sofrimento ofuscado

Apesar do silêncio internacional, a crise no Haiti continua

País segue sob grave crise de violência e instabilidade política, e solução é distante

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Fuga da violência: haitianas e haitianos têm deixado suas casas carregando tudo o que conseguem levar - Richard Pierrin/AFP

Nos últimos meses, o debate público brasileiro sobre a política internacional e a própria diplomacia presidencial do novo governo foram marcados pela ausência do tema do Haiti. Ofuscado principalmente pela guerra na Ucrânia, este marcado silêncio pode passar a errônea impressão de que a violência e a instabilidade que assolam o país caribenho seja tema ou de importância descartável ou de desfecho claro e simples. No entanto, esta ausência contrasta com os numerosos esforços diplomáticos bilaterais e multilaterais que têm sido empreendidos para tentar conter ou dar alguma solução diante do aprofundamento da crise multidimensional (segurança, política, humanitária) pela qual passa o país em que o Brasil teve seu maior engajamento militar desde a Segunda Guerra Mundial.

Desde a primeira parte deste texto, publicada em janeiro, a conjuntura internacional se complexificou, e o cenário de violência, instabilidade e indefinição que paira sobre o Haiti se aprofundou, exigindo novo esforço de interpretação.

A característica multidimensional da crise haitiana tem o efeito de reforçar seus diferentes aspectos. O aumento da violência cometida pelas gangues em disputas por territórios afeta o fornecimento de assistência humanitária, dificulta a realização de eleições, e piora o funcionamento de toda a infraestrutura básica de saúde, educação, alimentação, transportes, comércio e moradia do país. Recentemente, após policiais e gangues colocarem em risco instalações médicas, profissionais e pacientes, a ONG Médicos Sem Fronteiras fechou seu hospital na favela de Cité Soleil, a maior de Porto Príncipe. A ONG já tinha emitido comunicados chamando atenção à gravidade da situação e apelando ao respeito pelo sistema de saúde. Além de Porto Príncipe, a atuação violenta das gangues também tem aumentado nas regiões rurais e interioranas, como em Artibonite, ao norte da capital.

De acordo com o Escritório das Nações Unidas no Haiti, os relatos de violência indicam expressivo aumento de tiroteios, sequestros, estupros e assassinatos deliberados de homens, mulheres e crianças de forma aleatória por snipers, como táticas para difundir o medo entre comunidades sob controle de gangues rivais e induzi-las ao deslocamento.

A ausência de uma única alta autoridade haitiana que tenha sido eleita também aprofunda a crise. Tem exaurido a legitimidade das instituições políticas do país, e enfraquecido a elaboração e o cumprimento de acordos que visam alguma tentativa de resolução vindos do atual governo. O mandato do que restava do Senado – que tinha se posicionado em outubro contra a intervenção – encerrou-se em janeiro, e o primeiro-ministro e presidente de fato, Ariel Henry, governa por meio de decretos. Para boa parte da oposição armada e desarmada haitiana, Henry, que já é tido como ditador, deveria ter deixado o cargo há muito tempo, e uma intervenção internacional funcionaria como uma espécie de último recurso para que ele se mantenha no poder.

A crise também tem afetado fortemente a Polícia Nacional Haitiana (PNH). Sua relação com o primeiro-ministro chegou a um momento crítico no final de janeiro, quando policiais saíram em intensa revolta pelas ruas da capital, juntando-se a outros protestos da oposição. O grupo atirou contra a residência de Henry, ocupou o quartel-general da instituição e invadiu parte de um terminal do principal aeroporto do país em busca pelo primeiro-ministro, que retornava da Argentina após ter participado do encontro da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), onde renovou seu pedido pela intervenção internacional. O gatilho para a revolta de membros da PNH foi a morte de policiais em Artibonite, após frequentes ataques de gangues às delegacias. O fato agravou a percepção difusa entre parte da corporação de falta de apoio do governo e do Estado, devido aos baixos salários, crescentes números de mortos e falta de equipamentos. Naquele momento, os policiais de Artibonite também entraram em paralisação, demandando materiais de proteção. Mais recentemente, diversas estações policiais de comunas da mesma região foram fechadas, frente a ameaça de ações de gangues, e um programa dos EUA para tentar controlar o fluxo de migrantes e refugiados de países do Caribe e América Central acabou gerando incentivos para que os policiais deixassem o país.

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No Conselho de Segurança da ONU, a resolução sobre a intervenção internacional continua suspensa devido à posição de Rússia e China, e a atuação de uma coalizão liderada pelos EUA sem a autorização do Conselho é muito pouco provável. Possivelmente trará fortes reações políticas não somente de lideranças da sociedade civil haitiana e de movimentos internos aos EUA, mas também de toda a comunidade internacional de Estados, cujas posições a respeito do envio de militares é divergente. Além disso, o comitê do Conselho de Segurança da ONU, formado no final de 2022 para indicar os indivíduos que serão sancionados por suposta ligação com as gangues armadas, ainda não atualizou sua lista, que conta somente com o nome de Jimmy Cherizier.

Com este impasse entre as grandes potências que, por ora, afasta o prospecto da intervenção, a diplomacia interamericana tem ganhado relevância, e pode sinalizar, de alguma forma, para possibilidades inovadoras, embora ainda frágeis, de atuação internacional.

Durante encontro em fevereiro, a Comunidade dos Países Caribenhos (Caricom) repudiou a ideia da intervenção internacional no Haiti. O coletivo priorizou o socorro à Polícia Nacional Haitiana (com equipamentos, salários, alimentos e aumento do efetivo) e apoiou o acordo político elaborado em dezembro de 2022 por Henry, apontando a necessidade da sua expansão. A posição da Caricom com relação à intervenção é diferente daquela manifestada pela Celac na Argentina. Na Declaração de Buenos Aires, a Celac incentivou seus membros para que estudassem as possibilidades de participação na intervenção, conforme as opções apresentadas em outubro (S/2022/747) pelo Secretário-Geral da ONU. Ao se considerar a posição dos países caribenhos presentes tanto na reunião da Celac quanto da Caricom, uma hipótese provável é a da mudança de posição ao longo das três semanas que separaram os dois encontros.

Na diplomacia caribenha, Bahamas e Jamaica têm tido atuação de destaque nos últimos meses, crescentemente preocupadas com o aprofundamento das consequências migratórias da crise haitiana. A primeira, atual presidente da Caricom, manifestou em outubro sua disposição para enviar tropas e polícias, assim como o fez a Jamaica após a reunião da Celac – em entendimento que uniu governo e o maior partido de oposição do país. Com a mudança manifestada no posterior endosso da declaração da Caricom, repudiando a intervenção, ambos passaram a ter uma posição de mediação, adquirindo mais proeminência regional nas tentativas de solução da crise. Em gesto apoiado pela Caricom, a Jamaica também pretende hospedar um encontro para expandir e avançar as negociações do acordo de dezembro de 2022 promovido por Henry. Recentemente, uma delegação jamaicana liderada pelo primeiro-ministro Andrew Holness e pela chanceler Kamina Johnson-Smith, junto com ministros e diplomatas das Bahamas e Trindade e Tobago, visitaram o Haiti em um encontro articulado pelo Canadá, outro ator fundamental na diplomacia do atual momento da crise haitiana. Resta ainda destacar que a República Dominicana tem se posicionado fortemente pela intervenção, sendo, inclusive um de seus principais promotores.

O Canadá tem sido pressionado pelos EUA para liderar a intervenção, caso ela ocorra, mas segue relutante em enviar tropas ao Haiti, com resistências inclusive de suas Forças Armadas. Durante a conferência da Caricom, o primeiro-ministro canadense Justin Trudeau realçou o fracasso das intervenções internacionais passadas, e defendeu a posição do país, fundamentada na aplicação de sanções e apoio à PNH. Durante o encontro, o Canadá também anunciou a inclusão de dois novos nomes à sua lista de sanções individuais: Jocelerme Privert, ex-presidente (2016-17), ex-senador e ex-ministro do Interior durante o governo de Aristide, e Salim Succar, ex-chefe de gabinete do primeiro-ministro Laurent Lamonthe – também sancionado pelo Canadá. Ao longo de fevereiro, o país enviou ao Haiti um avião e dois navios de vigilância e patrulha.

O que une as posições da Caricom, da Celac, da OEA e dos EUA é o reconhecimento da plataforma "Consenso Nacional para uma Transição Inclusiva e Eleições Transparentes", criada em 21 de dezembro de 2022 por Ariel Henry como locus de negociação e ação para uma resolução da crise. Contudo, a frágil posição de Henry tem colocado grandes desafios a que este acordo tenha chances perceptíveis de sucesso. Diferentes entidades da sociedade civil haitiana e internacional entregaram cartas aos chefes de Estado durantes os encontros da Celac e da Caricom – que contaram com a presença de Henry. Nelas, além de repudiarem a intervenção, também criticaram fortemente o apoio internacional dado ao primeiro-ministro na forma de reconhecimento político internacional. As entidades também pediram a reparação histórica de diversos crimes cometidos contra o povo haitiano.

Tudo isto não acontece sem o acompanhamento próximo e atento do governo dos EUA. No mesmo momento em que os policiais ocupavam as ruas de Porto Príncipe no final de janeiro, Ariel Henry se encontrava com Todd Robinson, secretário-assistente do Bureau of International Narcotics and Law Enforcement Affairs do Departamento de Estado e Frantz Elbé, diretor geral da PNH. O encontro serviu para reforçar o apoio dos EUA à polícia haitiana na forma de envio de equipamentos. No encontro da Caricom, uma delegação norte-americana de 27 pessoas estava presente e, recentemente, o mais alto oficial para o hemisfério ocidental dos EUA, o secretário assistente de Estado Brian Nichols, também visitou o país.

Com o empasse no Conselho de Segurança da ONU e a frágil posição de Ariel Henry, a crise haitiana ainda não tem uma solução clara no horizonte, mesmo com as várias iniciativas diplomáticas que se desdobram. Frente a complexidade da situação, os silêncios no Brasil sobre o tema não têm outra serventia que adiar uma discussão que se tornará necessária para qualquer país que almeje uma posição de significativa relevância na política internacional.