A democracia israelense, que sofreu várias ameaças desde a sua criação, em 1948, pode estar diante de sua mais grave crise. Essa situação foi criada pela polêmica reforma judicial proposta pelo atual governo de extrema direita, liderado pelo premiê Benjamin Netanyahu.
Uma sondagem divulgada esta semana pelo Instituto sobre a Democracia Israelita (IDI) indica que cerca de 66% dos cidadãos do país são contra a reforma. Um número cada vez maior de israelenses afirma que Israel está prestes a se tornar um país autocrático, nos moldes da Hungria de Viktor Orbán, e que o governo está tentando destruir a democracia.
Em novembro passado, Netanyahu foi eleito para um sexto mandato de primeiro-ministro. A diferença é que, desta vez, à frente do mais radical governo de extrema direita da história de Israel. Esse novo governo está levando adiante mudanças na legislação que enfraquecem a Suprema Corte do país, no que especialistas veem como uma séria ameaça à separação de poderes em Israel e à democracia israelense.
Netanyahu, em seus primeiros governos, várias vezes defendeu a importância de um Judiciário forte como salvaguarda da democracia israelense. Assim, a atual mudança radical de posição chama a atenção, e críticos afirmam que ele age por interesse próprio, já que está respondendo por graves acusações de suborno, fraude e quebra de confiança num tribunal de Jerusalém.
Segundo o jornalista Amir Tibon, do influente jornal israelense Haaretz, o que hoje existe é uma pouco usual combinação dos interesses pessoais do premiê com as crenças ideológicas dos seus aliados ultranacionalistas e ultraortodoxos, que há muito veem a Suprema Corte como promotora de políticas liberais às quais se opõem.
Apesar da forte contestação nas ruas, o governo continua avançando com os vários projetos de lei que fazem parte da reforma judicial e que já estão no Knesset, o parlamento israelense.
Quais mudanças estão sendo levadas adiante?
Uma das maiores e mais radicais mudanças é a chamada "cláusula de revogação". Se aprovada, ela permitirá ao Parlamento simplesmente revogar, pela maioria simples de 61 legisladores, qualquer decisão da Suprema Corte, mesmo que isso implique violar as chamadas Leis Básicas, que servem de Constituição para Israel.
Formalmente, Israel não tem uma Constituição, e as Leis Básicas são uma espécie de compêndio com status constitucional que servem de esqueleto para uma futura Constituição.
Hoje, se a Suprema Corte rejeita uma lei porque ela fere as Leis Básicas, a lei cai, e o Knesset nada pode fazer. Com a mudança proposta pelo governo, o Knesset poderá, com maioria de 50% mais um, simplesmente ignorar a posição da Suprema Corte e seguir adiante com a nova legislação.
A "cláusula de revogação" é uma exigência do Partido Sionista Religioso, agremiação extremista que integra a coalizão de Netanyahu.
Outra mudança é a limitação da capacidade da Suprema Corte de supervisionar o que os legisladores fazem. Se o Knesset poderá vir a descartar decisões da Suprema Corte com maioria simples, a Suprema Corte, por sua vez, só poderá barrar uma decisão do Knesset com o voto de 80% dos juízes, o que é um percentual muito elevado. Assim, o atual poder do tribunal de proteger os direitos humanos e os direitos fundamentais será seriamente afetado.
Um terceiro ponto que o governo de Netanyahu tenta mudar é o processo de indicação de juízes, dando à coligação no poder – que inclui ultranacionalistas e ultraortodoxos – uma maioria automática na comissão responsável pelas indicações, incluindo à Suprema Corte.
Netanyahu costuma argumentar que a mudança dará aos políticos a capacidade de indicar juízes da Suprema Corte, à semelhança do que ocorre nos Estados Unidos. Porém, ele não diz que, nos Estados Unidos, os indicados precisam ser aprovados pelo Senado, que nem sempre é controlado pelo mesmo partido que está no governo. No Parlamento unicameral de Israel não há uma corte alta.
Além disso, o parlamento aprovou em votação preliminar um projeto de lei que impede um líder ocupando o cargo de primeiro-ministro de ser declarado incapaz de exercer o poder, a menos que seja por incapacidade física ou mental. A lei parece feita sob medida para Netanyahu, que enfrenta acusações de corrupção na Justiça.
"A caminho da ditadura"
A reforma proposta pelo novo governo israelense já gerou muitas críticas, principalmente dentro do próprio país. Líderes da oposição e intelectuais de prestígio têm participado regularmente dos protestos em Israel.
Em artigo no jornal Haaretz, o historiador israelense Yuval Harari afirmou que o governo está dando um golpe de Estado e que Israel está a caminho de virar uma ditadura.
Também o ex-primeiro-ministro Ehud Barak advertiu para o que chamou de perigo iminente de Israel se transformar numa ditadura se a reforma judicial for adiante. Ele instou os israelenses a "usarem de todos os meios" para salvar a democracia.
O ex-primeiro-ministro e atual líder da oposição, Yair Lapid, afirmou que Netanyahu "não recebeu um mandato do povo para destruir a democracia" do país.
Analistas não descartam que a Suprema Corte venha a derrubar a reforma judicial, se ela for aprovada, o que pode abrir uma crise constitucional sem precedentes na história de Israel, já que não está claro como o governo reagiria a essa situação.
O presidente da república israelense, Isaac Herzog, cujo papel é essencialmente protocolar, disse temer pela unidade nacional e apelou para o diálogo entre governo e oposição sobre o projeto de reforma.
Aliança com extremistas
Benjamin Netanyahu, de 73 anos, foi empossado em dezembro, pela sexta vez, primeiro-ministro de Israel, no que é o governo mais à direita desde a fundação do país, em 1948.
Entre os principais aliados dele estão dois ultranacionalistas com um histórico de retórica extremista antiárabe: Bezalel Smotrich, que lidera o Partido Sionista Religioso, e Itamar Ben-Gvir, líder do partido Poder Judaico.
Ambos vivem em assentamentos judaicos na Cisjordânia ocupada e têm como base política colonos judeus. Os dois são contra um Estado palestino e apoiam a expansão dos assentamentos na Cisjordânia.
Ben-Gvir, que é ministro da Segurança Nacional, já foi condenado por incitação ao racismo e, até alguns anos atrás, exibia em casa uma foto de um extremista judeu que matou 29 palestinos numa mesquita.
Smotrich, que já chamou a si mesmo de "homofóbico com orgulho", declarou no ano passado que o primeiro líder de Israel, David Ben-Gurion, cometeu o erro de não expulsar todos os árabes em 1948. Já ministro das Finanças de Netanyahu, ele declarou que uma localidade palestina, Huwara, deveria ser aniquilada.
Netanyahu já liderou o governo entre 1996 e 1999, e novamente entre 2009 e 2021, num total de cerca de 15 anos, o que faz dele o primeiro-ministro a ocupar o cargo por mais tempo em Israel.
Antes de regressar ao cargo, ele passou um ano e meio como líder da oposição, para onde fora depois de uma ampla coligação de oito partidos – ideologicamente diversos e unidos apenas contra ele – alijá-lo do poder em junho de 2021.
No período fora do governo, passou a ser julgado por corrupção sob acusações de fraude, suborno e quebra de confiança. Netanyahu nega todas as acusações e afirma que é vítima de uma caça às bruxas orquestrada pela imprensa, polícia e procuradores.
A derrota eleitoral em 2021 foi vista por muitos analistas como o crepúsculo da carreira política de Netanyahu, mas ele deu a volta por cima com a vitória do Likud na eleição de 1° de novembro de 2022, quando o partido conservador liderado por ele elegeu 32 dos 120 deputados do Knesset.
Anexação da Cisjordânia
O "rei Bibi", como Netanyahu também é chamado, sempre defendeu a expansão dos assentamentos de colonos israelenses na Cisjordânia. Nos governos anteriores dele, conversações de paz com os palestinos ficaram em segundo plano.
Mas Netanyahu nunca reuniu, num só governo, tantos aliados com posições tão extremistas. Smotrich e Ben-Gvir já disseram que querem legalizar assentamentos em território ocupado e sublinharam o compromisso de expandir a autoridade israelense nas terras que os palestinos querem para um futuro Estado.
No acordo de coligação com o Partido Sionista Religioso, Netanyahu se comprometeu, em princípio, a anexar a Cisjordânia ocupada ao afirmar que "a soberania israelense vai se estender à Judeia e Samaria" (nomes bíblicos para a Cisjordânia), embora esteja condicionada ao "equilíbrio dos interesses nacionais e direitos internacionais de Israel", a critério do primeiro-ministro.
Entre o que foi acertado com o Poder Judaico está a proibição da bandeira palestina em instituições educacionais e locais, bem como o estabelecimento da pena de morte para os condenados por terrorismo, acusação que costuma pesar sobre palestinos que cometem atentados a alvos israelenses.
De fato, um projeto de lei apresentado pelo Poder Judaico pretende punir com a morte aqueles que matarem cidadãos israelenses "por motivo racista ou de ódio" e com a intenção de "causar danos ao Estado de Israel" e ao "povo judeu". Da forma como está redigida, a lei puniria agressores que tenham cometido ataques contra judeus israelenses, mas não israelenses que matassem um palestino.
A ministra alemã do Exterior, Annalena Baerbock, criticou duramente a legislação. Ela afirmou que a Alemanha é contra a pena de morte em qualquer lugar do mundo e disse que a pena capital é uma prática cruel e também ineficaz como medida de dissuasão.
Desde a posse do novo governo, a violência entre israelenses e palestinos aumentou, e 75 palestinos e 13 israelenses morreram em conflitos neste ano.
França, Alemanha, Itália, Polônia, Reino Unido e Espanha exigiram o fim de todas as ações unilaterais e a incitação à violência no conflito israelense-palestino e insistiram que o governo de Israel reverta um novo plano para assentamentos na Cisjordânia. Eles se referiram à recente decisão de construir mais de 7 mil residências e legalizar assentamentos construídos sem a autorização do governo de Israel.
Os Estados Unidos, um tradicional aliado de Israel, declararam-se preocupados com a violência dos colonos israelenses contra os palestinos na Cisjordânia. O governo do presidente Joe Biden já afirmou que segue apoiando a solução de dois estados e que é contra qualquer política que a torne inviável.