Coluna

Carta romântica

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Ele mostrou a carta a outros amigos e todo mundo reagia como eu. E no final perguntava se sabia de algum emprego - Creative Commons
Você sabe aonde eu posso arrumar um emprego? Tô precisando...

Em 1970, durante a ditadura, os militares queriam desmoralizar a USP, Universidade de São Paulo, em que professores e estudantes se opunham a eles, especialmente nos cursos de Ciências Humanas e Letras.

Um jeito que imaginaram foi facilitar a entrada de quem não sabia nada, e pra isso resolveram impor um novo tipo de vestibular, só com uma prova composta do que chamavam de “testes objetivos”, aqueles de pôr cruzinhas nas respostas que a gente julga certas. Nenhuma redação, nenhuma pergunta que exigisse que o candidato escrevesse uma frase sequer. E entraram muitos malucos.

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Um deles, não vou revelar o nome, digamos que era Zé. Apaixonou-se por uma moça e escrevia cartas de amor, mas nunca mandava pra ela, só mostrava pros colegas. Um dia veio mostrar uma pra mim, longa, enorme, datilografada. Começava com uma coisa do tipo “sonhei que estávamos num bosque encantado, dançando uma valsa...” e seguia num tom no mínimo estranho. Acabei de ler, ele me perguntou o que achei. Desconversei, ele perguntou de supetão:

— Você sabe aonde eu posso arrumar um emprego? Tô precisando...

Não sabia. Ele mostrou a carta a outros amigos e todo mundo reagia como eu. E no final perguntava se sabia de algum emprego.

Um colega, o Edson, um tanto cruel, respondeu:

— Fale com o Professor Aziz. O Aziz é muito romântico, vai te arrumar emprego na hora!

O professor Aziz Ab’Saber era diretor do Departamento de Geografia e a porta da sua sala estava sempre cheia de gente, para resolver problemas. Saía uma pessoa, entrava outra, rapidamente.

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O Zé foi chegando como quem não quer nada e quando saiu uma professora, antes do primeiro da fila bagunçada entrar, ele pulou pra dentro da sala, deixando todo mundo revoltado. A porta ficou entreaberta e vimos e ouvimos o Aziz falar com ele. Explicamos pro pessoal da fila e eles fizeram silêncio pra ouvir também o diálogo que se seguiu:

— Leia esta carta — estendeu o calhamaço.

— Não tenho tempo, diga o que é.

— Leia...

Tanto insistiu que o ocupadíssimo professor Aziz acabou lendo. Lia uma frase e olhava pra cara do Zé. Foi até o fim e, mudo, devolveu a carta pro Zé, que sapecou:

— O senhor tem um emprego pra me arrumar?

Esperávamos um esculacho, mas o Aziz respondeu:

— Tenho sim... — ele disse. — Você pode começar a trabalhar amanhã, como auxiliar de biblioteca?

E ficamos todos de queixo caído.

Edição: Douglas Matos