Nas últimas duas décadas a produção de grãos foi amplamente dominada pelas empresas proprietárias das sementes, dos fertilizantes e dos agrotóxicos. O crescimento do cultivo de milho e soja foi acompanhado pela dependência de, pelo menos, uma destas empresas que ao final se apropriam de parte significativa da renda dos agricultores, seja ele pequeno, médio ou grande.
A prática da agricultura produtora de grãos está tão conectada às empresas que até mesmo os agricultores não se veem fora dela. Totalmente envolvidos nessa relação de dependência, desde o preparo do solo as sementes e os fertilizantes já estão previamente "receitados" por técnicos e agrônomos que foram treinados, na maioria das vezes, como bons vendedores de produtos. Esse modelo de agricultura, agora então parte do chamado “agronegócio”, transformou a relação social do/a agricultor/a em apenas um local onde se segue uma receita de aplicação de insumos, onde as empresas já sabem previamente a taxa de lucro que terá nessa relação. Isso tudo, independente das consequências ao bioma do solo e da natureza como um todo.
Atualmente há um movimento de transformação da agricultura brasileira em curso. É a transformação biológica. Poderíamos até chamar de uma nova revolução na agricultura brasileira.
Esse movimento ocorre devido à confluência de vários fatores, a saber: a) a grave crise ambiental com as consequências do efeito estufa ficando cada vez mais frequentes e a pressão internacional para as adequações ambientais em todas as áreas; b) a exigência crescente do mercado consumidor por alimentos saudáveis e livre de agrotóxicos; c) a evolução da ciência oficial agora comprovando e aceitando os ensinamentos da saudosa Dra. Ana Maria Primavesi e as pautas do movimento agroecológico; e) a falência ambiental e agronômica do pacote da revolução verde, com o agravamento de pragas e doenças e a degradação biológica dos solos; f) o surgimento de novas tecnologias biológicas de posse direta dos agricultores.
É neste contexto que todas as grandes transacionais do ramo dos agroquímicos já disponibilizam em sua lista de produtos, insumos biológicos e já estão reorientando a sua linha de produção para esse novo mercado que está crescendo a passos largos no Brasil. Aqui está a grande mudança que já ocorre e que deverá ser acelerada nos próximos anos.
É nesse cenário que se proliferam discussões sobre aquilo que aqui vamos denominar "insumos biológicos". Esse assunto é bastante complexo mas é de amplo conhecimento que as plantas se tornam produtivas e sadias na medida que o ambiente (solo, água, sol e ar) onde elas estiverem inserida esteja sadio.
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Se tivermos um solo diverso biologicamente (bactérias, fungos, nematoides, protozoários, micro artrópodes, dentre outros) o processo de solubilização dos nutrientes presentes no solo - até então indisponíveis - torna-se disponível. Sendo assim, as plantas passam a absorver conforme a sua necessidade e se tornam produtivas, capazes de produzir alimentos de forma abundante para a humanidade de forma saudável.
Então, são os micro-organismos os atores principais da relação solo–planta que há milhares de anos mantiveram e ainda mantém a agricultura ativa, apesar de toda a agressão com fungicidas, inseticidas, herbicidas e adubos solúveis, muitas vezes à base de cloro que esteriliza o solo e compromete a sua saúde.
A pesquisa científica evoluiu muito nos últimos anos e percebeu que o solo é rico em vida. Sugere-se que em um grama de solo temos mais micro-organismos que habitantes no planeta Terra.
Geralmente esses micro-organismos (bactérias, fungos e outros) de presença e multiplicação livres na natureza podem ser coletados, isolados, multiplicados e devolvidos ao solo, potencializando a atividade biológica.
Podemos fazer esse processo de multiplicação de micro-organismos de duas formas, basicamente. A multiplicação desses micro-organismos isolados (apenas um de cada vez) ou em comunidade, onde se multiplica um conjunto de micro-organismos juntos. Um bom exemplo de multiplicação de micro-organismos de comunidade é o método “Soil Food Web” ou a Rede Alimentar do Solo.
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Para exemplificar a questão, vamos à prática. Para fabricarmos um insumo biológico na própria propriedade/lote, podemos adquirir 500 ml de um inóculo (a “semente” do micro-organismo) da bactéria Bacillus thurigiensis, por exemplo, e colocá-la num tambor de 100 litros de água contando com 500 gramas de um meio de cultivo (alimento) e uma bomba de 0,5 hp que permita a circulação e aeração da água por 48 horas, podemos ter ao final 100 litros de um inseticida biológico capaz de controlar a população de lagartas em 50 hectares de soja ou de milho a um custo de dois a cinco reais o litro (depende da origem dos insumos que se utilizará). Nas mesmas condições descritas acima podemos utilizar 500 gramas da bactéria Azospirillum brasiliense como inóculo e ao final de 24 horas produziremos material suficiente pra contribuir consideravelmente com a demanda de nitrogênio para 20 hectares de trigo, 5 hectares de tomate, 25 hectares de milho.
A multiplicação de micro-organismos pode ocorrer em pequena, média e grande escala de acordo com a necessidade. Nos últimos tempos as grandes empresas estão dedicando enormes esforços para se estabelecerem nesse mercado que pode ser gigantesco. Ao mesmo tempo, um novo setor econômico tem se formado em torno da produção de equipamentos e insumos para a multiplicação de micro-organismos nas propriedades rurais, a chamada multiplicação “on farm”.
No Brasil ainda não temos uma regulamentação clara sobre essa questão. Estão em debate no Congresso Nacional dois projetos de lei. Um na Câmara dos Deputados, outro no Senado Federal. Nesse debate regulatório, o excesso de regulação favorece centralmente as grandes empresas transnacionais, pois os agricultores terão mais dificuldades (principalmente os pequenos e médios) em realizar a multiplicação nas propriedades rurais e o caminho ficará livre apenas para os bioinsumos comerciais.
A grande questão a ser colocada será quem poderá realizar a multiplicação de micro-organismos para uso na agricultura. Serão grandes empresas nacionais ou transacionais? Serão agricultores que multiplicarão em suas propriedades pequenas, médias e grandes? Serão pequenos agricultores que, além da multiplicação na propriedade, poderão realizá-la através de grupos de OCS, associações e cooperativas? Ou todos poderão coexistir dentro de um marco regulatório equilibrado e adaptado a distintas realidades e condições econômicas?
Apenas para exemplificar o debate, um pequeno agricultor, ao multiplicar uma bactéria para seu uso, avalia sua eficiência pelo resultado prático ao realizar o controle e aplicação na lavoura. Esta unidade de multiplicação “on farm”, devido ao pequeno volume a ser multiplicado, requer uma estrutura muito mais simples, desde que observados os mínimos critérios de higiene e limpeza do ambiente. A geração de resíduos será praticamente nula, sendo uma atividade de baixíssimo risco.
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Por fim, o que está em jogo é se essas tecnologias de produção de bioinsumos “on farm” poderão seguir sendo usadas pelos agricultores, e ainda mais democratizadas com políticas públicas de fomento, ou se as grandes transnacionais irão se apropriar dessas tecnologias para turbinar os seus lucros nesse novo modelo de agricultura que está se desenhando.
Está em jogo se os agricultores poderão conquistar uma maior autonomia no processo produtivo ou se serão condenados a apenas substituir o pacote tecnológico do químico para o biológico. No atual momento é necessário e urgente discutir essa temática.
José Luis Rodrigues (Patrola) é agricultor Orgânico Assentado em Viamao/RS, Especialização em Educação no campo pela UFSM
Mauricio Piccin é agricultor em General Camara/RS, veterinário pela UFSM
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Glauco Faria