QUADRINHO NACIONAL

Após mais de um século, Brasil vê universo dos quadrinhos preenchido por artistas indepententes

Mesmo fora do eixo comercial, ilustradores dão nova cara e novo significado às HQ´s na atualidade

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Coletânia de Quadrinhos Afroamazônidas, produzida por jovens artistas descendentes de pretos e indígenas - Reprodução
Não basta ter um personagem negro, é preciso pensar como essas pessoas estão sendo representadas

A primeira história em quadrinho brasileira foi criada em 1869. Naquele ano, no dia 30 de janeiro, nascia: "As aventuras de Nhô-Quim e Zé Caipora", o primeiro herói brasileiro. É por isso que a data foi escolhida como o Dia do Quadrinho Nacional. Mais de um século mais tarde da obra de Angelo Agostini, o Brasil vê este universo ser ocupado pelos quadrinistas independentes. 

O designer e pesquisador em cultura Pop e Quadrinhos Leonardo Rodrigues avalia o momento atual como histórico, na medida em que, pela primeira vez, o cenário tem sido ocupado por quem nunca teve voz, nem vez. 

“Pensando que uma editora é uma empresa, então talvez vão ter ali questões que excluem os próprios artistas, pessoas negras, pessoas LGBTs, pessoas indígenas e pessoas não brancas, que por uma série de razões não acessam esses espaços historicamente”.


O ilustrador e pesquisador Leonardo Rodrigues busca entender em suas pesquisas como os quadrinhistas negros vem redesenhando a história / Reprodução 'Bem Viver TV'

Ainda segundo Rodrigues, “pensando um pouco na sorte com a linha independente, ele herda muito do movimento do Fanzine, de outras publicações independentes da década de 1970, muito movimento dentro de universidades, publicações jornalísticas, artísticas; de pessoas que então que não conseguem ingressar nas editoras ou não querem ingressar nesses espaços, mas querem viabilizar suas ideias, suas produções, suas artes… Então, acabam encontrando outras formas de viabilizar essas ideias, essas produções”, conclui. 

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O ilustrador e pesquisador em cultura Pop e Quadrinhos Leonardo Rodrigues busca entender em suas pesquisas como os quadrinhistas negros vem redesenhando a história e assumindo o protagonismo nos chamados HQ´s. Segundo ele, para entender a questão do artista negro no quadrinho é preciso voltar no tempo para refletir sobre o que é o artista negro no Brasil. 

“Então eu eu me aproprio um pouco dessa discussão da figura do negro enquanto artista no Brasil que por muitos anos se a gente for pensar por exemplo no Barroco Brasileiro né? Com Aleijadinho e outros artistas. Eles não eram vistos como artistas e sim como artífices, como pessoas que faziam um mero serviço e de como essa figura do negro nas artes ela foi progredindo com muito custo ainda, muito muito mesmo. Então o quadrinho herda todas esses acúmulos, todas essas dificuldades que essas pessoas negras enfrentam em outros campos”, afirma. 

A coletânea de quadrinhos afroamazônida Zagaia foi lançada no Pará em 2022. Idealizado e organizado pelo artista e pesquisador Elton Galdino, a publicação surgiu de rodas de conversas entre dez artistas descendentes de negros e indígenas.

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“Não basta ter um personagem negro e 'amazônida' na historia, é preciso pensar como essa pessoas está sendo representada. Então dessas rodas de conversa surge a Zagaia, que posteriormente a gente distribui para bibliotecas e escolas públicas”, ressalta. A palavra Zagaia significa uma lança africana, usada pelos povos originários para caça, pesca e guerra.

"Existe no Pará uma efervescência cultural e a gente precisa que essa produção escoe para a fora do estado entre elas pela nossa sobrevivência, por questões financeiras e tudo mais”, complementa Galdino. 

A revista Balão gestada nos diretórios acadêmicos da USP por Laerte e Luiz Gê é considerada um marco por ser a primeira publicação independente brasileira de quadrinhos.

“Você tinha fanzines que falavam sobre quadrinhos, cinema, mas não tinha a publicação autoral. A balão fez isso, publicar os quadrinistas, então era também um quadrinho político”, destaca Douglas Utescher, ao fazer um panorama histórico do surgimento da publicação.


O quadrinho afroamazônidas tem acessibilidade para pessoas PCDs, com prefácio em Braile e QRCode / Reprodução - Redes Sociais

“A balão depois inspirou diversas outras revistas também em diretório acadêmicos, teve muito essa proximidade com as universidades”, acrescenta. 

Douglas é um dos criadores da Ugra, uma das principais lojas especializadas em produção independente, de quadrinhos, zines e outras publicações. A loja tem um selo próprio de publicações e sempre posiciona contra grandes redes que pressionam as pequenas livrarias.


A loja da Ugra tem um selo próprio de publicações e sempre posiciona contra grandes redes que pressionam as pequenas livrarias e artistas independentes / Reprodução - Redes Sociais

Em Belo Horizonte (MG), a artista Line Lemos conta em seu quadrinho ‘Fessora’ da experiência de ser professora na rede pública infantil 

“É um quadrinho autobiográfico que fala dessa jornada do professor, do afeto, da relação com os alunos, e das condições de trabalho também. Essa não é uma experiência só minha, mas de muitos professores”, ressalta. 

Entre os quadrinistas, é interessante também o senso de coletividade que é bem forte, com diversas ações e organizações que fomentam a cena do quadrinho independente. 

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O pesquisador em cultura Pop e Quadrinhos Leonardo Rodrigues traça uma expectativa otimista de futuro para o setor. 

“Eu acredito numa maior ampliação do quadrinho nacional nesses próximos anos. É uma uma consolidação, uma maior permeabilidade e eu espero também que novos caminhos, novas possibilidades, que cada mais artistas negros, indígenas, LGBT's, pessoas não brancas no geral e outros grupos que nem sempre eh e outros grupos que nem sempre tem um espaço que merecem, que precisam, que elas possam ecoar suas vozes por tantas outras mídias, inclusive pelos quadrinhos”. 

Edição: Douglas Matos