro.
“Quando nós estamos lidando com algum crime da esfera dos estados, a Justiça estadual é muito suscetível a influências políticas mais diretas das autoridades locais. Ainda mais nos interesses que estão em jogo dessa investigação, uma vez que a Marielle foi assassinada por motivação política. Está bem claro isso”, afirma o advogado criminalista. “Dessa forma, os investigadores ficam muito pressionados localmente por interesses de terceiros.”
Outro ponto que muda são os recursos humanos e materiais disponíveis para a investigação. De acordo com Portella Junior, “a Justiça Federal é mais bem equipada, com melhores recursos humanos e materiais para um julgamento também mais ágil, um julgamento mais imparcial e independente”.
Em relação ao rito processual, nada muda. Caso a federalização, ocorra, a Polícia Federal inicia a investigação, levando em consideração provas e depoimentos já coletados, por exemplo. Depois, o Ministério Público Federal pode entrar com uma ação contra os investigados.
Em que pé está a investigação?
Até o momento, somente os executores do crime, o policial militar reformado Ronnie Lessa e o ex-PM Élcio Vieira de Queiroz foram presos, em março de 2019. Lessa é acusado de ter feito os 13 disparos contra o carro em que Marielle estava, um Cobalt prata. Já Queiroz, por dirigir o veículo em que ele e Lessa estavam. Eles estão presos preventivamente e aguardam júri popular, que ainda não tem data para acontecer.
“Esta é a primeira fase. Não tem nada encerrado. Estamos indiciando quem atirou e quem conduziu o veículo. Há ainda respostas para alcançar”, afirmou na ocasião da prisão Giniton Lages, chefe da Delegacia de Homicídios do Rio de Janeiro.
Os mandantes do crime e as motivações ainda seguem desconhecidos. Tanto Lessa quanto Queiroz não apresentaram nenhum nome. O nome de Rogério Andrade, considerado um dos maiores bicheiros do Rio de Janeiro, é apontado como possível mandante. Um ano antes, o ex-vereador Cristiano Girão também chegou a ser apontado como um dos mandantes pela viúva do ex-PM e miliciano Adriano da Nóbrega, que, por sua sua vez, foi apontado como um dos executores de Marielle Franco. Nenhum dos dois, no entanto, chegou a ser denunciado formalmente.
Um ano antes de Girão ser citado, Adriano foi morto durante uma operação na policial na Bahia, em fevereiro de 2020. O miliciano era um dos criminosos mais procurados do estado, sob a suspeita de comandar o Escritório do Crime. Ele ainda teria participado do esquema de “rachadinha” no gabinete do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), quando ele era deputado estadual na Assembleia Legislativa (Alerj).
Dois dias após o assassinato de Adriano, sua irmã, Daniela Magalhães da Nóbrega, afirmou que a morte se tratou de uma “queima de arquivo”. “Ele falou para mim que não ia se entregar [para a polícia] porque iam matar ele lá dentro. Iam matar ele lá dentro. Ele já estava pensando em se entregar. Quando pegaram ele, tia, ele desistiu da vida”, falou a irmã no áudio enviado a uma tia.
Até aqui, ao longo desses quase cinco anos, as investigações foram marcadas por diversas ocorrências, como tentativas de obstrução, pistas falsas e trocas recorrentes no comando das apurações. Somente em 2021, dois delegados passaram pelo caso.
Um dos momentos de maior preocupação foi quando as promotoras Simone Sibilio e Letícia Emile pediram para deixar o cargo, após supostas interferências externas. Ambas foram responsáveis pela linha de investigação que levou à prisão de Ronnie Lessa e Élcio Queiroz.
Edição: Glauco Faria