Após um ano com um histórico cancelamento e outro com os desfiles adiados para abril, as principais escolas de samba do Rio de Janeiro e de São Paulo voltam nesta semana a pisar o asfalto na Marquês de Sapucaí e no Sambódromo do Anhembi para um carnaval que promete ser histórico. Se a pandemia não acabou, os números mais contidos da covid-19 permitirão, enfim, desfiles sem restrições. E, colocando em prática uma tradição histórica, a maioria das agremiações apresentará temas que não têm espaço em outras passarelas, quase sempre ligados à história da população negra no país.
Alguns enredos escolhidos deixam claro o recado. Em São Paulo, por exemplo, a Rosas de Ouro vai falar sobre resistência e igualdade racial no enredo "Kindala!", enquanto a Império de Casa Verde vai contar "um Brasil afromusical", em desfile sobre tambores africanos. No Rio, a Mangueira apresenta "As Áfricas que a Bahia canta".
Outras agremiações vão homenagear personagens bastante conhecidos do grande público e cujas vidas estão ligadas a temáticas que são pouco ou quase nunca discutidas. A paulistana Acadêmicos do Tucuruvi canta a história de Bezerra da Silva, que frequentou terreiros de umbanda. Enquanto isso, na Sapucaí, a Grande Rio e o Império Serrano falarão, respectivamente, sobre Zeca Pagodinho e Arlindo Cruz, ambos frequentadores do Candomblé.
Há ainda um grupo de escolas que trarão às avenidas histórias de personagens marcantes, mas com pouco espaço midiático. É o caso da Viradouro, que vai mostrar no desfile do Rio quem foi Rosa Maria Egipcíaca, mulher que veio escravizada para o Brasil, se tornou líder religiosa, foi perseguida, presa e entrou para a história como autora do primeiro livro escrito por uma mulher negra no país. Ou da Mocidade Alegre paulistana, que vai falar sobre Yasuke, o primeiro samurai negro da história do Japão.
O escritor, sambista e sociólogo paulistano Tadeu Kaçula lembra que temas ligados à questão das diásporas africanas e aos povos originários sempre fizeram parte do cotidiano das escolas de samba, desde que surgiram. Ele lembra que os desfiles são transmitidos para todas as partes do país, e também para o exterior, o que dá ainda mais relevância a essas manifestações.
"Historicamente, só as escolas de samba tinham esse vetor de possibilidade de contar a verdadeira história do Brasil, não a história que as pessoas classificam como 'história oficial do Brasil'. Já é histórico das escolas de samba utilizar essa narrativa, esse espaço de comunicação, esse espaço de visibilidade para poder colocar temas tão sensíveis à estrutura social do nosso país", destacou.
Apesar de reconhecer que essas temáticas sempre estiveram em voga no carnaval, Kaçula afirma que nos últimos seis anos (que coincidem com os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro) houve mais espaço para enredos que tratam de questões raciais e temas afro. Para o pesquisador, isso mostra que as escolas estão ligadas às discussões que acontecem no cotidiano e nas ruas do país.
"Quando você pensa em educação antirracista, quando você pensa num movimento anti-homofobia, enfim, as escolas de samba começam a entender que a própria população está clamando por um aprofundamento desses debates. Essa é a primeira questão. E outra questão é porque, evidentemente, esses são temas muito fortes, e que as escolas de samba, de uma certa forma, conseguem desempenhar um bom desenvolvimento de enredo, boa sinopse, bom roteiro, para poder desenvolver depois toda a parte plástica", explica.
O historiador e antropólogo Vinícius Natal, um dos autores do site Pensamento Social do Samba e ex-diretor da Vila Isabel, uma das escolas mais tradicionais do Rio, disse que as agremiações sempre tiveram pessoas preocupadas com essas discussões. Porém, esse movimento está ganhando força com maior diversidade dentro das escolas - apesar de pessoas negras ainda serem minoria em posições como de carnavalesco e pesquisadores, que ajudam a desenvolver o enredo.
"Acho que isso tem a ver com o fato de ter três carnavalescos negros no Grupo Especial. A gente tem também três ou quatro pesquisadores negros trabalhando nas escolas de samba do Grupo Especial. Muitas vezes são pessoas conectadas à história das próprias escolas de samba, ou seja, tendo família dentro das escolas, tendo uma trajetória construída, orgânica, acho que isso faz muita diferença quando você vai produzir uma narrativa", aponta.
Natal destaca que temas que perpassam as questões raciais estão também nos desfiles de grupos de acesso, formados pelas escolas que querem chegar à "elite" do carnaval, que tem transmissão em rede aberta de televisão para todo o país.
"A [escola] União de Jacarepaguá, por exemplo, fala sobre Manuel Congo e Marianna Crioula, quilombolas; você tem o enredo da Inocentes de Belford Roxo que fala sobre as paneleiras de Goiabeiras [mulheres que fabricam panelas de barro], no Espírito Santo. Você tem um manancial de narrativas que estão hoje se preocupando em exaltar essa cultura afro-brasileira", complementou.
'Olhar para dentro'
O jornalista Luiz Gustavo Thomaz, que atua na cobertura dos desfiles do Rio de Janeiro e tem larga vivência em barracões de escolas de samba, confirma que as "temáticas de negritude" tomaram protagonismo no carnaval nos últimos anos, o que garantiu, segundo ele, "oxigenação" e "retomada de vigor" para a festa.
"As escolas, carnavalescos, principalmente, começaram a olhar mais para dentro, enxergar novamente o meio em que as escolas estão inseridas. Olhar para suas origens, falar para suas comunidades, depois de tantos enredos patrocinados, com temáticas que não tinham nada a ver com o carnaval e o universo das escolas de samba", citou.
Thomaz reforça que o espaço para pessoas negras nas posições de decisão e criação das escolas ainda é pequeno, mas destaca que o assunto tem sido tema de diversas discussões para que a situação mude para os próximos anos.
"Tem ocorrido algumas reuniões, simpósios desses profissionais negros, sobre essa representatividade dos negros em algumas funções. Você tem muitos negros em bateria, muitos negros no chão de fábrica das escolas, no barracão, muitos negros cantores, mestres-sala, mas você nem tem como carnavalescos e nem como líderes, presidentes das escolas", pontua.
'Discutir quem a gente é'
Os desfiles de 2023 são os primeiros que foram totalmente pensados já no período pós início da pandemia de covid-19. Em 2020 as escolas foram à avenida pela última vez na semana do carnaval. Em 2021, as apresentações foram canceladas, e muitas escolas usaram em 2022, nos desfiles realizados em abril, os enredos que tinham sido desenvolvidos no ano anterior.
Para o jornalista Thiago Calil, que atuou como assessor de imprensa da escola de samba paulistana Tom Maior e comentarista de desfiles, a escolha de temáticas ligadas direta ou indiretamente à África tem a ver com esse momento e com a situação política e social do país.
"É o primeiro carnaval efetivamente pós pandemia, se der certo, porque o carnaval do ano passado, os desfiles do ano passado teve, mas era aquela coisa da incerteza, temas que foram discutidos antes da pandemia. Agora, não. Um carnaval todo feito pós pandemia, pós um governo onde a cultura não era o forte, onde minorias não eram privilegiadas, e não por acaso esses temas, essas pessoas que eram flagelos, vamos dizer assim, da nossa sociedade nos últimos anos, elas ganham evidência na avenida. Isso é o papel do carnaval também", pontua.
Apesar disso, o especialista afirma que a maioria das escolas e suas equipes de trabalho vão evitar referências muito diretas ao bolsonarismo, por exemplo. Para ele, a ideia é dar espaço a quem foi negligenciado.
"Pintou um desejo de discutir outras coisas, de olhar para outras coisas. O que eu vejo mais é essa questão da exaltação a grupos, a temas que não tinham destaque anteriormente. Eu acho que a gente cansou um pouco de bater nessas teclas. Acho que esse carnaval é o carnaval que a gente quer discutir quem a gente é, a gente quer discutir nossa história, nossa alegria de estar fazendo aquilo do jeito que a gente acredita de novo", encerra.
Edição: Thalita Pires