Em novembro, representantes da Philip Morris e British American Tobacco se encontraram com presidente e gerente da Anvisa para falar dos dispositivos de tabaco aquecido proibidos no Brasil.
No relatório, a área técnica da Anvisa ressaltou que os DEFs – seja os compostos por tabaco aquecido ou com nicotina líquida – causam dependência, não são isentos de riscos à saúde, mesmo que liberem quantidades menores da substância, e que não há estudos de médio e longo prazo que avaliem os impactos desses produtos à saúde humana.
“Os estudos que existem até hoje não determinam nenhum benefício desses produtos, nenhum efeito terapêutico no sentido de servir para ajudar as pessoas a deixarem de fumar”, explica Vera Luiza da Costa e Silva, médica sanitarista e pesquisadora do Centro de Estudos sobre Tabaco e Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fiocruz. “Muito pelo contrário: o que se tem notado é um boom de consumo, inclusive entre adolescentes, nos países onde foram liberados”.
As decisões em torno da liberação de dispositivos eletrônicos não se dão sem pressões por parte das empresas do setor. Quatro meses depois da decisão da Anvisa, representantes da Philip Morris e BAT já voltaram a se reunir com diretores da agência.
No dia 21 de novembro, o diretor-presidente do órgão, Antônio Barra Torres, se reuniu com cinco representantes da BAT no Brasil. No início daquele mesmo mês, cinco representantes da Philip Morris já haviam se encontrado com Stefania Schimaneski Piras, gerente-geral de fiscalização de produtos fumígenos da agência.
Em resposta aos questionamentos da reportagem, a Anvisa disse que estuda a possibilidade de abertura de consulta pública sobre o tema nos primeiros meses deste ano. Afirmou também que representantes da BAT apresentaram atualização de estudos científicos e dados relacionados ao tema e que a reunião com a Philip Morris ocorreu para discutir e esclarecer pontos da AIR sobre os DEFs, conforme mostram as atas das reuniões obtidas pela Repórter Brasil via Lei de Acesso à Informação (LAI).
Questionada sobre o motivo e o teor da reunião com a agência, a Philip Morris disse apenas manter “diálogos com a Anvisa sobre os mais diversos assuntos regulatórios, pertinentes ao nosso negócio”. Já a BAT não respondeu aos questionamentos sobre a reunião com a agência enviados pela Repórter Brasil. Leia as respostas completas das multinacionais e da Anvisa aqui.
Vera Luiza, que entre 2014 e 2020 esteve à frente do Secretariado da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco da Organização Mundial da Saúde (OMS), afirma que reuniões desse tipo são comuns e que precisam seguir determinadas regras. “Como a Anvisa é a agência regulatória, é natural que ela tenha contato com o setor regulado, que é a indústria do tabaco. O que se preconiza é que essas reuniões sejam feitas nas dependências da Anvisa, que tenham testemunha, e que tenham uma agenda previamente definida e de conhecimento público”, pontua.
Turismo tabagista
Numa manhã chuvosa de novembro na gaúcha Santa Cruz do Sul, conhecida como capital nacional do tabaco, nove representantes da multinacional Philip Morris, entre diretores e funcionários das áreas jurídica e de sustentabilidade, receberam a reportagem da Repórter Brasil para mostrar como a fabricante de cigarros planeja construir “um mundo sem fumaça” – um conceito que simboliza a trajetória de transformação prevista pela empresa, que quer reduzir a fabricação de cigarros tradicionais, mas inclui sua substituição pelos dispositivos eletrônicos e até por pastilhas de nicotina sabor menta.
Aquele dia todo foi dedicado a uma tour com equipe da empresa, que incluiu uma visita à uma propriedade de uma família fornecedora de fumo e um passeio pela fábrica da Philip Morris na cidade, com 11 máquinas operando seis dias por semana em três turnos para fabricar 385 maços por minuto. Em um ano, são 15 bilhões de cigarros.
Um dos funcionários da multinacional encarregado de apresentar o reposicionamento da marca era Alexander Nepper, que voou da Dinamarca para aquela sala de conferência no principal hotel de Santa Cruz. Gerente de assuntos regulatórios da Philip Morris no país nórdico, Nepper participou do encontro fumando um IQOS da empresa: um dispositivo que aquece eletronicamente o tabaco, liberando nicotina em suas baforadas.
Num cigarro tradicional, a substância é liberada por meio da combustão. O produto também difere dos cigarros eletrônicos conhecidos como vape, que usam nicotina líquida, produzida em laboratório.
O IQOS de Nepper era customizado e trazia a frase “Thank you for smoking” (“Obrigado por fumar”). A frase faz sentido para a multinacional, que quer gradualmente parar de fabricar cigarros tradicionais e produzir exclusivamente “alternativas de risco reduzido” aos fumantes.
Nessa aposta pela produção de Dispositivos Eletrônicos para Fumar (DEF), a empresa afirma que já investiu, desde 2008, mais de US$ 9 bilhões em pesquisa e desenvolvimento de produtos. “Nosso objetivo é que em alguns anos tenhamos que lembrar às pessoas que a Philip Morris já foi uma fabricante de cigarros”, diz Nepper em sua apresentação de PowerPoint. A meta, explica, é que a empresa pare de vender cigarros no Japão e Grã-Bretanha em 2030.
Em 2021, a Philip Morris adquiriu as indústrias farmacêuticas britânicas Fertin Pharma e Vectura Group e americana OtiTopic para expandir seu portfólio nas áreas de saúde e bem-estar. Mas um “mundo sem fumaça” não é um mundo sem cigarro e sem o vício da nicotina. Nepper trouxe da viagem uma pequena lata com pequenos sachês da substância em pó, produzida com aditivos de sabor menta que são colocados na língua e derretem como uma bala. O produto passou de mão em mão, recebendo olhares curiosos. “Posso ficar?”, pediu, animada, a assessora de imprensa da companhia, na saída da apresentação. “Claro, só preciso garantir que vou ter uma dessas para o voo de volta”, respondeu, entre risos, o dinamarquês.
Radicalismos e perseguições
O passeio imersivo organizado pela Philip Morris incluía uma entrevista com representantes da Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra). Representantes da multinacional acompanharam as perguntas da reportagem sobre as principais demandas dos fumicultores brasileiros.
A jornada extenuante durante a colheita, a falta de previsibilidade de lucro, as doenças relacionadas à atividade. Nada abala a certeza de Marcílio Drescher e de Romeu Schneider, tesoureiro e secretário da Afubra, de que o cultivo de tabaco é a única alternativa economicamente viável para as pequenas propriedades do Sul do país.
Em entrevista à Repórter Brasil em novembro de 2022, o temor que eles expressavam era em relação aos “radicalismos” do novo governo eleito no mês anterior. “O receito maior está na radicalização e no problema ideológico, que prevalecem na decisão deles”, disse Romeu Schneider. A entrevista ocorreu antes de vândalos inconformados com a derrota do ex-presidente Jair Bolsonaro invadirem e depredarem o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e a sede do Supremo Tribunal Federal (STF), Brasília, no dia 8 de janeiro.
Marcílio Drescher afirmou, com uma ponta de saudade, que “Bolsonaro parou de perseguir o setor”, citando a tentativa de extinção da Conicq como o grande feito do governo de extrema-direita. Conicq é a Comissão Nacional para Implementação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, criada em 2003 para subsidiar o governo federal nas discussões do tratado internacional para o controle da epidemia de tabagismo e os efeitos da fumaça do cigarro. O tratado entrou em vigor naquele mesmo ano e é ratificado por 182 países, entre eles o Brasil, um dos líderes no processo de negociação para implementação do acordo na Organização Mundial da Saúde (OMS).
A volta do Partido dos Trabalhadores ao poder foi recebida como um duro golpe para os representantes da Afubra, que afirmam que o atual governo persegue os produtores de tabaco. Contra o PT, vale até apelar para informações falsas. “Esse governo que vai assumir tem na sua ideologia uma coisa: perseguir o tabagismo, o tabaco, e está propenso a liberar as drogas. Nós não conseguimos entender o que está por trás disso. Se a defesa é da saúde, por que estão propensos a liberar drogas muito mais prejudiciais?”, discursou Marcílio Drescher.
Quando questionado sobre a fonte dessas informações, sobre quais drogas seriam essas e como isso seria feito, ele disse, vagamente, que “tem campanhas, todo mundo fala”.
Após ser lembrado que o tabagismo e a exposição à fumaça do tabaco é um problema de saúde pública – mais de 8 milhões morrem todos os anos, estima a OMS – e que o Estado brasileiro se comprometeu internacionalmente com a redução de seus danos, Romeu Schneider resumiu assim o pensamento do setor: “Enquanto existir ser humano na face da terra, vai ter fumante. Pode restringir, pode proibir, pode fazer tudo o que quiser, mas terá consumidor. Se tem consumidor, alguém vai fornecer a matéria prima”.