Sem laços diplomáticos oficiais há quatro anos, EUA e Venezuela devem entrar em uma nova fase de relações influenciada não somente pela oferta e demanda energética alterada pela guerra na Ucrânia, mas também pelas divisões internas da oposição venezuelana.
O fim do "governo interino" do ex-deputado Juan Guaidó, decidido pelos próprios partidos que eram aliados do "presidente autoproclamado", sepultou a estratégia de paralelismo da direita na Venezuela que, desde 2019, apostava em desestabilizações e tentativas de golpe, que contaram com o apoio do ex-presidente dos EUA Donald Trump para derrubar o governo venezuelano.
Apesar de ainda tentar manter um Parlamento paralelo, esse setor da oposição enfrenta cada vez mais divisões internas que tendem a se aprofundar agora com o início de um processo de primárias que busca definir uma candidatura presidencial unificada para as eleições previstas para 2024.
No exterior, o fracasso do "interinato" já começa a apresentar suas sequelas, criando vácuos políticos, econômicos e diplomáticos em instâncias paralelas que foram criadas pela oposição e assumidas como oficiais por diversos países.
Nos EUA, o futuro da embaixada venezuelana em Washington é incerto. Segundo diversos jornais norte-americanos e europeus, o governo estadunidense colocou sob sua custódia a sede diplomática no último dia 6 de fevereiro. A medida ocorreu após os aliados de Guaidó que ocupavam postos fictícios de "diplomatas do governo interino" deixarem os cargos.
Apesar da decisão estar respaldada pela Convenção de Viena, que obriga que o Estado receptor da embaixada resguarde seus bens enquanto a mesma estiver desocupada, ela só deverá ser solucionada quando os países retomem relações ou decidam abrir mão, reciprocamente, de suas sedes diplomáticas.
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O cientista político Ricardo Seitenfus, especialista em política externa e ex-funcionário da Organização dos Estados Americanos (OEA), explica ao Brasil de Fato que, embora legal, a situação não pode ser permanente.
"A ideia é preservar os bens materiais, os arquivos, o próprio prédio da embaixada até que se resolva essa situação. Essa situação não pode durar indefinidamente, porque um dia haverá o fechamento da embaixada, o confisco da embaixada, ou a retomada das relações diplomáticas", diz.
Seitenfus, no entanto, aponta que uma saída para o destino de ambas as embaixadas, em Washington e em Caracas, poderia envolver um terceiro Estado como mediador.
"Há também a possibilidade de que os dois governos, dos Estados Unidos e da Venezuela, nomeiem um terceiro Estado para que represente seus interesses. Deve ser um país escolhido de comum acordo, mas isso implica em um certo diálogo diplomático que não está ocorrendo agora", afirma.
Washington se move
Frente ao quadro de instabilidade no interior da oposição venezuelana e necessitando dialogar com Caracas em busca de petróleo, Washington tenta se mover para defender seus interesses evitando altos custos políticos internos com setores mais conservadores democratas e republicanos.
Para Alex Main, diretor internacional do Centro de Pesquisa para Economia e Política (CEPR) dos EUA, a condução da política externa do governo do presidente Joe Biden em relação à Venezuela “cria aberturas” que não existiam durante a política de “pressão máxima” adotada por Trump.
"Há uma mudança na estratégia do governo Biden, porque eles não estão apoiando os mesmos setores radicais da oposição que o governo Trump estava apoiando. Então eu acho que isso cria algumas aberturas. Mas, no final das contas, segue sendo problemático que os Estados Unidos tenham tanto controle sobre o que deveria ser uma discussão política interna soberana", diz.
Ao Brasil de Fato, Main afirma que problemas internos da política estadunidense, no entanto, seguem influenciando a relação da Casa Branca com Caracas e podem atrasar medidas mais claras para uma reaproximação.
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"Não reconhecer o governo que realmente está comandando o país é uma política extremamente improdutiva que fere a Venezuela e os Estados Unidos e é exclusivamente baseada em considerações políticas domésticas. As preocupações de Biden são com a política da Flórida e com alguns membros conservadores do Congresso", aponta.
Apesar disso, a Casa Branca não dá sinais de que estaria disposta a eliminar massivamente as sanções contra a Venezuela. Em novembro do ano passado, uma licença geral emitida pelo Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros dos EUA (OFAC, na sigla em inglês) permitiu que a Chevron voltasse a operar nas plantas mistas que possui participação em conjunto com a estatal de petróleo da Venezuela, a PDVSA.
A decisão foi o primeiro alívio importante no bloqueio desde que as medidas coercitivas mais duras foram impostas, em 2014. No entanto, bens e ativos financeiros venezuelanos no exterior seguem bloqueados, a dívida do país segue congelada e a PDVSA continua com diversas restrições comerciais e financeiras.
Citgo, México e eleições
Nos EUA, o caso mais grave de congelamento de ativos venezuelanos é a rede de refinarias e postos da Citgo, subsidiária da estatal PDVSA que passou a ser controlada pela oposição em 2019. Avaliada em cerca de US$ 10 bilhões, a empresa está ameaçada pela Justiça estadunidense de ser liquidada para indenizar credores privados da Venezuela.
"Até agora, os Estados Unidos tomaram medidas para proteger esses ativos, mas em benefício da oposição venezuelana, com a expectativa de que se a oposição retomasse o poder seria capaz de recuperar a Citgo", explica Main.
O pesquisador, no entanto, acredita que "há um forte consenso entre os venezuelanos para não permitir que a Citgo seja usada somente para pagar os credores e isso provavelmente vai surgir nas mesas de diálogo no México para pressionar os EUA".
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A devolução dos ativos é uma das principais reivindicações do governo na mesa de negociações com a oposição, sediadas na Cidade do México. Os diálogos, entretanto, voltaram a estar ameaçados após Maduro denunciar que o acordo alcançado na última rodada de conversas que previa a liberação de mais de US$ 3 bilhões de dólares de recursos bloqueados não foi cumprido pela oposição.
Já os opositores exigem do governo a elaboração de um cronograma eleitoral para o pleito presidencial de 2024 e agora se concentram em realizar um processo de primárias para definir uma candidatura única.
"Com uma visão pragmática de todos os lados é possível existir conversas mais construtivas", afirma Main. Para o pesquisador, todos os agentes envolvidos - governo, oposição e EUA - parecem querer a realização de eleições.
"As negociações tem mais chance de dar certo agora que não teremos [o opositor venezuelano] Leopoldo López e [o senador republicano] Marco Rubio tomando decisões e isso estava determinando a agenda do que era aceitável para a oposição. Agora, a oposição que ainda possui alguma base eleitoral quer voltar à prática política normal e isso inclui fazer campanhas para as próximas eleições", diz.
Edição: Thales Schmidt