Negligência

Medidas de supermercados contra trabalho escravo não detectaram caso em vinícolas fornecedoras

Medidas não foram suficientes para preservar as gôndolas das marcas associadas à exploração de trabalhadores

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Nas prateleiras do Zaffari, no Rio Grande do Sul, produtos das vinícolas estão em oferta. Rede não é signatária de pacto contra trabalho escravo - Naira Hofmeister/Repórter Brasil

Uma garrafa de vinho tinto Salton feito com uvas da variedade merlot sai por R$ 28,79 numa loja do Carrefour, a maior rede de supermercados do Brasil. A gôndola expõe o produto com um anúncio de 10% de desconto. A oferta parece um bom negócio para o consumidor, mas oculta uma realidade que incluiu tortura, racismo, xenofobia, ameaças e trabalho degradante no Rio Grande do Sul, conforme revelado em resgate de 207 trabalhadores que atuavam na colheita, carga e descarga de uvas em Bento Gonçalves, no final de fevereiro. Nesta sexta-feira (10), Salton, Aurora e Garibaldi – as três empresas que se beneficiavam da exploração dos trabalhadores – assinaram um Termo de Ajustamento de Conduta para o pagamento de indenizações aos homens, além de medidas preventivas.

O Carrefour é signatário do “Pacto pela erradicação do trabalho escravo no Brasil”. Trata-se de um acordo prevê restrições comerciais às empresas ou pessoas identificadas na cadeia produtiva que adotam práticas que caracterizam escravidão. Em nota, a empresa afirma ainda que todos os seus contratos “possuem cláusulas específicas que obrigam o fornecedor a se comprometer rigorosamente com as normas da legislação trabalhista vigentes”. 

Nada disso, porém, foi suficiente para impedir que o produto feito com origem em exploração criminosa do trabalho fosse parar em suas prateleiras. Se realmente se empenhou em monitorar a cadeia produtiva para evitar a colocação de artigos ligados ao escravagismo em suas gôndolas, o Carrefour falhou.


Operação de resgate, em fevereiro, na serra gaúcha, encontrou mais de duzentas pessoas em condições degradantes prestando serviços às vinícolas (Foto: Inspeção do Trabalho)

Duas semanas após o flagrante em Bento Gonçalves, outros gigantes do setor varejista, como Pão de Açúcar, Assaí e Zaffari continuavam vendendo vinhos e sucos de uva das marcas associadas ao trabalho escravo. Todos foram procurados pela Repórter Brasil para comentar.

O Grupo Pão de Açúcar, que também é signatário do Pacto, afirma que fez auditorias nas fábricas da Salton e Aurora em 2022 e que “ambas estavam em conformidade com os critérios avaliados pela Companhia”.  É outra evidência da insuficiência do setor em monitorar a própria cadeia.

Já o Assaí Atacadista, segundo maior do setor no Brasil, disse que está em processo de assinatura do termo de adesão do Pacto, com previsão de conclusão ainda neste semestre. A rede afirmou que “pode encerrar uma relação comercial quando o fornecedor se recusar a tomar as medidas necessárias”, mas não respondeu se as vinícolas estão nessa situação.

O Zaffari, a maior rede de varejo do Rio Grande do Sul e que também tem lojas em São Paulo, não faz parte do Pacto. Provocado pela Repórter Brasil a dizer se pretende aderir à iniciativa ou se aplica alguma sanção em casos como este, preferiu não se manifestar. A íntegra dos esclarecimentos pode ser lida aqui.

Nenhum anunciou a suspensão de contratos com as vinícolas. O rompimento das relações comerciais com as empresas envolvidas no caso não seria exótico ou descabido. A rede de supermercados Zona Sul, do Rio de Janeiro, por exemplo, anunciou que retiraria os produtos da marca Aurora de suas prateleiras.

“As empresas têm que ter ações concretas, fiscalização rigorosa das cadeias produtivas, mantendo diálogo com seus fornecedores. Se uma empresa quer ser ESG, o pilar social é essencial”, avalia Marina Ferro, Diretora executiva do InPACTO, organização que mobiliza os diferentes setores na promoção do trabalho decente há 15 anos, desde a criação do Pacto. ESG é a sigla em inglês que promete compromisso com o meio ambiente, aspectos sociais e governança. 

A InPACTO tem conversado com as redes varejistas e não descarta a possibilidade de expulsá-las do acordo – as sanções previstas no próprio documento e no estatuto variam de acordo com a gravidade de cada caso.


Loja virtual do Carrefour, que tem compromissos firmados contra o trabalho escravo, oferece desconto a vinho fabricado por empresa envolvida na exploração de trabalhadores (Foto: Reprodução)

“Estamos dialogando para entender quais são os procedimentos que as empresas [do varejo] vão adotar com relação às vinícolas, se romperão o contrato ou não. Mais do que isso, como fortalecerão suas políticas em suas cadeias produtivas, desde a contratação de fornecedores até o tratamento dado aos trabalhadores”, explica Ferro. 

Conforme o regulamento, os varejistas signatários do Pacto não podem manter relações comerciais com fornecedores que integram a “lista suja”, o cadastro de empregadores responsabilizados por mão de obra análoga à de escravo. As vinícolas serão incluídas nessa relação se condenadas pelas autoridades de fiscalização no âmbito administrativo. 

Papel do consumidor

Apesar da inação ou da baixa eficiência por parte dos grandes varejistas no monitoramento de suas cadeias produtivas, há um recurso para o consumidor insatisfeito com a manutenção de produtos contaminados com trabalho escravo nas prateleiras de seu supermercado. 

“Onde ele pode exercer a sua cidadania como consumidor? É nas redes sociais. É lá que isso tem se mostrado eficiente”, afirma Igor Britto, diretor de relações institucionais do Instituto de Defesa do Consumidor. “Marcar as empresas em publicações, os supermercados, ir em seus perfis e se manifestar. Isso gera impacto e muitas vezes um posicionamento mais firme das marcas”.

Segundo ele, a prática, conhecida como shaming (envergonhar, em tradução livre), é fácil e eficaz, mas deve ser usada com responsabilidade. “É preciso sempre confirmar a fonte da denúncia antes para evitar [a reprodução de] ‘fake news’”.  O cuidado mínimo é se basear em veículos de imprensa sérios ou órgãos oficiais.

A Associação Brasileira de Supermercados (Abras), entidade que representa os supermercados, divulgou uma nota no dia 3 em que cobra esclarecimentos das três vinícolas sobre o uso de mão de obra escrava, mas não menciona nenhuma restrição comercial.  

O caso de Bento Gonçalves respinga em um setor bilionário. Em 2021, as redes varejistas faturaram R$ 611,2 bilhões, o equivalente a 7% do Produto Interno Bruto (PIB). No ranking das maiores do setor, Carrefour, Assaí e Pão de Açúcar aparecem nas três primeiras posições; Zaffari, a única gaúcha, na décima. 

Responsabilidade das vinícolas e supermercados

Após o resgate dos trabalhadores em Bento Gonçalves, as vinícolas envolvidas no caso se esforçaram para tentar restringir a responsabilidade apenas sobre a empresa terceirizada, a Fênix Serviços de Apoio Administrativo, que contratava os trabalhadores resgatados.

A Aurora afirmou que se solidarizava com os trabalhadores resgatados, que repassava recursos suficientes à Fênix para uma remuneração digna e que não havia diferenciação entre as condições dos contratados e dos terceirizados na empresa. A Cooperativa Garibaldi disse que desconhecia a situação relatada e que seu contrato com a Fênix foi cancelado. A Salton também cancelou o contrato e afirmou que intensificou a fiscalização de terceirizados e prestadores.

A eventual responsabilização judicial das vinícolas não seria um caso isolado. O judiciário tem avançado na responsabilização de empresas que se beneficiam de violações aos direitos humanos em sua cadeia produtiva, ainda que indiretamente.

No ano passado, a Sisalândia Fios Naturais foi multada em R$ 1 milhão por usar matéria-prima com trabalho escravo na Bahia. O mesmo ocorreu com a marca de roupas Zara, condenada em 2017 por irregularidades em um de seus fornecedores.

As redes de supermercados estão uma casa mais distante na cadeia produtiva – são clientes das empresas que adquiriram o produto associado ao trabalho escravo. Mas isso não as isenta de responsabilidade, avalia Ferro, do InPACTO.

“É mais difícil de monitorar, mas não tira a responsabilidade. No final das contas é a sua reputação que está envolvida e você está de certa forma concordando em vender um produto que vem de uma origem com trabalho escravo. Exige muito trabalho, mas não tem como fugir: é preciso se comprometer de verdade e criar formas de fazer acontecer. As empresas precisam entender que se não fizerem isso vão ficar para trás”, diz.

Vendas internacionais

A Repórter Brasil também localizou produtos de duas das três vinícolas envolvidas no caso de trabalho escravo oferecidos em lojas online de supermercados no Canadá e na Europa. Um deles é o suco de uva da Salton, disponível no site da unidade canadense da rede Walmart. Já o produto suco Casa de Bento, produzido pela Aurora, foi localizado pela reportagem no site do El Corte Inglés, rede de supermercados com unidades em Portugal e Espanha. O item foi retirado do ar pela empresa após contato da reportagem. 


Rede espanhola El Corte Inglés, com lojas também em Portugal, apagou anúncio de suco de uva da Aurora após contato da reportagem (Foto: Reprodução)

Por e-mail, o El Corte Inglés afirmou que a vinícola brasileira não é fornecedora do supermercado e que o produto foi ofertado por meio de uma feira realizada em 2022 para promover produtos brasileiros, “sendo desta forma um fornecedor ocasional, e que, por esse motivo, já não trabalha conosco”.

Já o Walmart, com sede nos Estados Unidos, afirmou apenas que “não tolera trabalho forçado” em sua cadeia produtiva e que iniciou uma investigação sobre o caso, sem detalhar quais ações serão tomadas e se os produtos da Salton poderão deixar de ser ofertados. Leia as respostas na íntegra aqui.