A mudança de governo entre o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) trouxe sentimentos de esperança e alívio para o movimento de mulheres no Brasil.
Um aspecto desta transformação é a presença mais expressiva de mulheres no corpo do governo: dos 37 ministros, 11 são mulheres, o que é um recorde no país, ainda que seja um número baixo. Pela primeira vez, o Ministério da Saúde tem uma mulher à frente, Nísia Trindade. Entre o eleitorado feminino, que constitui 52% do total, mais da metade votou no petista.
Ainda que esteja mais próximo das políticas defendidas pelo movimento feminista, o governo Lula existe dentro dos marcos de um Estado e de uma política historicamente hostil às mulheres e massivamente ocupada por homens. Não à toa, o número baixo de mulheres nos ministérios é um recorde.
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Nalu Faria, coordenadora da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) no Brasil, acredita que as limitações e as contradições do governo Lula estarão presentes em todos os campos, não apenas nas políticas direcionadas às mulheres.
"De um lado, existe o reconhecimento de que é um governo que nos traz a esperança e que resgata a possibilidade de mudança, de participação popular e de diálogo com os movimentos. Mas, ao mesmo tempo, é um governo com as suas contradições, devido à correlação de forças na sociedade, à própria composição do governo e ao que significa hoje um governo com visão de transformação nos marcos do capitalismo", afirma Faria.
A superação desse quadro, acredita a coordenadora do MMM, só pode vir da capacidade do movimento em mobilizar a sociedade. As portas desse caminho podem ser abertas a partir da defesa de políticas transversais a todos e todas, mas que impactam mais diretamente a vida das mulheres, como é o caso do aumento do salário mínimo. "Com certeza nós teremos avanços, mas também limites", afirma.
A gente teve o governo Bolsonaro, com retrocessos para todas as mulheres, e agora a gente vive sob um governo de esquerda. Ainda assim, é sabido que o espaço da mulher dentro do Estado e da política é diminuto e hostil, independente da orientação ideológica do governo. Como o movimento de mulheres observa o governo atual? Quais são as perspectivas? E quais são os novos desafios?
Existem setores do movimento de mulheres com uma visão política de transformação global da sociedade. Ou seja, com uma perspectiva feminista como algo que tem que ser transversal a todas às políticas, ao mesmo tempo que compreende a importância da auto-organização das mulheres, do nosso protagonismo como sujeitas políticas. Isso é fundamental para a gente construir força política tanto em relação ao governo quanto ao Estado e à sociedade.
Então acho que nesse momento, em relação ao governo Lula, a questão é a seguinte: de um lado, existe o reconhecimento de que é um governo que nos traz a esperança e que resgata a possibilidade de mudança, de participação popular e de diálogo com os movimentos. Mas, ao mesmo tempo, é um governo com as suas contradições, devido à correlação de forças na sociedade, à própria composição do governo e ao que significa hoje um governo com visão de transformação nos marcos do capitalismo.
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É uma dimensão extremamente complexa que implica em limites, mas também só tem um sentido se a gente consegue avançar numa acumulação de força para as transformações mais gerais. Então o movimento de mulheres vê essa possibilidade das mudanças, vê a questão das contradições e entende que, para que as mudanças se sustentem, tem que ter um amplo processo de participação popular. Ao mesmo tempo, para que essa perspectiva feminista seja garantida, tem que ter essa presença protagonista do movimento de mulheres com o conjunto dos movimentos.
Concretamente, como essa dimensão transversal da perspectiva feminista pode se fazer valer no governo Lula?
Essa dimensão é importante ser pensada, porque um governo que mexe nas estruturas da sociedade no geral sempre tem impacto na vida das mulheres. A gente tem que sair dessa ideia de uma agenda específica e temática de direitos das mulheres para uma agenda do que transforma a vida das mulheres, articulando as políticas universais e as políticas de ação afirmativa.
Por exemplo, uma política de valorização do salário mínimo garante melhoria para o conjunto da população, mas tem um impacto diferenciado na vida das mulheres, porque as mulheres são a maioria da população que ganha até dois salários mínimos. Desse ponto de vista, o salário mínimo parece uma bandeira geral, mas tem um impacto concreto na mudança de vida de grupos mais discriminados.
Mas, ao mesmo tempo, a gente precisa dar segmento às lutas contra a violência contra a mulher, pela descriminalização e legalização do aborto, por um atendimento à saúde da mulher que olha o conjunto das necessidades das mulheres, etc.
A gente pode esperar do governo Lula uma gestão mais ligada às pautas gerais do que à implementação de pautas específicas, dado que é um governo de esquerda, mas dentro das limitações de um Estado capitalista?
As limitações e as contradições vão estar presentes em todos os campos. Com certeza nós teremos avanços, mas também limites. Assim como nós vamos ter limites nas políticas da reforma agrária, do combate ao agronegócio. Mas a gente não quer só políticas de conciliação. Nós queremos, por exemplo, fazer com que o trabalho doméstico deixe ser feito só pelas mulheres e queremos um trabalho de reorganização. Agora, os avanços também vão depender da nossa força social para garantir as mudanças.
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Nesse sentido, a dimensão internacional é extremamente importante, porque nós não estamos num processo isolado na América Latina, e papel do Brasil nesse cenário internacional é muito importante para a gente poder construir articulação e processos regionais.
O movimento de mulheres está preparado, por exemplo, para articular um processo de campanha de descriminalização do aborto, como aconteceu na Argentina?
No tema do aborto, nós temos uma luta histórica no Brasil. A gente tem visto em outros países que os momentos em que a gente consegue avançar na descriminalização e legalização do aborto, mesmo em governos de corte de esquerda, são momentos em que os movimentos se massificam.
Se você olhar a experiência da Argentina, tem uma luta muito antiga, onde se discute o aborto desde os anos 1970, e que desde 2005 vem com uma campanha super organizada, fazendo processos nacionais, articulando membros do legislativo, com dimensões dos movimentos e setores além das mulheres, como da saúde e educação. E, mesmo com a primeira onda de governos progressistas na Argentina, a legalização do aborto só aconteceu recentemente.
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No Brasil, nós temos essa tarefa de discutir o tema. A gente tem elementos para abrir um debate com a sociedade, e eu acho que um governo democrático e popular também pode ser proativo nisso.
Nossa capacidade vai vir da articulação, mobilização, diálogo, pressão e conexão com outras lutas e com outros movimentos. A gente acha sempre que não tem que separar as agendas. Não tem agenda econômica e agenda política. A gente tem olhar a relação entre as agendas. A dimensão da autonomia das mulheres sobre o seu corpo não está separada das outras lutas. Não tem como a gente falar de democracia se as mulheres não têm o direito de decidir sobre os seus corpos.
Essa é uma das tarefas do movimento de mulheres. Mas qual é a força movimento de mulheres nessa correlação de forças que a gente vive hoje?
Nós temos várias dificuldades. Primeiro nós temos um movimento muito grande, diverso e plural, o que mostra a diversidade das mulheres do Brasil, mas que mostra também a complexidade das nossas lutas. Nós não podemos dizer, por exemplo, que o tema do aborto tem o mesmo peso e o mesmo significado para o conjunto do movimento de mulheres.
Outro ponto é que houve um retrocesso no tema a partir do conservadorismo baseado na dimensão do fundamentalismo religioso, do reforço da maternidade, da imposição da maternidade como um destino, da culpabilização das mulheres. A gente tem uma sociedade conservadora em relação a esse tema.
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Novamente, vai depender na nossa capacidade de articular a unidade em torno de determinadas bandeiras para conseguir mobilizar e organizar. Isso é uma questão que está em aberto, mas a gente tem que olhar de que patamar a gente parte. A gente tem uma trajetória histórica da luta, mas também teve uma reação da direita nos últimos já 40 anos.
Isso está colocado no 8 de março, mas entre estar colocado e a gente construir um processo vigoroso e permanente de mobilização, tem uma distância. Mas eu acho que a gente tem condições de alterar essa situação.
De um modo geral e não só com relação à pauta da descriminalização e legalização do aborto, como a senhora analisa o movimento de mulheres atualmente?
É um movimento bastante amplo. O 8 de março, por exemplo, tem uma adesão de muitos setores da sociedade. Isso significa também uma pauta muito extensa e muito diversa, numa situação extremamente complexa da situação da opressão das mulheres.
Por isso mesmo, às vezes é um movimento que tem dificuldade de estabelecer algumas agendas mais permanentes ou algumas campanhas mais estruturadas. Mas nos últimos anos, inclusive neste período de campanha contra Bolsonaro e mesmo com o tema da pandemia, nós avançamos no processo de articulação nacional. Nesse sentido, a gente tem possibilidades de construir agendas mais permanentes.
Gostaria que você comentasse, por fim, um pouco sobre relação do movimento feminista brasileiro com os movimentos de mulheres de outros países da América do Latina.
A gente não tem uma articulação que congrega todas. Na verdade, a gente tem várias articulações e apenas alguns setores participam mais de uma que de outra. Então, por exemplo, nós construímos a Marcha Mundial das Mulheres, que é um movimento mundial, e temos um processo de construção aqui nas Américas, pelo qual a gente dialoga com outros movimentos, como a Alba [Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América], a Assembleia Internacional dos Povos, a Aliança Continental, etc. Ao mesmo tempo que a gente constrói um processo de auto-organização das mulheres, nós temos que construir um processo de aliança com os movimentos.
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Um aspecto importante que unifica os movimentos da América Latina é a discussão da colonialidade. Essa dimensão anticolonial tem que ser parte dos nossos movimentos. Eu acho que isso dá um elo extremamente importante nos movimentos de mulheres, por conectar justamente elementos da nossa memória histórica e da nossa construção cultural aqui na região.
Esse aspecto também nos faz olhar o que são os aportes das mulheres e as contribuições nossas para construção de tudo o que está aqui na sociedade, que é essa dimensão do resgate dos nossos saberes na agricultura, dos nossos saberes ancestrais, da memória histórica das nossas lutas, de como nós cumprimos um papel de articulação das relações na comunidade.
Edição: Nicolau Soares