O povo do Saara Ocidental mantém viva uma luta secular pelo direito à autodeterminação do seu território de 266 mil km² no extremo norte da África. Entre 1885 e 1975 resistiu à dominação da monarquia espanhola. A partir de 1975, passou a defender-se da invasão do reino marroquino. Apesar do cessar-fogo, em 1991, as violações dos direitos humanos do povo saaraui, que vive sob território ocupado pelo exército marroquino, nunca cessou. E desde 2020, o Marrocos reativou a guerra após bombardear forças saarauis na região conhecida como "fenda de Guerguerat".
Desde o início do conflito, na década de 1970, houve cerca de 30 mil casos de detenções arbitrárias e 4.500 casos de desaparição forçada. Até hoje, ainda existem 445 pessoas que permanecem desaparecidas e 43 saarauis considerados presos políticos, que esperam por julgamento dentro das cárceres marroquinas.
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“As Nações Unidas já se manifestaram pedindo que essas pessoas fossem liberadas e que fossem indenizadas, já que suas detenções são completamente arbitrárias. No entanto, Marrocos não leva em conta essas orientações", afirma ao Brasil de Fato, Abdeslam Aomar, presidente da Organização de Familiares de Presos Políticos e Desaparecidos Saarauis.
Histórias reais
"Conheci de perto a desaparição cruel", conta ao Brasil de Fato Mina Baali, sequestrada por policiais marroquinos duas vezes, em 1991 e 1992. Hoje ela é uma das 42 delegadas do último Congresso da Frente Polisário, que vivem nas zonas ocupadas pelo Marrocos.
Mina Baali é filha de militantes da Frente Polisario e tinha apenas 2 anos quando aconteceu a invasão do Saara Ocidental pelo Marrocos. Aos 16 anos, foi sequestrada pela primeira vez. "Fui torturada de muitas formas. Nos primeiros 6 dias fiquei de pé, sem poder comer, nem beber nada, era obrigada a ficar caminhando dentro de uma sala, sem poder sentar ou deitar em qualquer momento", conta.
Mina também fazia parte de uma organização de jovens saarauis que promoviam ações diretas, como protestos e pichações, denunciando o colonialismo marroquino.
"Entre outras coisas tentaram queimar minhas unhas com fogo, fui sexualmente violentada, e soltaram cachorros em cima de mim para que me mordessem. Tudo isso para me obrigar a responder suas perguntas", relata.
Segundo Mina Baali, depois da pressão internacional sobre Marrocos em relação ao seu trato com os saarauis, agora o exército marroquino utiliza outros métodos, que consistem em 'fazer desaparecer' uma pessoa por um tempo curto, como dois ou três dias. Tentam colher algum tipo de informação e em seguida a abandonam em qualquer ponto distante das cidades.
Há ainda casos que eles forçam os detidos a assinar termos que sugerem crimes, como narcotráfico ou roubo, “para simular que são um regime democrático e manchar a imagem do povo saaraui que vive na zona ocupada de maneira ilegal pelo Marrocos”, conta Bali.
"Agora é comum que qualquer pessoa que diga alguma coisa contra o regime marroquino seja punido com 20 anos de prisão", complementa.
Um dos casos mais emblemáticos foi de Sultana Khaya, que passou 19 meses sob cárcere privado na sua própria casa, em Bojador, Saara Ocidental ocupado. O caso aconteceu entre 2020 e 2021. Com ajuda de sua família, Sultana pode documentar o assédio do exército marroquino, que chegou a soldar a porta da sua casa para mantê-la presa.
“Durante esse período cortaram os serviços de água e luz, militares marroquinos invadiam nossa casa, enquanto paramilitares faziam um cerco na parte de fora”, relata.
Sultana Khaya chegou a perder um olho por conta da agressão marroquina. Ela e sua irmã, Ouarra Khaya, foram atacadas durante meses. “Fomos estupradas, lançaram substâncias químicas sobre nós. Nossa luta foi subir diariamente à laje da nossa casa para alçar a bandeira saaraui. Tiveram que usar caminhões-guincho para arrancar a estrutura que sustentava as bandeiras que mantínhamos sobre a nossa casa”, conta Sultana.
Com ajuda de outros jovens saarauis, que também residem no território ilegalmente ocupado, Sultana e Oaurra puderam denunciar o que aconteceu em transmissões ao vivo por redes sociais, o que para Sultana assegurou que hoje elas estejam vivas. “Ao final eles foram derrotados moralmente e foram cansando”, diz.
Invasão militar
Nos 85% do território controlado pelo Marrocos, a ocupação é militar e cultural. Nas escolas, crianças saarauis são obrigadas a falar dialetos marroquinos e aprendem que o Saara Ocidental sempre fez parte do Marrocos.
O reino de Rabat construiu, com assessoria de Israel, um muro de 2,7 mil km e bases a cada 2km, vigiado por mais de 150 mil soldados marroquinos. Há mais de 10 milhões de minas em toda a construção para repelir qualquer aproximação ao bloqueio.
É o caso de Aziz Heidr que perdeu as duas pernas e o braço direito com a explosão de uma mina.
"O Saara é uma das nações mais minadas do mundo. E acreditamos que depois de 2020 os marroquinos colocaram ainda mais minas no muro. Marrocos não assinou os tratados internacionais de proibição de minas e também não é signatário dos tratados contra o uso de bombas de racimo, porque isso lhes obrigaria a desminar o território saaraui", conta o presidente da Associação Saaraui de Vítimas de Minas.
Com o acordo de paz, em abril de 1991, também foi criada a Missão das Nações Unidas para Referendo do Saara Ocidental (MINURSO), que seria responsável por realizar um referendo popular que colocaria fim à disputa territorial. Desta forma, a ONU nunca outorgou a autoridade de fiscalização do cumprimento de direitos humanos.
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Para a Frente Polisário, organização política que dirige o povo do Saara Ocidental, a sua causa foi esquecida até mesmo pelas Nações Unidas e por isso voltaram a ser atacados. "A volta à guerra foi forçada pelo exército marroquino, mas também pela marginalização da causa saaurai pelas forças internacionais, principalmente a ONU e o seu Conselho de Segurança", disse em entrevista ao Brasil de Fato, a ministra de cooperação da República Saaraui, Fatma Mehdi.
A ex-presa política, Mina Bali, reforça o abandono da comunidade internacional. “Mohammed Haedi é um prisioneiro que esteve 45 dias em greve de fome e nesta situação não encontrou nenhuma resposta em nível internacional. Nem a Cruz Vermelha se interessou pela sua situação, nem ninguém quis saber como ele estava”, diz.
Em outubro de 2022, a guerra entre Marrocos e Saara Ocidental foi tema de uma sessão do Comitê Especial das Nações Unidas para a Descolonização. Na ocasião, a ex-chefe de assuntos jurídicos da Missão da ONU para o Referendo no Saara Ocidental (Minurso), Kathleen Thomas, instou o presidente dos EUA, Joe Biden, a rescindir a declaração sobre o reconhecimento da suposta soberania de Marrocos sobre o Saara emitida pelo ex-presidente Donald Trump em 10 de dezembro de 2020.
Até hoje, Marrocos é o principal sócio comercial da Espanha fora da União Europeia, concentrando 45% das exportações espanholas ao continente africano. Pensando no comércio, o atual presidente do governo espanhol, Pedro Sánchez, rompeu com a tradição de neutralidade para apoiar a posição do Marrocos.
O reino de Rabat quer manter o controle total sobre o Saara Ocidental, dando alguma autonomia de organização regional ao povo saaraui. A proposta é rechaçada pela Frente Polisario, que diz que já se encontrou uma saída pacífica ao conflito, a realização do referendo, mas que esta solução nunca foi executada.
Edição: Arturo Hartmann