Há 14 anos o Brasil lidera um ranking internacional que envergonha: somos o país que mais mata pessoas trans e travestis. Neste 29 de janeiro, Dia Nacional da Visibilidade Trans, a segurança é um dos pontos mais importantes para essa população. Quem afirma é a advogada Robeyoncé Lima, primeira trans, negra e nordestina a conseguir inserir o nome social na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Ela foi entrevistada pelo programa Bem Viver deste sábado (28).
"O enfrentamento à violência contra a população trans e a população LGBTQIA+ de maneira geral é fundamental, para que a gente possa sair desse topo de ranking vergonhoso, de país que mais mata travestis e transexuais no mundo", afirmou.
O pioneirismo não é novidade na vida de Robeyoncé. Ela está em fim de mandato como codeputada estadual por Pernambuco. Eleita em 2018 pelo coletivo Juntas, ela foi a primeira trans à chegar à Assembleia Legislativa do estado nordestino.
Nas últimas eleições, tentou uma vaga de Deputada Federal. Recebeu mais de 80 mil votos, mas não se elegeu. Ainda assim, se vê representada por Erika Hilton (PSOL-SP) e Duda Salabert (PDT-MG), que assumem seus mandatos no próximo dia 1° e serão as primeiras trans no Congresso Nacional.
"Que a gente também aproveite esse momento para fazer com que essas mulheres, que vão estar lá falando em nome da gente pela primeira vez: nós falando por nós mesmas. Que a gente possa dar esse apoio aqui do lado de fora, também, apoiando, também, o governo Lula em relação a essas questões", complementa.
Leia e assista a íntegra da entrevista:
Brasil de Fato: Neste Dia Nacional da Visibilidade Trans, gostaríamos que você falasse um pouquinho sobre a importância histórica das lutas dessa população e o que você enxerga como pauta principal neste momento.
Robeyoncé Lima: Desde 2004 a gente tem essa data, 29 de janeiro, como sendo uma data alusiva em homenagem às pessoas trans, para relembrar os momentos de luta, as principais pautas, as principais demandas. Não somente na área da saúde, mas também na questão da segurança pública, empregabilidade, renda, na questão do direito de viver e ser feliz, na questão do enfrentamento à violência.
O Brasil é o país que mais mata pessoas transexuais e travestis no mundo ainda hoje. Desde 2004, quando se oficialmente foi formalizada essa data, a gente faz questão de sempre problematizar, não somente na data, mas durante todo o ano, a exclusão e a marginalidade que a população trans vive até o dia de hoje.
A sua trajetória como primeira advogada trans de Pernambuco e primeira deputada estadual trans do Nordeste mostra a importância de falta de acesso que você fala. O que representou para você estar nesse lugar de ajudar a abrir portas?
O fato de somente em 2017 eu ter sido a primeira advogada trans no estado de Pernambuco já dá muitos sinais, e fica muito notória a falta de visibilidade e a exclusão que muitas outras iguais a mim ainda estão passando até hoje. Por que não existem outras advogadas trans? Outras professoras trans, engenheiras trans, médicas, enfermeiras...
Eu acho que a notoriedade que eu tive em 2017, quando entrei na Ordem dos Advogados do Brasil, foi uma notoriedade no sentido de vitória, não somente minha, mas também do próprio movimento transexual e travesti, mas também se caracteriza como uma denúncia. Mostra o quanto ainda é necessário a sociedade avançar para que a gente possa ocupar cada vez mais espaços.
O grupo de pessoas transexuais e travestis é um grupo vulnerabilizado, e necessita atenção especial do estado em relação a diversas questões, seja na segurança pública, na educação, na saúde, na empregabilidade, na renda, na questão da moradia, na questão do enfrentamento à discriminação e preconceito.
Como você observa o papel do estado, em especial através dos governos, federal, estadual, no sentido de garantir o direito à vida e o acesso a direitos básicos e fundamentais para essa população?
A gente ainda hoje enfrenta uma dificuldade muito grande, que é o próprio assassinato ou extermínio da população transexual e travesti. O Brasil, há mais de dez anos, é o país que mais mata pessoas transexuais e travestis no mundo, e a gente tem tolhidos todos os direitos, inclusive o próprio direito à vida. Nosso direito à identidade é retirado, nosso direito de viver e existir é retirado, nosso direito à educação, nosso direito a uma saúde pública de qualidade é também retirada.
Me parece que o mais básico é justamente garantir as condições de vida para que a pessoa possa viver e também sobreviver num cenário de exclusão e vulnerabilidade que a gente passa até os dias de hoje. Noventa por cento da população transexual e travesti vive da prostituição, porque não existe outra alternativa ou outra opção para essas pessoas. A sociedade fecha os olhos para um problema tão atual e constante, que também não é de hoje, mas de muito tempo. Existe essa demanda, existe essa necessidade de uma atenção especial para essa população.
Agora, em termos de avanço legislativo, a gente ainda tem muita dificuldade, mas temos conseguido algumas vitórias e conquistas no âmbito do poder judiciário, através do Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a união estável homoafetiva e reconheceu a possibilidade de trocar o nome sem precisar entrar com ação judicial; o STJ [Superior Tribunal de Justiça] recentemente reconheceu que as mulheres transexuais e travestis podem fazer uso da lei Maria da Penha.
Agora, tudo isso são entendimentos que a gente tem, que o Supremo Tribunal e o STJ garantiram. Em termos de legislação mais consolidada, mais preparada, mais firme, a gente ainda não tem avançado muito nesse sentido de confeção de leis, porque a gente infelizmente tem um Congresso Nacional que é bastante conservador e que não admite que pautas relacionadas à população transexual e travesti ou à população LGBTQIA+ de uma maneira geral possa avançar e ser aprovada para garantir os direitos dessa população.
Este janeiro marca também o início de uma nova gestão federal, que tem um histórico de ter um olhar mais sensível e atento para essa pauta da diversidade. Quando a gente fala de visibilidade trans, quais são as ações que você aponta como prioritárias para essa população durante o governo Lula?
Acho, como fundamental e estruturante, a questão da segurança pública. O enfrentamento à violência contra a população trans e a população LGBTQIA+ de maneira geral é fundamental, para que a gente possa sair desse topo de ranking vergonhoso, de país que mais mata travestis e transexuais no mundo.
Outro fator, também aliado a isso, é a questão de inclusão no mercado de trabalho, através de fomentos à empregabilidade, e também incentivo às empresas para contratar pessoas trans. Isso também implica necessariamente uma escola acessível e inclusiva para as pessoas trans, porque se a pessoa não consegue estudar, muito provavelmente ela não vai conseguir um emprego decente, também. Esse efeito cascata precisa ser eliminado.
Me parece que há uma necessidade urgente de contratar ou colocar essas pessoas no mercado de trabalho, mas também pensando em um longo prazo, em dar educação de qualidade para que no futuro elas possam ter mais alternativas para além da prostituição, que é a única que se encontra hoje disponível para a maioria da população transexual e travesti.
Eu venho de uma política do tempo do governo Lula, inclusive, em que foi através do Governo Federal, durante essa gestão anterior ao governo Temer, eu venho de uma gestão Lula-Dilma, em que foi possível, por exemplo, eu entrar na universidade pública; me formar; foi possível, pela primeira vez, na minha família alguém ter um diploma de ensino superior. Como isso é transformador na vida de muitas pessoas. Como isso pode transformar a vida de muitas transexuais e travestis.
Basta ter uma reforma política efetiva no sentido de valorização dos serviços públicos e ações, também de incentivo dessa população a ingressar e a permanecer nessas instituições de ensino, porque do mesmo jeito que você tem o direito de entrar numa universidade, você também tem o direito de nela permanecer e conseguir se formar sem precisar trancar o curso, sem precisar desistir do curso porque tem que trabalhar ou cuidar do filho, da filha, já que você é mãe solteira.
É todo um projeto, todo um processo de estrutura que deve ser muito bem consolidado para que a gente possa conceder oportunidades, não somente para essas pessoas, mas também, inclusive, oportunidade de transformação do mundo, através de trajetórias tão marcantes como essas, que podem, inclusive, ser exemplos para muitas outras pessoas que virão na próxima geração.
A partir desse ponto de vista, gostaria que você falasse o que projeta como pauta prioritária nesse momento, e também os desafios para os movimentos, organizações e pessoas em defesa das vidas de travestis e transexuais.
Acho que a gestão desse governo Lula precisa dialogar constantemente com as duas pessoas trans que entraram no Congresso Nacional pela primeira vez, a Erika Hilton e a Duda Salabert, pela primeira vez na História do Brasil - veja, mais um exemplo de quanto esse movimento transexual e travesti é vulnerável, é excluído. Somente em 2023 a gente tem parlamentares trans no Congresso Nacional aqui no Brasil.
Que a gente aproveite esse local de fala que finalmente a gente tem no Congresso Nacional; que a gente possa manter esse diálogo de construção e também de fortalecimento dessas duas mulheres trans, travestis, lá no Congresso Nacional. Elas já estão inclusive sofrendo ameaças de morte, tendo que andar com coletes à prova de bala e tudo mais.
Que a gente também aproveite esse momento para fazer com que essas mulheres, que vão estar lá falando em nome da gente pela primeira vez: nós falando por nós mesmas. Que a gente possa dar esse apoio aqui do lado de fora, também, apoiando, também, o governo Lula em relação a essas questões
Não é no governo Lula que vai acabar a LGBTQIA+fobia ou acabar a transfobia. A gente não vai conseguir isso em quatro anos, mas a gente pode se utilizar, sim, de instrumentos e de ferramentas que o governo federal vai estar disponibilizando para a gente, para que a gente possa fazer um enfrentamento a essa violência e diminuir essa violência o máximo que a gente pode, tendo em vista que a gente não consegue eliminar uma transfobia, que é estruturante e que existe há muitos anos no país em quatro anos, a gente vai ter que trabalhar muito para reduzir isso ao máximo possível.
Edição: Rodrigo Durão Coelho