Desde que, no último 22 de fevereiro, veio à tona o caso dos 207 trabalhadores resgatados em situação análoga à escravidão na colheita de uva em Bento Gonçalves (RS), desdobramentos e reações tomam o debate público no Brasil. Diferente do que se poderia esperar, o caso – que implica grandes empresas como Aurora, Garibaldi e Salton – não causou um repúdio unânime.
Se essa operação de resgate, bem como outra que, no mesmo mês, tirou de condições similares 139 pessoas de uma plantação de cana-de-açúcar em Acreúna (GO), explicitam o escravismo brasileiro do século 21, falas racistas como a do vereador de Caxias do Sul (RS) Sandro Fantinel (Patriota) revelam a falta de pudor de alguns em defendê-lo.
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É nesse contexto que o auditor fiscal do trabalho Maurício Krepsky ressalta a necessidade de aumento de pessoal na Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae/CGFIT/SIT), divisão que ele chefia.
“Não conseguimos combater o trabalho escravo sentados num escritório, com ar condicionado. É necessário que tenhamos auditores fiscais do trabalho em campo para poder verificar in loco as situações”, declara Krepsky. Faz dez anos da última vez que houve concurso, em 2013.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Krepsky conta que cerca de 250 empregadores são flagrados com trabalho escravo a cada ano no país - praticamente um a cada dia útil - e explica as consequências impostas a eles.
Apesar de prevista pela Emenda Constitucional 81, a expropriação de terras de empresários escravistas nunca aconteceu, por depender de uma lei que regulamente esse processo, nunca aprovada no Congresso.
O auditor fiscal do trabalho salienta, ainda, que o perfil das pessoas resgatadas nessas condições permanece quase o mesmo a cada ano: aproximadamente 90% são homens, negros e de baixa escolaridade.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: O que acontece com as pessoas ou empresas flagradas submetendo pessoas ao trabalho análogo ao de escravo?
Maurício Krepsky: As ações de combate ao trabalho escravo contemporâneo ocorrem dentro de uma política pública que o Brasil lançou em 1995, num momento de graves denúncias. A expansão da fronteira agrícola na Amazônia e a falta de medidas adequadas em relação a trabalhadores explorados naquele momento foram fatores que levaram à criação, em 1995, do grupo de fiscalização móvel no Ministério do Trabalho, formado por auditores fiscais do trabalho.
A grande diferença desse grupo é a sua atuação interinstitucional. Participam os fiscais do trabalho, procuradores do Ministério Público do Trabalho e a Polícia Federal, que tem competência de persecução criminal, já que o trabalho escravo é um crime previsto no Código Penal, no artigo 149, e que também pode fazer sua própria investigação criminal. Também a Defensoria Pública da União, o Ministério Público Federal e a Polícia Rodoviária Federal, que garante a segurança da equipe em locais geograficamente isolados. Todas essas instituições fazem parte de uma grande força-tarefa histórica no combate ao trabalho escravo desde 1995.
Hoje, primeiramente, se uma empresa ou pessoa física é flagrada submetendo trabalhadores à condição análoga à escravidão, ela estará sujeita a essa ação fiscal trabalhista. A primeira determinação é parar a atividade e levar os trabalhadores para um local digno e seguro. Depois, os auditores fiscais do trabalho notificam as empresas a regularizar ou quitar todos os direitos trabalhistas pendentes. Distribuem o seguro desemprego, uma política pública em vigência desde 2004, e o trabalhador recebe um salário mínimo em três parcelas após o momento do resgate.
A empresa estará sujeita a todas as infrações verificadas no âmbito da ação fiscal, que serão objeto de um auto de infração. Se a empresa não conseguir se eximir da responsabilidade, poderá ser incluída no cadastro de empregadores que tenham submetido trabalhadores à condição análoga à escravidão, mais conhecido como a "lista suja do trabalho escravo". Essa é uma ferramenta de transparência pública que existe desde 2003. Além disso, a polícia pode abrir uma investigação pelo crime previsto no artigo 149 do Código Penal.
E expropriação de terra nunca aconteceu, né?
Não. A Emenda Constitucional 81 previu essa possibilidade, no entanto, é uma norma de eficácia limitada que depende de uma lei que regulamente esse processo e essa lei nunca foi feita. Por várias vezes tentou-se avançar com a tramitação no Congresso, mas isso não ocorreu. Então, até hoje não foi colocado em prática.
Por mais que tenhamos mais de 250 empregadores flagrados com trabalho escravo a cada ano, em média - a exemplo do ano passado, foram 256 - nenhum caso teve como desdobramento a expropriação de terras ou de bens e imóveis.
Como foi o combate ao trabalho escravo nos últimos quatro anos, sob o governo Bolsonaro?
Atualmente nós temos um grande problema de falta de pessoal para atuar no combate ao trabalho escravo. Nós não conseguimos combater o trabalho escravo sentados num escritório, com ar condicionado. É necessário que tenhamos auditores fiscais do trabalho em campo para poder verificar in loco as situações.
Um grande problema que já vem se arrastando há muito tempo é a falta de concurso público para o cargo. Isso torna a atuação do combate ao trabalho escravo um desafio cada vez maior, porque com o passar do tempo, os auditores vão se aposentando e não temos a reposição esperada.
Existe alguma perspectiva de melhoria na estrutura do combate ao trabalho escravo no próximo período?
Houve pedido, sim, da Secretaria de Inspeção do Trabalho para que se autorize novo concurso. Internamente, houve um aumento das equipes. Em 2017, havia 12 auditores fiscais do trabalho para um grupo dividido em 4 equipes que atuavam em todo o território nacional. Hoje, temos 24 auditores fiscais do trabalho, divididos em quantas equipes forem necessárias, a depender do tamanho da operação.
Então, hoje isso é um desafio. Conseguimos repor a força de trabalho exclusiva do combate ao trabalho escravo nesses últimos anos, mas não é suficiente.
Só no ano de 2022, 2575 pessoas foram resgatadas. Qual é o perfil das pessoas que são submetidas ao trabalho escravo contemporâneo no país?
A cada ano, o Ministério do Trabalho e Emprego divulga os dados por meio do portal Radar SIT, que pode ser consultada por qualquer pessoa.
O perfil se mantém muito parecido. Geralmente de 80% a 90% dos trabalhadores são pretos e pardos. Mais de 90% são homens. A faixa etária gira em torno de 30 a 39 anos de idade. A escolaridade também é baixa, a maior parcela dos trabalhadores resgatados tem até o quinto ano fundamental incompleto. E há uma porcentagem significativa de 10% de analfabetos. Isso se verificou no ano passado. Então nós temos muito bem definido qual é a cara do trabalhador que é explorado hoje no Brasil em condições análogas à escravidão.
No fim de 2020, veio à tona um caso muito emblemático de trabalho doméstico análogo ao de escrava no Brasil. O resgate da Madalena Gordiano em Minas Gerais, que foi obrigada a trabalhar na casa de uma família dos oito até os 46 anos de idade. Esse caso teve muita repercussão midiática, passou no Fantástico, na imprensa internacional e depois disso cresceu muito o número de denúncias. Você acha que a repercussão desse caso recente no Rio Grande do Sul pode acarretar num crescimento de denúncias e resgates?
Com certeza pode ter, porque é um momento que abre os olhos da sociedade para algo que está acontecendo ali. O primeiro resgate de trabalhadora doméstico foi feito em 2017 na cidade de Rubim, em Minas Gerais.
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A partir daquele momento, ficou em cerca de quatro ou cinco casos por ano, até que chegou 2020. Foram três casos naquele ano, contando com o da Madalena. No ano seguinte, o número de denúncias aumentou muito. Em 2021 resgatamos 31 trabalhadoras submetidas a condições muito parecidas com a da Madalena.
Não só a submissão do trabalho escravo, de não pagamento de salário, de restrição de liberdade, mas também de fraude, de apropriação de benefícios assistenciais. Em 2022, também 31 trabalhadoras domésticas resgatados. Então passamos a um outro patamar após o caso da Madalena, que eu chamo até de “efeito Madalena”. Isso mudou totalmente a visão do trabalho escravo doméstico no país.
A divulgação desse caso recente, que ainda está em andamento, ajuda muito, também para que isso não seja normalizado. Todos os anos resgatamos mais de 1.000 trabalhadores. Isso precisa ganhar espaço, não só nesse caso da uva, mas também houve um caso de cana-de-açúcar em Goiás no mesmo mês de fevereiro que não teve tanta divulgação, talvez porque não envolvesse uma cadeia produtiva tão grande com empresas com nomes tão conhecidos.
Edição: Rodrigo Durão Coelho