Demandada por setores da oposição e alguns parlamentares de partidos aliados ao governo, a ideia de criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Atos Antidemocráticos se tornou um calo no pé do governo Lula no Congresso Nacional. Enquanto os entusiastas da medida ampliam a pressão política para tentar emplacar o colegiado, interlocutores da gestão seguem tentando conter a iniciativa pressionando parlamentares de partidos da base para que retirem as assinaturas que ajudaram a dar quórum ao pedido.
Especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato acreditam que, considerando o cenário político deste momento, a CPI tem mais chances de ocorrer do que de não se efetivar. É o que afirma, por exemplo, o analista e doutor em ciência política Leandro Gabiati, para quem o contexto atual já demonstra pouca capacidade do governo de barrar o movimento pela criação da comissão.
“Eu acho meio difícil essa CPI não ser instalada, até porque há muitas assinaturas, cerca de 40. E a gente tem um precedente importante, que é a CPI da Covid, ou seja, há uma decisão judicial anterior que diz que, se você cumpre os requisitos regimentais, o presidente não tem muita escolha a não ser instalar. Logicamente, há questões regimentais também sobre limite no número de CPIs em funcionamento, etc., mas acho que não seria fácil para Pacheco não instalar.”
É consenso entre atores do Legislativo a leitura de que CPIs são iniciativas incômodas aos governos de plantão porque, de modo geral, dão palanque a opositores e atraem os holofotes da imprensa, passando a concorrer com ações executadas em outras frentes. “E não se trata só do governo Lula. Qualquer governo que tenha uma pauta própria prioritária não quer CPI porque toda CPI desvia as atenções e desgasta. É um assunto que tem certo apelo, envolve governo e oposição, favorece aqueles grupos mais ideológicos”, resume Gabiati.
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Além disso, ao darem munição para parlamentares do campo opositor, as CPIs também podem colocar o Executivo na berlinda, uma vez que esse tipo de colegiado exerce poderes próprios de autoridades judiciais. Por conta disso, pode quebrar sigilos, convocar testemunhas e determinar diligências, entre outras prerrogativas. “Com o governo tendo a missão de discutir reforma tributária, discutir um novo marco fiscal, de aprovar medidas provisórias complexas que vão entrar em vigor logo mais, ter que lidar com uma CPI traria um gasto de energia importante e também poderia influenciar o diálogo com partidos de centro e de direita”, acrescenta Gabiati.
No atual Congresso, bolsonaristas têm feito coro contrário aos atos golpistas de 8 de janeiro com interesse de enquadrar gestores do governo Lula relacionados direta ou indiretamente com a segurança dos prédios públicos invadidos. Tais parlamentares buscam atrelar à imagem dos governistas a suspeita de omissão diante dos ataques.
A tentativa é uma forma de inverter a narrativa – amplamente disseminada logo após as invasões – de que extremistas apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seus financiadores seriam os responsáveis pelo ocorrido. Diante da ofensiva, a gestão do PT teme o desgaste de mandatários como o ministro da Justiça, Flávio Dino, por exemplo.
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Colegiados
No cenário atual, dois colegiados voltados ao tema batem à porta do Legislativo, sendo uma CPI especificamente no Senado e outra dirigida às duas casas do Congresso, ou seja, uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI). A primeira é liderada pela senadora Soraya Tronicke (União-MS) e colheu inicialmente 38 assinaturas, 11 a mais que o mínimo exigido pelas regras.
O pedido foi apresentado em janeiro, logo após as invasões, e por isso também é alvo de controvérsia. Pelo fato de ter sido protocolado ainda na legislatura anterior, o requerimento levanta polêmica sobre a validade das assinaturas, uma vez que os mandatos hoje em andamento se iniciaram em fevereiro.
Em outra frente, a criação de uma CPMI foi oficializada em pedido encabeçado pelo deputado André Fernandes (PL-CE), que angariou 189 apoios na Câmara e 33 no Senado. O requerimento foi apresentado no último dia 28 e o congressista vem tentando pautar o tema de lá para cá, em meio a uma articulação contrária do governo Lula para que membros de partidos aliados retirem assinaturas. As siglas MDB, União Brasil e PSD, por exemplo, que participam do governo por meio da ocupação de alguns ministérios, têm parlamentares entre os signatários do documento.
A situação tem gerado embaraço para o governo, que vive um conflito especialmente com o União Brasil. Terceira maior bancada da Câmara, o partido tem 59 parlamentares e é considerado uma força importante nas votações, mas vive dissidências internas em relação ao apoio ao Planalto. A proposta de criação da CPMI foi colocada no jogo de forças e por isso é vista como forma de atingir a gestão.
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“Existe hoje uma guerra fria entre o governo e o Congresso. Essa guerra acontece porque o governo não está dando protagonismo, não está dando papel para os deputados e senadores na formulação de políticas. Por exemplo, nessa discussão sobre reoneração de combustíveis, sobre retorno de impostos, ação de exportações, enfim, nada disso foi combinado com o Congresso”, exemplifica o doutor em ciência política e ex-professor da Universidade de Brasília (UnB) Leonardo Barreto, ao mencionar o apetite dos parlamentares por poder político.
Diante dos movimentos que o jogo tem assumido, a CPI é também um teste da base parlamentar de Lula, cuja composição ainda soa confusa por conta da presença e atuação dos dissidentes. A mudança no desenho da relação entre Executivo e Legislativo ao longo da história recente do país ajuda a explicar as dificuldades que o presidente da República tem tido para manter uma tropa fiel no Congresso. Barreto observa que o momento atual é substancialmente diferente do que ocorria na época em que o PT teve sua última gestão no poder, com o segundo governo Dilma (2015-2016).
“Era um governo que estava acostumado a liberar orçamento, cargos, a concentrar no Palácio e nos ministérios o poder de formulação e exigir fidelidade, adesão. E, quando ele chega agora, tem uma circunstância completamente diferente. Você tem o Congresso dominando as agendas, o orçamento – nesse caso, mais o Lira em particular, mas o Congresso também. Na pandemia, por exemplo, foi o Legislativo que desenhou todas as políticas mais importantes dos últimos três anos. E eles ainda detêm também o fundo eleitoral para buscar a própria reeleição. Então, o que o Lula tem a oferecer para ganhar esse pessoal? Só tem uma coisa: protagonismo”, analisa Barreto.
STF
No cenário em torno dos pedidos de CPI, alguns elementos se destacam. De um lado, está o Supremo Tribunal Federal (STF), que foi provocado a se pronunciar sobre o assunto por parte da senadora Soraya Tronicke. No último dia 16, a parlamentar acionou a Corte com um mandado de segurança pedindo que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), seja obrigado a instalar o colegiado, nos moldes do que ocorreu durante a pandemia com a CPI da Covid. Na época, a então oposição brigou pela instalação da comissão, mas enfrentou resistência de Pacheco, que jogava a favor de Bolsonaro.
No último dia 27, um despacho do ministro Gilmar Mendes determinou que Pacheco preste informações à Corte a respeito do pedido de criação da comissão. A medida faz parte do rito processual e fixa prazo de dez dias para que o mandatário responda. Enquanto corre o prazo, o governo segue na defensiva, tentando conter o movimento pró-CPI diante dos arroubos bancados por signatários dos pedidos.
“Eu acho que essa CPI dos Atos Antidemocráticos é uma maneira que o Congresso está usando para chamar o governo para negociação e para dizer assim ‘olha, se você quer a nossa parceria, você tem que dizer que papel você espera de nós’. E aí não é apenas cargo. O governo demora a entender isso. É cargo também, mas esse pessoal quer também assento na mesa de decisões”, reforça Leonardo Barreto.
Risco
Com as duas articulações de CPIs que correm paralelamente e diante do risco real de o STF resgatar o entendimento adotado à época da CPI da Covid, um outro elemento marca o cenário: a gestão Lula avalia, nos bastidores, que um colegiado dessa natureza seria menos danoso ao governo se ocorresse no Senado. A leitura é de que, na Câmara, a situação é politicamente mais desconfortável para o Planalto.
“O governo está mais bem articulado no Senado, se a gente considerar a eleição do Pacheco. Tudo bem que a eleição dele não é uma referência para medir o tamanho da base governista, mas isso dá uma noção de mais ou menos como o governo pode estar. Então, certamente a CPI do Senado seria melhor, até porque seria numericamente menor. Seria mais fácil eventualmente de controlar do que uma CPMI. Quanto maior o colegiado, menos controle o governo consegue ter”, aponta Gabiati.
No caso do Senado, uma CPI tem 14 membros titulares e sete suplentes, enquanto a montagem de uma CPMI nomeia para o colegiado 35 titulares e 32 suplentes. “Além disso, o Pacheco já tem uma fatura com o governo, que foi a eleição dele. Se você pega a distribuição ministerial, você vê que ela privilegiou muito o Senado, então, o Pacheco já é devedor do Lula. O Lira, não. Ele iria ganhar a eleição [para a presidência da Câmara] de qualquer jeito [sem apoio do PT], então, há uma diferença de cenário também por causa do presidente”, acrescenta Leonardo Barreto.
Edição: Vivian Virissimo