Tragédia

'Acordei com a água batendo nas costas': moradores do litoral norte de SP relatam tragédia

Moradores contam o terror vivido enquanto as chuvas atingiam São Sebastião e cidades vizinhas no último final de semana

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

Ouça o áudio:

Casa da jornalista Maria Teresa Cruz tomada pelas águas que inundaram a praia de Camburi, em São Sebastião - Foto: Maria Teresa Cruz

"Eu fui dormir no quarto e, por volta de 3h, eu senti a água batendo nas minhas costas. Quando olhei para o lado, os meus pertences, que ficam ao lado da cama, estavam boiando. Era uma água com muita lama. Acendi a luz e fui na cozinha, a casa estava toda tomada por água." O depoimento é da jornalista Maria Teresa Cruz, conhecida como Tetê, que mora na praia de Camburi, em São Sebastião, uma das áreas mais afetadas pelas chuvas intensas que atingiram o litoral de São Paulo no último final de semana.

Até a manhã desta quarta-feira (22), 60 pessoas ainda estavam desaparecidas e 48 mortes já haviam sido confirmadas pelo governo de São Paulo, sendo 47 em São Sebastião e uma em Ubatuba. Ao todo, são 1.730 desalojados e 766 desabrigados pelas enchentes e desabamentos. Tetê recorda o que viu quando conseguiu sair de casa e acessar a rua, no domingo (19).

Leia mais: Chuva recorde: temporais como o que assolou o litoral paulista são cada vez mais frequentes

"Era uma cena de apocalipse. Árvores e postes no chão, lama para todo lado, casas destruídas e carros abandonados. Eu perdi todas as minhas roupas, não tenho nada aqui, tô usando roupas emprestadas. Consegui salvar um jogo de lençol, duas cobertas e uns colchões. Duas geladeiras e um fogão ficaram submersos. Meu carro deu perda total, está com lama até o teto, eu acionei o seguro, mas não sei o que vai acontecer", explica a jornalista, que estava em um bloco de carnaval na noite de sábado (18), quando as chuvas começaram na região.

"A força da chuva fez com que eu e meus amigos ficássemos esperando uma amenizada para sair, mas só piorava. Na rua da minha casa, já havia pontos de alagamento. Mesmo assim eu arrisquei, a água já estava acima do pneu, mas cheguei em casa", lembra a jornalista, que calcula que o nível da água tenha chegada a 1,60 metros, dentro da casa.

Tetê conta que, quando chegou em casa, por volta da meia noite, já havia água na varanda. "Mas ela é baixa. Jamais imaginei, nem nos piores pesadelos, que a água fosse entrar em casa, mas foi o que aconteceu."

Para aproveitar o carnaval, um grupo de amigos estava hospedado na casa da jornalista, que tem o andar térreo e um mezanino, onde Tetê acomodou os convidados. A anfitriã dormiu no quarto do piso inferior da residência.

Quando saiu da cama, após ser despertada pela água, a água já batia em seus joelhos. "Então, eu tomei a decisão de subir no mezanino, onde uns convidados estavam. De lá, ficamos observando a água subir, sem poder fazer absolutamente nada."

Tetê conta que às 5h já não havia energia elétrica no bairro e às 7h todas as comunicações foram cortadas. "Não conseguíamos fazer nem ligação com o celular, nada. Nós descemos do mezanino e começamos a buscar ajuda para sair de lá. Na rua de casa, a água estava na altura da minha cintura ainda e eu comecei a ter dimensão de tudo que tinha acontecido."


São Sebastião foi a cidade mais atingidas pelas chuvas / Rovena Rosa/Agência Brasil

"Sem precedentes"

Morador há mais de 30 anos de Camburi, o comerciante Marcos Paulo Daniele, presidente da Associação de Surf de Camburi (Ascam), viu o mesmo cenário que Tetê, quando amanheceu o domingo.

"O que aconteceu dessa vez foi sem precedentes, nunca vi isso, uma calamidade. Muitas pessoas perderam casa e a vida", lamentou Marcos Paulo. "Eu estava em casa, que fica na avenida principal de Camburi, mas ninguém conseguia dormir, porque a chuva estava muito forte. Nunca tinha entrado água na minha casa, mas dessa vez entrou. Tivemos que levantar os móveis e fui dormir na minha loja, onde acolhi outras pessoas. Era uma chuva surreal, muita água, sem parar."

A jornalista Liora Mindrisz mora em Boiçucanga, ainda dentro de São Sebastião, e diz que estranhou o volume de água. "Na noite de sábado para domingo tivemos uma chuva surreal, algo bem assustador e eu acordei para ver a chuva, porque os barulhos eram muito estranhos. Eu não moro perto do mar, moro perto da cachoeira e minha casa não está perto de encosta, mas os vizinhos do outro lado da rua estão encostados no morro", conta.

Mindisz recorda que, às 3h da madrugada, o grupo da comunidade em um aplicativo de conversa já estava movimentado. "Muita gente já estava desabrigada, sem conseguir voltar para casa e pedindo abrigo para filhos e familiares."

Boiçucanga ficou sem energia durante todo o domingo e o restabelecimento veio somente na segunda-feira (20), pela manhã. Mindisz conta que não conseguiu usar o celular para manter contato com amigos e familiares. Sabedores de que a cidade atua no limite de sua capacidade hoteleira durante o carnaval, a família da jornalista se preparou para o feriado prolongado.

"A gente já conhece a cidade durante o carnaval, ela fica muito cheia, então a gente sempre vai no mercado antes, pra não precisar sair durante o ferido. Por isso, minha casa estava abastecida", conta. A precaução tem ajudado Mindisz. Em São Sebastião, não há mais alimentos e água nos supermercados e os moradores dependem de doações que chegam por helicóptero.

"Arrecadamos muito dinheiro para comprar colchão para as pessoas, itens de higiene, roupas íntimas, limpeza, comida, enfim, um volume alto de doações. Tem, inclusive, atendimento psicológico de forma voluntária", encerra Mindisz.


Mercados estão com as prateleiras vazias / Foto: Divulgação

Edição: Nicolau Soares