Combater a fome e a violência de gênero por meio de políticas públicas que levem à população os alimentos saudáveis produzidos por agricultoras que, assim, possam ter autonomia financeira. Essa é uma das principais bandeiras levantadas pelo Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) neste 8 de março, segundo conta Lucivanda Silva, que integra o movimento desde 1996.
Lucivanda nasceu em 1976 na cidade de Tauá, no Ceará, como uma entre os sete filhos de uma família de agricultores. Neta de sindicalista, a luta, em suas palavras, "já estava no DNA".
Mas não só o engajamento político e a sabedoria do trabalho no campo ela absorveu enquanto crescia. As marcas da falta de chuva, do trabalho forçado e do abuso de seu corpo fizeram com que, ainda menina, tivesse a certeza que "queria algo mais".
Fugindo da seca, Lucivanda tinha sete anos quando viajou em um pau de arara, com a sua e outras 16 famílias, até o Pará. Chegaram em um dezembro chuvoso de 1986 para trabalhar em uma fazenda onde a promessa de uma vida melhor não se concretizou.
Com dívidas impagáveis inventadas sistematicamente pelo dono da terra, foram submetidos ao trabalho escravo na lavoura. "Eu sabia que precisava sair, conhecer os quatro cantos do mundo e fazer a diferença", relata.
Quando completou 13 anos, Lucivanda conseguiu um trabalho "numa casa de família". Ali, sofreu abusos do novo patrão. Foi quando conheceu seu marido, que conseguiu organizar a ida para Minas Gerais, onde chegou com um filho de apenas 37 dias no colo. É lá que segue até hoje, na região rural da cidade de Governador Valadares. "Foi onde abri meus horizontes", diz.
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Por meio da auto-organização de mulheres e do acesso a políticas públicas como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), Lucivanda sorri dizendo que vive com dignidade do seu trabalho como agricultora familiar.
Em entrevista ao Brasil de Fato, ela conta um pouco da sua história, que tanto se assemelha à de outras mulheres com quem hoje ela luta. Explica, ainda, as principais reivindicações do MMC que, com outros movimentos, pretende levar 200 mil mulheres para Brasília na Marcha das Margaridas, em agosto.
Leia a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Como você conheceu o Movimento de Mulheres Camponesas, em 1996?
Lucivanda Silva: Eu tenho muito orgulho de ser nordestina, sou grata ao Pará que nos acolheu, mas me encontrei em Minas Gerais. Foi onde abri meus horizontes. As militantes, camponesas, é o seguinte: sempre a gente quer ajudar a outra.
Eu morava a 30 km da cidade e um dia fui no posto de saúde. Uma companheira chamada Solene chegou para mim e perguntou 'você já recebeu o salário maternidade?' Eu nem sabia que eu tinha direito. Aí ela falou 'ó, o sindicato é ali, eu vou estar lá tal dia e te atendo'. Beleza. E para mim sair de casa era muito difícil, porque o marido não deixava.
Eu falei para o meu marido que eu estava indo para consultar meu filho, e nem era. Sei que deu certo, corri atrás de documentos, e aí ela me chamou para participar de uma reunião de mulheres. Só que não era uma reunião, era um ato. Então já cheguei com o povo na rua, bandeira e tudo mais. Fiquei curiosa. Desse dia em diante, ninguém mais me segurou.
Eu sei que eu sofria muito. Fiquei oito anos sem ver minha família porque meu esposo não aceitava. E só trabalhando e trabalhando. Através do movimento eu melhorei minha vida, hoje ajudo várias mulheres. E isso é grandioso. É grandioso...
Antes eu tinha uma carroça. Aí depois eu comprei uma charrete. Tudo depois que eu conheci o movimento, que eu fui conhecendo as políticas públicas. Por exemplo, PNAE, PAA. Nós que estamos na roça, quando temos uma charrete, nossa, já estamos bem melhor. Da charrete, comprei uma moto. Aí eu quero mais, comprei uma XRL. Tudo com dinheiro da agricultura familiar.
Qual o impacto que organização com mulheres camponesas tem na sua vida?
Eu sou nordestina. Fui para o Pará e vivi o trabalho escravo do meu pai. E nunca a gente terminava de pagar. Mas eu dizia para minha mãe: "eu não quero isso para a minha vida, eu vou sair um dia".
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Aí saí com 13 anos de idade para trabalhar numa casa de família, onde eu sofri violências, abusos. Isso para mim é bem forte e dói, mas eu gosto de falar, porque eu consegui. Gosto de lutar. Sei que consegui sair dessa casa e conheci meu marido, vim para Minas Gerais.
Hoje já comprei minha moto, meu carro. Uma companheira, quando fomos apresentar os quintais produtivos, ela falou: "Lucivanda, você acredita que depois que o movimento começou a trabalhar com os quintais produtivos com a gente, eu terminei o ano com R$3 mil na conta!"
Você sabe o que é isso para uma mulher nunca teve nada? Que o marido nunca conseguiu juntar o décimo terceiro dele? Então o movimento faz isso na vida dessas mulheres. O MMC trabalha para que essas mulheres tenham dignidade. Porque quando a gente trabalha a agroecologia, a agricultura familiar, é uma forma de tirar as mulheres da violência também.
Muitas das vezes essas mulheres, nem o nome delas é colocado na documentação da terra. Isso é uma forma também de submeter elas à violência. Quando ela vai requerer um benefício não consegue, porque a documentação da terra e de tudo está só no nome do marido. Ela tem o vínculo com ele, mas não com a terra. E a gente faz esse trabalho para ter essa documentação e sair da violência.
Nesse mês de março, de luta das mulheres, quais as principais bandeiras do MMC?
Tem muita gente com fome e as mulheres camponesas produzem muito. Mas a gente precisa que tenha o escoamento dessa produção. Então essa é uma das nossas bandeiras.
Eu estava em Brasília esses dias numa reunião que a gente, em unidade com outras organizações, está preparando a Marcha das Margaridas. Ela acontece de quatro em quatro anos, levamos nossas demandas até Brasília. Esse ano vai ser nos dias 14 e 15 de agosto, queremos colocar 200 mil mulheres na rua. Da região aqui do Rio Doce, estamos preparando nove ônibus.
E nesse mês de março a gente está fazendo uma jornada de lutas com outras organizações. Vamos fazer acampamentos, atos de rua e feiras para mostrar o que nós mulheres camponesas produzimos. Não precisa comprar dos grandes para ter acesso à comida.
Edição: Nicolau Soares