A busca por responsáveis pelo domingo de terrorismo em Brasília não vai ser fácil, e há muitos erros cometidos por diferentes agentes. Para o professor da Universidade de Brasília (UnB) Juliano Cortinhas, coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Segurança Internacional (Gepsi) da Universidade, a responsabilidade maior é de Jair Bolsonaro. Porém, houve erros do governo do Distrito Federal e do governo federal chefiado por Lula.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Cortinhas mostra preocupação com a situação do Exército (que ele afirma estar "comprometido ideologicamente") e diz que Lula não deve "reclamar" das Forças Armadas, e sim ordenar que elas ajam.
O especialista, que entre 2013 e 2016 foi Chefe de Gabinete do Instituto Pandiá Calógeras, que assessora o Ministério da Defesa, afirma que a violência demonstrada por bolsonaristas na noite de 12 de dezembro de 2022 já dava indícios de que não se poderia confiar nas forças policiais.
Confira abaixo a íntegra da entrevista.
Com que grau de segurança podemos afirmar que a Polícia Militar do Distrito Federal poderia ter agido diferente se houvesse diferença no comando no dia 8?
Eu acho que com bastante certeza. A PM-DF tem muito mais homens do que estavam à disposição, pelas imagens que foram divulgadas havia pouquíssimos policiais esperando a manifestação.
Acho que tem várias questões que são complicadas nesse episódio. Eu não vejo que seja responsabilidade de um agente político só. Até agora o que a gente teve em termos de agentes políticos é a intervenção federal na questão da segurança, depois o Alexandre de Moraes afasta o Ibaneis [Rocha], o [Anderson] Torres é exonerado, enfim, tudo que a gente já sabe. Está caindo muito no GDF [Governo do Distrito Federal]. Aparentemente se associou, de início, a falha à Polícia Militar, que é competência do GDF. Mas não foi só a PM que errou. Há uma série de erros sucessivos, e não estou nem atribuindo responsabilidades.
Para mim, a responsabilidade maior é do ex-presidente [Jair] Bolsonaro, que fomentou durante quatro anos esse tipo de dinâmica, esse tipo de lógica na mente das pessoas. Enquanto ele fomentou esse radicalismo, de forma muito direta, várias vezes se manifestando no sentido de que as pessoas tinham que "dar a vida" pela sua liberdade e coisa e tal, ele fanatizou um grupo muito importante de eleitores, numeroso. A responsabilidade principal é dele, agora, mesmo diante da ameaça, era possível ter contido.
Os prédios federais são um território praticamente "sagrado". Não se pode invadi-los. E é importante que as forças do estado impeçam isso, porque ali dentro há patrimônio público, ali dentro há segredos de Estado, há documentações importantes e insubstituíveis. Há uma série de bens públicos aos quais a população não pode ter acesso por meio da força. Ali é um território que a polícia tem de proteger com toda sua capacidade, no caso do Legislativo, né. No caso do Executivo cabia ao BGP [Batalhão da Guarda Presidencial], e no caso do Judiciário também às forças policiais.
Toda essa dinâmica que ocorreu é muito grave, é gravíssimo, o episódio. Estão saindo notícias dizendo que o BGP só teria armamento letal. Mas mesmo o uso de armamento letal seria possível, no caso de um episódio tão grave quanto esse. Veja o que aconteceu nos Estados Unidos [na invasão ao Capitólio em janeiro de 2021]. Nos Estados Unidos foi usado armamento letal pela polícia para evitar o pior.
Aqui no Brasil a polícia constantemente usa armamento letal. Nas favelas, contra movimentos sociais, é muito comum essa utilização, e me parece que por alguma razão, e eu reputo isso a questões ideológicas, a um racismo, também, já que a maioria dos apoiadores do Bolsonaro são brancos, de elite, classe média, classe média-alta, enfim. Por essas razões, me parece que há um certo cuidado excessivo, se nós compararmos a outras operações da própria polícia no nosso país.
Quando o senhor fala "polícia", o senhor está falando genericamente sobre as forças de segurança que estariam destacadas ali, ou está falando da Polícia Militar?
Isso é geral das forças de segurança. Houve um erro, também, nesse sentido, do próprio governo atual. Houve uma série de erros do próprio governo atual. Essa movimentação era planejada, vinha sendo anunciada, sabia-se que uma quantidade enorme de ônibus, mais de 100, chegaram a Brasília. A segurança pública do Distrito Federal e as Forças Armadas, que guardam o Batalhão da Guarda Presidencial, deveriam estar em alerta máximo naquele dia. Era um evento anunciado. Não consigo compreender porque só havia aquele número limitado de forças de segurança próximo à Praça dos Três Poderes. É muito difícil entender isso. Por mais que houvesse informação de que eles estavam caminhando pacificamente, antes disso, até.
Noticiou-se a existência de um acordo entre o Flávio Dino e o Ibaneis, no sentido de que não seria possível sair do acampamento - e aí saíram, com escolta policial. A escolta policial é normal nesse tipo de manifestação popular, quaisquer manifestantes que se organizem, que obtenham autorização para sua manifestação, têm escolta policial, para evitar acidentes, para evitar violência. Aquela cena da escolta, ela não é, em si, problemática, porque naquele momento era possível ainda que a manifestação fosse pacífica. Mas com aquela quantidade de pessoas descendo a Esplanada, tinha de ter uma quantidade enorme de policiais, também, esperando para garantir, justamente, que a manifestação fosse pacífica.
Se eles chegassem à Esplanada e tivesse um número elevadíssimo de policiais, Tropa de Choque postada, fazendo linha, enfim, e mostrando força, possivelmente eles não tivessem partido para o ataque. É uma possibilidade. Não tem como antecipar o que aconteceria, mas inibe. Esse número excessivo de policiais bem postados aguardando uma multidão, ele inibe a violência. Essa seria a situação ideal. Mas não foi o que ocorreu. Se a população parte para cima das forças de segurança, elas tinham de ter uma retaguarda suficiente para impedir a entrada nos prédios.
Foi um erro de planejamento muito grande, tanto do Ibaneis quanto das forças federais de segurança. Estava muito claro que não se podia confiar nas forças policiais. Depois dos eventos do dia 12 de dezembro, quando ninguém foi preso, apesar de um caos generalizado, também, na região central [de Brasília], já se sabia que a polícia estava hesitante. Não estava atuando a contento. Seja por questões ideológicas, seja pelas questões que foram... isso é um fato.
Quando se queimam vários ônibus, vários automóveis, há uma tentativa de invadir a delegacia da Polícia Federal e ninguém é preso, é fato que existe um problema. Sabendo disso, eu acho que o Governo Federal deveria ter se preparado com força suficiente para, na ausência, ou numa hesitação da Polícia Militar, agir com suas forças federais: Força Nacional, Forças Armadas, enfim, aquelas das quais o Governo Federal dispõe.
Como é feita a organização de diferentes corporações que atuaram em um mesmo episódio, como foi domingo?
Normalmente, são operações interagência, ou seja, há várias parcelas das forças de segurança, diferentes instituições das forças de segurança atuando ao mesmo tempo. Nesse caso, existe uma coordenação central, normalmente é feita via GSI [Gabinete de Segurança Institucional] e comando da Polícia Militar, no sentido de dividir responsabilidades, de alocar forças, de pensar globalmente o número de policiais, de [integrantes das] Forças Armadas, que vai ter à disposição em cada um dos locais. Há um mapeamento dos pontos fracos, mapeamento das vulnerabilidades, e ali se concentram mais pessoas. Há um planejamento conjunto, normalmente. E isso não se observou, né?
Quando chega a Tropa de Choque, quando aumenta o número de policiais, aí a polícia começa a agir e há a questão mais tático-operacional, que, bom, "o pau tá comendo, a disputa está ocorrendo ali, como é que vou me posicionar, o que vou fazer?" Essa é outra questão, uma questão que está para além desse planejamento de alocação de recursos, que é um planejamento mais estratégico, vamos dizer assim. Ali, tático, né, é um treinamento que eles têm de ter. E o BGP tem de estar muito afiado nisso e mostrou total incompetência.
Ou seja: forma uma linha impenetrável, com escudos, enfim, numa primeira fileira; atrás o pessoal que está usando armamento, armamento não letal, a princípio, numa manifestação a gente não precisa usar armamento letal; e essa linha avança sobre o adversário de modo a ganhar terreno. Ali a questão é ganhar território para afastar o adversário dos prédios. Esse era o grande objetivo, ali. E a partir desse momento, quando se chegar ao adversário é fazer as prisões, e começar a agir. Essa seria, mais ou menos, aquela dinâmica, só que as polícias estão bem posicionadas nessa cena e o Exército parece que não está nem um pouco interessado em fazer o seu papel.
Eu desconfio que não seja por falta de capacidade técnica, eu acho que foi muito mais uma falta de vontade, mesmo, e isso não parte da tropa. Isso normalmente vem do comando. O soldado que está ali, operacional, não vai ter uma postura jocosa, uma postura, enfim, desleixada porque ele sabe que vai sofrer uma sanção severa. Agora, se o comandante falou para ele "oh, vai devagar, não precisa se preocupar muito, fica tranquilo, vai lá e faz a formação e fica por ali", aí ele vai cumprir a ordem.
Quais seriam as atribuições do GSI em um episódio como esse, tanto antes, quando sabia-se que isso estava sendo programado, e durante o episódio? Quais deveriam ter sido os protocolos e estratégias que deveriam ter sido adotadas pelo gabinete?
O GSI, como o próprio nome diz, trata da segurança institucional, tanto dos indivíduos que compõem as instituições do estado, principalmente a Presidência da República, quanto dos edifícios, do patrimônio. Era competência direta do GSI, ali. Nesse sentido, abaixo da GSI ainda tem a estrutura da Abin, a Agência Brasileira de Inteligência, que tinha de ter a exata noção do que estava acontecendo. São 60 dias de acampamento, acho impressionante que pareça haver um desconhecimento de tudo que vem sendo planejado ali.
O GSI deve ter infiltrado, espero que tenha infiltrado pessoas no acampamento, que esteja acompanhando, que tenha levantado as fichas de todos os organizadores durante esses 60 dias, porque todas as vezes em que a gente efetuou prisões ou que descobriu uma possibilidade de atentado, como a bomba no aeroporto, me pareceu ser muito mais fruto de coincidências, "ah, o dono do caminhão observou que o objeto estava ali, um objeto estranho e chamou a polícia", ou seja, não foi a polícia que levantou a informação de que haveria um atentado próximo ao aeroporto, foi por uma coincidência, praticamente. Foi uma sorte que a gente evitou aquilo ali, que poderia ter sido um atentado extremamente destrutivo e mortal.
Esse trabalho de levantamento de informações, trabalho de inteligência, eu não vi, não percebi, frutos dele nesse processo todo. A segunda questão é que o GSI também, a partir do momento que precisa agir, ou seja, que vê um risco às instituições, que vê uma ameaça se constituindo, precisa se preparar para contê-la. E houve uma falha terrível nesse sentido, né. As pessoas chegaram às portas do gabinete do Lula. Isso é muito grave.
O que aconteceu com o Exército, pensando nesse episódio? Quais eram as funções do Exército?
Eu não consigo compreender como é que esses acampamentos ficaram na frente dos quartéis por tanto tempo. Aquilo ali é uma área de segurança. Não é uma área de entretenimento, não é uma área de lazer, é uma área de segurança militar. As pessoas não podem ficar paradas ali. Se alguém for na frente de um quartel e se sentar ali, montar uma barraca, certamente será retirado. O Exército não tolera, normalmente, esse tipo de manifestação. Não há razão dessas pessoas acamparem na frente de um quartel do Exército, a não ser que elas estejam, justamente, se sentindo protegidas pela instituição militar. E esse foi o caso, claramente.
O Exército está comprometido ideologicamente como instituição. Muitas pessoas apontam "ah, mas são alguns indivíduos dentro do Exército". Eu não corroboro com essa hipótese. Para mim, a instituição está comprometida com o bolsonarismo. Colocou mais de 6 mil servidores em cargos públicos durante o governo. Em nenhum momento o Exército se afasta da gestão Bolsonaro. Mesmo no momento em que ela cometeu os erros mais graves, o Exército continuou abraçado ao Bolsonaro até o fim do seu mandato, inclusive corroborando tentativas de desconstruir o processo eleitoral e fazendo um trabalho extremamente prejudicial à nossa democracia durante o processo eleitoral; cheio de notas dúbias, em um processo em que generais se manifestaram constantemente, da reserva e da ativa, como generais, o que não pode. O general da reserva não pode se posicionar politicamente usando o posto de general.
O Exército cometeu uma série de ilegalidades ao longo de toda a gestão Bolsonaro. E isso vem se construindo até a questão dos acampamentos. É incompreensível que eles não tenham sido retirados dali. Dito isso, a partir do momento em que o Lula toma posse, também é incompreensível ele não ter dado uma ordem de retirada, porque o presidente é o comandante-em-chefe das Forças Armadas. O Lula, numa reunião, reclamou das Forças Armadas, que elas não retiraram os acampamentos, que aquela era uma situação absurda. Mas o Lula não tem que reclamar das Forças Armadas, o Lula tem que ordenar que as Forças Armadas ajam. E se não agirem, tem de exonerar o comando. Porque aí é uma insubordinação clara, descumprimento de ordem direta, insubordinação, exoneração.
Há casos, aqui na América do Sul, de presidentes que assumiram recentemente, o [presidente Gustavo] Petro, na Colômbia, por exemplo, assume e demite uma série, dezenas de generais, porque ele entendia que as Forças Armadas do seu país estavam ideologicamente comprometidas e essas forças têm que ser despolitizadas. Entendeu que a forma de despolitizar era exonerar uma série de pessoas.
Nós estamos adotando uma postura de apaziguamento, e eu acho que essa postura não vai nos levar a um bom resultado. Eu acho que nós temos que enfrentar os problemas de frente. E claramente há um problema criado, não foi o atual governo que criou, mas cabe ao atual governo resolver. É preciso agir com firmeza nessa questão militar, que é uma questão que põe a nossa democracia em risco.
A questão mais grave de todas ainda me parece a postura do Exército depois da invasão, quando eles impedem a polícia, inclusive com uso de blindados, de entrar no acampamento. Aquilo ali, pra mim, me pareceu muito grave. Já há denúncias de que pessoas foram retiradas do acampamento durante a noite e eu acho isso muito grave, porque alguns dos organizadores, alguns dos parentes de militares que estavam circulando ali, vão sair ilesos dessa situação toda, porque o Exército as protegeu.
De novo, eu vejo um comprometimento institucional das Forças Armadas, principalmente do Exército, nessa questão. Não acho que sejam só alguns generais que apoiam Bolsonaro. Acho que a instituição está comprometida e isso é muito sério.
Em situações como a do dia 8 de janeiro, Exército e GSI devem agir de maneira coordenada, de maneira conjunta? Como funciona essa interlocução e os protocolos entre os dois para um episódio como esse?
Há uma coordenação e todas as instituições agem de forma conjunta, cada uma com responsabilidades compartilhadas. Há diferenças nas responsabilidades, mas há uma coordenação central. Isso é uma prática que já vem sendo adotada, essa cooperação interagências, vem sendo adotada em diversas operações, já há muitos anos. Por exemplo, operações na fronteira são extremamente complexas, com Polícia Rodoviária, Polícia Federal, Polícia Militar, Polícia Civil, Forças Armadas: Exército, Marinha e Aeronáutica.
Se a gente pegar essas operações grandes, há uma série de, inclusive, instituições da própria sociedade, do governo local, prefeituras. Nesse tipo de operação, que é até mais complexa, em termos de coordenação, do que seria essa de domingo, há uma coordenação central, responsável por determinar funções, e os agentes do Estado cumprem as ordens dessa agência central. No caso específico de domingo era ainda mais simples porque eram as Forças Armadas e as forças policiais. Não havia uma complexidade enorme de agentes atuando. E aí cabe ao GSI, no caso do Palácio do Planalto, fazer essa coordenação.
Edição: Thalita Pires