Opinião

Quais os desafios e os possíveis caminhos da relação entre Brasil e China?

Brasil deve se posicionar frente às grandes transformações globais e resgatar o seu protagonismo internacional

São Paulo (SP) |
Lula entrega as credenciais para o embaixador da China no Brasil, Zhu Qingqiao - Sérgio Lima / AFP

O retorno de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao governo oferece uma oportunidade para o Brasil retomar seu engajamento em grandes discussões globais, tal qual foi objetivo durante os anos da política externa ativa e altiva entre 2003 e 2010. Contudo, muita coisa mudou nos últimos anos.

No cenário interno temos um Brasil que continua a ser a promessa de um “país do futuro”, que vivenciou (e ainda vivencia) polarização política e que despencou em comparação com outras grandes economias mundiais de uma posição de sétima maior economia mundial em 2010 para décima colocação em 2022. 

No cenário internacional, a pandemia de COVID-19, as reduções e expansões dos valores de commodities nos mercados globais, o desmantelamento de projetos de integração regional (como a UNASUL), o aumento da rivalidade Estados Unidos-China e a invasão da Ucrânia pela Rússia são algumas dessas transformações. 

A China, principal parceiro comercial do Brasil, também mudou significativamente nos últimos anos. O país que ocupava o sétimo lugar no ranking das maiores economias mundiais (PIB) em 2003, hoje ocupa o segundo lugar do mesmo ranking. Pequim ampliou significativamente sua atuação no mundo, tornando-se a maior parceira comercial de países na América Latina, na África e na Ásia. No âmbito doméstico, procurou alternativas para o seu desenvolvimento e estabilidade interna com a consolidação de Xi Jinping no poder, desde 2012. 

Todos esses desafios são cruciais para a inserção internacional do Brasil, de modo geral, e para as relações com a China, especificamente. O cenário de 2023 é diferente de 2003 para ambos os países. Ao longo dos anos as relações comerciais sino-brasileiras cresceram significativamente e ambos os países buscaram um no outro suprir deficiências (por recursos, por capital e por tecnologia, por exemplo) e conseguiram promover ao longo dos anos concertação política, como no âmbito do BRICS.

 O comércio bilateral com a China atingiu 135 bilhões de dólares em 2022, e o país ocupa atualmente papel importante como investidor estrangeiro nas mais diversas indústrias do país. De acordo com o China-Latin America Finance Database, o Brasil recebeu treze empréstimos de bancos chineses, totalizando 30,5 bilhões de dólares. A importância da China é evidente na agenda brasileira, sobretudo no horizonte da política externa brasileira a partir de 2023. 

Após assumir a presidência, Lula recebeu uma carta de Xi Jinping, expressando a vontade de ampliar a cooperação entre os países. Sinalizando um desejo de equilíbrio, sem alinhamentos automáticos ou tomadas de lado, Lula planeja visitar a China ainda no primeiro trimestre de 2023, com o interesse de ampliar a cooperação para além do comércio.


Xi Jinping no Congresso Nacional do Povo, em Pequim / Noel Celis / AFP

Brasil, China e o mundo em transformação

Existem desafios históricos e conjunturais à relação Brasil-China, o que torna ainda mais elementar que seja construída uma “agenda estratégica de futuro” que alavanque políticas públicas por meio de parcerias e financiamentos internacionais – em linha com os compromissos internacionais do Brasil – de forma a posicionar o Brasil, com apoio da China, à frente das grandes transformações e espaços de decisão globais. Essa é a avaliação de Karin Costa Vazquez, Professora Associada e Reitora Assistente da O.P. Jindal Global University na Índia, pesquisadora do Center for BRICS Studies da Fudan University na China e Senior Non Resident Fellow do Center for China and Globalization (CCG). 

No artigo “Uma agenda estratégica de futuro para o desenvolvimento sustentável do Brasil”, publicado pela revista CEBRI, em 2022, Vazquez aponta três grandes transformações globais que estão moldando o futuro das relações Brasil-China, e sugere recomendações.

 A primeira é a mudança do centro de gravidade econômico do Ocidente para a Ásia e a crescente relevância da China para o Brasil. Se, por um lado, o boom dos fluxos bilaterais Brasil-China trouxe uma balança comercial favorável para o Brasil, por outro também gerou uma estrutura comercial assimétrica. “Essa assimetria nos convida agora a pensar em estratégias para diversificar e agregar valor às exportações brasileiras para a China”, avalia a pesquisadora.

 A segunda transformação é a revolução digital-tecnológica e a inauguração de um paradigma produtivo mais competitivo, sustentável e inovador, que tem a China como o epicentro, despontando na fronteira tecnológica e evidenciando a disputa internacional com os Estados Unidos. Nas palavras de Vázquez, esse paradigma nasce em meio a mudanças estruturais nas cadeias globais de valor que determinarão a competitividade e o acesso dos países aos mercados, bem como o futuro do trabalho. "A China pode ser parceira na transição do Brasil para a indústria 4.0 e para a agricultura digital, garantindo que ambos os processos ocorram de maneira oportuna, competitiva e sustentável".

 A terceira transformação é a transição energética global e o impacto da descarbonização da China nos mercados globais de energia. De acordo com a pesquisadora, a China está entre os maiores importadores mundiais de petróleo bruto, ao passo que o Brasil está entre os principais fornecedores de petróleo bruto para a China, e depende fortemente do país para suas exportações.


Protótipo do carro autônomo chinês ROBO-01 em exposição em Pequim / Jade Gao / AFP

Lula já destacou a importância da agenda ambiental na pauta brasileira e internacional com a sua visita à COP 27 em novembro de 2022, e a reconstrução da agenda no país com a reformulação de órgãos que vão olhar para o ambiente. O 14º Plano Quinquenal da China, por exemplo, apresenta significativo destaque para a agenda do clima e do meio ambiente. Tais discursos ecoam também em eventos internacionais em que a China vem se projetando como um ator responsável.

“Devemos [o Brasil] estar atentos aos possíveis impactos de uma contração da demanda chinesa no médio prazo e identificar elementos que possam contribuir para o reposicionamento do Brasil nas indústrias de baixo carbono”, sugere a pesquisadora. 

Muito além do comércio bilateral

A China é um ator central para a reinserção global do Brasil, bem como para a promoção do desenvolvimento. Karin Vazquez defende a hipótese de que mais do que pensar em estratégias para diversificar e agregar valor às exportações brasileiras para a China, o Brasil deve fazê-lo dentro de um processo de reindustrialização da economia brasileira que se beneficie de parcerias com países como a China para a transferência de tecnologias e investimentos em setores com repercussões positivas para a economia, o meio ambiente e a sociedade.

 “Uma forma de articular o Investimento Estrangeiro Direto com o desenvolvimento tecnológico e a agregação de valor nas cadeias produtivas agropecuárias é a criação de polos de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação Brasil-China, a inclusão de cláusulas de transferência de tecnologia/desenvolvimento conjunto nos acordos bilaterais de investimento e o incentivo aos investimentos nas indústrias com maior contribuição para o desenvolvimento sustentável”, pontua Vazquez.

 Fruto de um passado que ecoa no presente, Karin ressalta que Lula e Xi Jinping coincidem na visão de uma ordem global baseada em uma nova forma de progresso humano, onde a pobreza não pode existir, a prosperidade é comum e a harmonia com a natureza é crucial. Mais do que um aliado estratégico da China, a liderança de Lula dá aos dois países a possibilidade de converter os complexos desafios internacionais em uma oportunidade para construir pontes entre grandes potências, países emergentes e em desenvolvimento para buscar soluções conjuntas, como no âmbito do BRICS.


Presidente Xi Jinping encontra Jair Bolsonaro em encontro dos Brics, em 2019 / Sergio Lima / AFP

 “Acredito que ainda há apetite nos cinco países para levar adiante a motivação original dos BRICS. Ou seja, oferecer alternativas à governança global. O desafio está na forma e na prioridade que serão dadas a questões como a expansão do bloco, o diálogo com outros blocos político-econômicos e regionais, bem como a formulação de respostas conjuntas a algumas das questões de desenvolvimento mais prementes de nosso tempo, incluindo uma transição energética justa, saúde, erradicação da pobreza e segurança alimentar”, assevera a pesquisadora.

A atuação próxima com a China pode permitir que o Brasil recupere uma posição de destaque internacional, como um player do Sul Global capaz de construir consenso dentro e fora do BRICS. Karin Vazquez acredita que a revitalização do IBAS, fórum de diálogo que reúne Índia, Brasil e África do Sul, as presidências brasileiras do G20 e as presidências sul-africana e brasileira do BRICS podem ser o motor desse esforço nos próximos três anos.

“O Brasil poderia, por exemplo, explorar a criação de uma Aliança Global para a Erradicação da Fome e da Pobreza, valendo-se da experiência própria e de outros países do BRICS no combate à fome e à pobreza extrema, fomentando a centralidade do Brasil e da América Latina para a promoção da segurança alimentar no China e o mundo, e destacando a necessidade de redesenhar os sistemas alimentares para garantir a sustentabilidade e resiliência no acesso aos alimentos em todo o mundo”, conclui a pesquisadora.

Em suma, a perspectiva é de ampliação da relação Brasil e China nos próximos anos do governo Lula, e deve servir como via de mão dupla, ao passo que política externa informa e baliza políticas públicas domésticas, e contribui para a inserção internacional positiva do Brasil. Para isso, a formulação de uma agenda estratégica de futuro que oriente a política externa brasileira frente às grandes transformações internacionais é primordial.

Filipe Porto, pesquisador no Observatório de Política Externa e Inserção Internacional do Brasil, o OPEB, da Universidade Federal do ABC.

Alana Camoça, doutora em Economia Política Internacional (PEPI/UFRJ), pós-doutoranda na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisadora no Laboratório de Estudos sobre a Economia Política da China (LabChina).

* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Thales Schmidt