Três servidores da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp) afirmam terem sido ameaçados e coagidos pelo ex-presidente da estatal, o coronel da reserva Ricardo Nascimento de Mello Araújo, para que pedissem demissão, em maio de 2021. Dois deles cederam à pressão e se exoneram do cargo
O Brasil de Fato teve acesso a um dossiê organizado pelo Sindicato dos Empregados em Centrais de Abastecimento de Alimentos do Estado de São Paulo (Sindbast), com o depoimento dos trabalhadores. Nos relatos, expostos abaixo, detalhes de um enredo classificado como "filme de terror" por um dos servidores.
Homens armados e identificados com insígnias policiais teriam torturado psicologicamente os trabalhadores para que admitissem culpa em um suposto esquema de roubo de energia elétrica da Ceagesp e, em seguida, pedissem exoneração.
Era 6 de maio de 2021. Passava das 10h e o engenheiro João (nome fictício para proteger a identidade do trabalhador) estava impaciente, sentado na sala de espera da 91º Delegacia de Polícia, na Vila Leopoldina, zona oeste de São Paulo, aguardando para ser escutado pelo delegado. Ao lado, seu chefe, o policial aposentado Rodrigo Manzzoni de Oliveira, que na época ocupava o cargo de gerente do Departamento de Engenharia e Manutenção da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp).
Duas horas antes, João, que era chefe da Seção de Manutenção Elétrica (Semae) da Ceagesp, teve sua rotina abruptamente interrompida por Manzzoni, que afirmava que o engenheiro havia sido citado em uma denúncia sobre furto de energia elétrica dentro do entreposto.
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A acusação que pesava sobre João era de que ele faria parte de um esquema de fornecimento clandestino de energia elétrica para permissionários da Ceagesp, pelo qual receberia propina. "Ao ouvir, argumentei com veemência de que isso era um absurdo, quando fui interrompido pelo meu superior, que disse que o presidente estava me aguardando em sua sala."
O presidente da Ceagesp era o coronel da reserva Ricardo Nascimento de Mello Araújo, ex-comandante da tropa das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), nomeado para o cargo por Bolsonaro em 23 de outubro de 2020. Em 15 anos trabalhando no entreposto, João jamais havia sido notado pela presidência da estatal.
Na antessala do presidente, o engenheiro notou que estava cercado por três assessores de Mello Araújo, "todos com distintivo da polícia à mostra". Em seguida, João foi obrigado a desligar o celular. Quando entrou no gabinete da presidência, voltou a ser acusado de liderar um esquema de ligação clandestina de energia elétrica.
"Quando ele me permitiu falar, relatei com veemência que era uma mentira. O presidente da Ceagesp me interrompeu dizendo: 'É melhor o senhor pedir demissão'. Neste momento, interrompi dizendo: 'Presidente, com todo o respeito, vou enfrentar o que for necessário, justamente porque em todo esse tempo de serviço, sempre fui zeloso e não tenho nada a esconder'", explica João.
O engenheiro conta que foi interrompido novamente por Mello Araújo. "O presidente me mostrou o crachá funcional do Sr. Pedro (nome fictício para proteger a identidade do trabalhador). 'Esse funcionário já pediu demissão'."
"A Rota te mata"
Pedro, servidor da Ceagesp, que trabalhava na Semae, havia iniciado sua jornada de trabalho, naquele 6 de maio, às 6h. Por volta de 8h, Rodrigo Manzzoni de Oliveira entra em sua sala. "Ele me informou que contra mim teriam sido encontradas irregularidades em minha conduta, como roubo de energia, visto que eu teria realizado algumas ligações irregulares para alguns permissionários... ganhando um dinheiro por fora."
Após a acusação, Pedro afirma que foi conduzido à sala da presidência "por dois policiais". "No caminho, passei a ouvir de um dos policiais a seguinte frase: 'O senhor faz parte de uma quadrilha e vai assinar seu pedido de demissão ou vai sair daqui preso, peça sua demissão, que é o melhor para você e sua família'", conta.
Pedro respondeu: "Se eu fosse bandido, roubaria um banco". "Aí, a Rota te mata", retrucou o policial, lembrando a corporação que foi comandada pelo presidente da Ceagesp, Mello Araújo. Na antessala da presidência, o servidor voltou a ouvir ataques.
"Fui atacado com as seguintes frases: 'seu verme' e 'quem é esse ladrão aí?'. Todas proferidas por assessores da presidência da companhia." Ainda na antessala, Pedro afirma ter tido seu celular tomado pelos policiais e foi obrigado a levantar a camisa para mostrar que não estaria armado.
Já no gabinete de Mello Araújo, ouviu a acusação de furto de energia elétrica e recebeu duas alternativas do presidente. "Descer no segundo andar (Recursos Humanos) e assinar meu pedido de demissão, ou sair de lá preso e algemado, com a imprensa e tudo mais."
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Pedro pediu para ver o conteúdo da denúncia e perguntou a Mello Araújo porque não foi aberta uma sindicância interna para apurar o fato. "Como é denúncia, não precisa de sindicância, é demissão direto", teria dito o presidente, de acordo com o servidor.
Após as ameaças, Pedro cedeu e foi ao segundo andar assinar a carta de demissão. No departamento de Recursos Humanos, as encarregadas do setor pediram que os policiais se retirassem da sala. "No entanto, um ficou na porta de vidro me encarando, enquanto o outro ficou na porta atrás da sala, batendo na porta, com o intuito de me intimidar."
"Ato contínuo, o policial Renato (Nobile, assistente Executivo da Presidência) me acompanhou até meu setor para que eu pegasse meus pertences pessoais e entregasse meu crachá, determinando, em seguida, que eu me retirasse da empresa", finalizou Pedro.
"Assustado e nervoso, pedi demissão"
O eletricista Antônio (nome fictício para proteger a identidade do trabalhador), que também trabalha no Semae da Ceagesp, foi o terceiro funcionário acuado por Mello Araújo e sua equipe.
Quando chegou ao seu setor, lá estava o gerente Manzzoni, que já havia abordado João e Pedro. "Ele estava com mais dois funcionários, ambos com brasão da polícia, me acusando que eu estava favorecendo o roubo de energia elétrica na Ceagesp e que eu havia sido reconhecido por um permissionário."
Antônio reagiu: "Eu sou eletricista, não cabe a mim controlar de quem a Ceagesp cobra energia elétrica". Manzzoni teria dito ao servidor que possuía a documentação que comprovava o delito e que o presidente Mello Araújo já havia lhe dado uma ordem. "Que ele queira esse problema resolvido, por bem ou por mal. Se fosse por mal, sairia de camburão para a 91ª DP."
Assim como ocorreu com João e Pedro, Antônio foi conduzido o gabinete de Mello Araújo. Na antessala, um policial lhe interpelou. "Me disse que o Pedro tinha pedido demissão e que era sábio que eu fizesse o mesmo."
Após ser revistado e ter o celular tomado, Antônio tomou sua decisão. "Já muito assustado e nervoso, achei melhor pedir demissão, sendo então encaminhado para o departamento pessoal. Nesse momento, vi o João ser conduzido à sala do presidente, mas eu não podia conversar com ele."
Sem culpa
A Ceagesp abriu, ainda em 2021, um Procedimento Administrativo Disciplinar (PAD) para apurar o possível roubo de energia elétrica da estatal. De acordo com a sindicância interna, o que havia era um acordo de rateio entre permissionários, por ausência de relógio medidor para todos, uma responsabilidade do entreposto.
"Restou comprovada a ausência de culpabilidade, por rompimento de nexo casual entre a conduta do agente e a infração detectada, demonstrada por meio das provas entranhadas nos autos do procedimento investigativo", finaliza o texto do PAD.
A Justiça determinou que Pedro e Antônio, os servidores que se demitiram, fossem readmitidos pela Ceagep. Ambos voltaram aos quadros da estatal em dezembro do ano passado.
Outro lado
O Brasil de Fato questionou a Ceagesp sobre as acusações feitas pelos trabalhadores. A reportagem também questionou a estatal sobre a presença de homens armados dentro do entreposto. Até o fechamento desta matéria, não houve resposta. Caso haja, o texto será atualizado.
O ex-presidente da Ceagesp, Ricardo Mello Araújo, não foi localizado pela reportagem.
Edição: Nicolau Soares