Entrevista

'Quero que o debate seja muito mais político do que ideológico', afirma deputada Duda Salabert

Em conversa com BdF, pedetista fala sobre variedade de pautas em que pretende atuar e diz que "falta poesia no Brasil"

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

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Duda Salabert (PDT-MG) ostenta diferentes títulos: foi a vereadora mais votada da história de BH em 2020, primeira mulher trans eleita na cidade e uma das primeiras que chegaram ao Congresso - Reprodução / Facebook de Duda Salabert

Política ambiental transversal, reforma do sistema prisional, revogação da reforma do Ensino Médio, ações sólidas para a área de saúde e para combater a crise socioeconômica, enfim, um debate "mais político do que ideológico" é o que a deputada federal Duda Salabert (PDT-MG) projeta para os seus próximos quatro anos de mandato em Brasília (DF). Engana-se quem pensa que ela se alçou à arena da política institucional somente para vocalizar demandas de caráter identitário.  

Duda é o que todo mundo tem o direito de ser: diversa, múltipla, polivalente. É também expressão daquilo que se entende como "Política com 'P' maiúsculo", uma grandeza que desconhece arestas. "O que se espera de um parlamentar é que ele discuta políticas públicas estruturantes. É isso que a população quer, e não que endosse uma imagem que, infelizmente, está cristalizada em setores da sociedade de que o Congresso Nacional é um circo", diz, ao rechaçar as caricaturas nas quais os conservadores e extremistas do parlamento tentam lhe inserir. 

A deputada tem fala assertiva, pulso enérgico e delicadeza na forma de ver o mundo. Ela traça rotas para si e para aqueles aos quais destina sua atuação política. "Eu encarno uma candidatura das utopias, dos sonhos", evidencia. E, por falar em futuro, a pedetista também ajuda a inaugurá-lo: em 2020, Duda Salabert se tornou a vereadora mais votada da história de Belo Horizonte (MG) e a primeira mulher trans a ser eleita na cidade. Já em 2022 ela se converteu em uma das primeiras trans eleitas para a Câmara dos Deputados, na capital federal.

"Eu tenho uma responsabilidade muito grande, e isso tem que se traduzir em política pública de qualidade. Um processo legislativo maiúsculo é o que a gente vai fazer", reforça, anunciando os tempos que virão. Confira a entrevista.

Brasil de Fato: A senhora é uma parlamentar de primeiro mandato na Câmara Federal. Qual é sua expectativa com o Congresso atual, que tem maioria conservadora, mas está inserido no contexto de um governo progressista?

Duda Salabert: O Congresso tradicionalmente é uma estrutura conservadora. No entanto, nós temos dois pontos importantes. Primeiro, nós vivemos a maior crise ambiental, climática da história. Somos a última geração capaz de frear a crise climática. Então, isso pede do Congresso uma postura mais progressista no que se refere à construção de uma legislação que esteja de fato protegendo nossos biomas, e não mais o interesse das grandes corporações internacionais, que não têm compromisso nenhum com o meio ambiente.

O segundo ponto é o de que a população deu o recado nas urnas de que não há mais espaço no Brasil pra uma política de ódio, de violência, de intolerância. O que nós queremos agora é um projeto de reconstrução do Brasil para tirar o país do mapa da fome. Já dizia Bertolt Brecht, dramaturgo alemão: “Primeiro, o estômago, depois a moral”. O tempo da fome não é o tempo da ideologia.

Então, o que eu pretendo é que o debate seja muito mais político do que ideológico. Um lado mostra a tese, o outro lado mostra a antítese, e chegamos a uma síntese, que é justamente, na minha opinião, superar a crise climática, a crise econômica e humanitária em que o Brasil está imerso, devido a uma polarização odiosa e a um desmonte da legislação e das políticas públicas no Brasil nos últimos anos.

Aproveitando que tocou nesse ponto, a senhora tem dito que a gente deveria ter um ambiente digital menos favorável à proliferação do ódio. A Câmara tem aí adiante o PL das Fake News para ser votado. São coisas muito ligadas, e a pauta digital está em evidência neste momento. Qual o caminho que a senhora enxerga para se ter um meio digital mais pautado em valores democráticos?

É importante reforçar que nós não somos a favor da censura ou de silenciar determinados grupos. Pelo contrário, as pessoas podem falar o que bem entenderem. O que nós queremos é que as pessoas sejam responsabilizadas por falas que são criminosas. Eu aqui posso falar o que bem entender. Ninguém me impede de falar o que eu quiser, mas, se minha fala for criminosa, eu vou ter que arcar com isso do ponto de vista jurídico. 

O que nós queremos é que aquilo que vale para o mundo real tem que valer para o mundo virtual. E o que a gente percebe é que, infelizmente, o mundo virtual, na maioria dos casos, é uma terra sem lei, em que as pessoas se sentem à vontade pra proliferar discursos racistas, criminosos, transfóbicos. Essas pessoas têm que arcar com esse discurso, têm que se responsabilizar por esse discurso do ponto de vista criminal, caso cometam crime.

A senhora tem se reunido com alguns nomes do Executivo federal para tratar de políticas em geral. E tem falado, entre outras coisas, da crise socioeconômica e climática que o país vive. A senhora se reuniu com a Marina Silva, por exemplo... Que tipo de medidas gostaria de ver sendo aprovadas pelo parlamento que pudessem fazer frente a esses problemas? 

Nós protocolamos no dia 15 um projeto de resolução que tem o objetivo de que a Comissão de Meio Ambiente seja terminativa, tal qual ocorre com as Comissões de Legislação, Justiça e Orçamento. O que significa isso? Que, se um projeto for reprovado pela Comissão de Meio Ambiente, ele não pode mais tramitar pela Casa, porque nós vivemos uma crise ambiental sem precedentes. 

Além disso, esse projeto prevê também que todos os projetos tenham a obrigação de tramitar pela Comissão de Meio Ambiente, ou seja, o que nós queremos é colocar no coração da política institucional a questão ambiental, tal qual tem ocorrido no mundo inteiro. Protocolamos e esperamos que esse projeto seja aprovado. Seria um grande passo pra gente poder fazer o que a Marina Silva defende, que é a política ambiental se manifestando de forma transversal aqui no Brasil. 

E na área de direitos humanos, por exemplo, que medida a senhora gostaria de ver aprovada na Câmara que viesse a se associar ao que o ministro Silvio Almeida tem defendido? A senhora se reuniu com ele também...  

Urge fazer uma reforma no sistema prisional brasileiro. O sistema prisional é caro, é o local mais corrupto que tem no Brasil. Não existe nenhum local mais corrupto do que as estruturas carcerárias no Brasil. Além disso, são espaços de violações de direitos humanos e, em muitos dos casos, se transformam no que a linguagem popular chama de “universidade do crime”. Então, há de se fazer uma reforma no sistema prisional. 

O Brasil hoje tem a terceira maior população carcerária do mundo. Nos últimos governos, inclusive em governos progressistas, nós tivemos um aumento de 180% de encarceramento de mulheres negras, inclusive nos governos do PT, por exemplo. Então, o que nós queremos agora é uma reforma nesse sistema prisional. A conversa que eu tive com o ministro Sílvio Almeida foi com o intuito de a gente buscar alternativas pra frear o que tem se construído no Brasil, que é a tentativa de privatizar o socioeducativo. Nós entendemos que seria muito ruim pra segurança pública. 

E também [queremos] discutir pautas para a comunidade de que faço parte. O Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais do planeta. Nós lideramos esse ranking há 14 anos. E 80% dos assassinatos contra travestis e transexuais ocorreram com requintes de crueldade, crimes de ódio. Nós temos que buscar também alternativas pra que o Brasil supere essa chaga, que é trágica, independentemente do ponto de vista político e ideológico.

Como tem sido a reação do Congresso à sua chegada e à sua atuação política? Eu me refiro não só à relação com deputadas e deputados, mas também à recepção nos corredores, à recepção das pessoas em geral...

Eu fui muito bem recebida de um modo geral. Acho que o grande desafio é como equacionar dois pontos antagônicos. Isso que está aqui atrás de mim [Duda aponta para o prédio principal do Congresso] é uma máquina de moer sonhos, de moer utopias, e eu encarno uma candidatura das utopias, dos sonhos, das reformas estruturantes. Então, como equacionar um mandato que defende a importância das utopias com este espaço aqui? Mas, de modo geral, os parlamentares me receberam muito bem.

Teve um episódio criminoso que aconteceu no Dia das Mulheres em que um bolsonarista [deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG)], cujas práticas políticas em muitos momentos flertam com grupos neonazistas no que se refere a discursos de perseguição ou de intolerância, subiu [no púlpito do plenário] com uma peruca pra debochar da identidade das travestis e transexuais.  Aquilo não foi uma violência só contra nós travestis e transexuais. Não foi só uma violência contra as mulheres, porque era Dia das Mulheres. Foi uma violência contra o parlamento, contra a política.  

Nós vivemos a maior crise da história do país. O que se espera de um parlamentar é que ele discuta políticas públicas estruturantes. Do ponto de vista fiscal, temos que debater a reforma tributária no Brasil, aprofundar esse debate. [Temos que] discutir a revogação [da reforma] do Ensino Médio, combater a evasão escolar, que se agudizou no contexto da pandemia. É isso que a população quer, e não que o parlamentar endosse uma imagem que infelizmente está cristalizada em setores da sociedade de que o Congresso Nacional é um circo.   

Ao fazê-lo, ele acaba, infelizmente, endossando também a chamada negação da política. E, toda vez que nós negamos a política, a gente abre espaço pra que oportunistas, genocidas como Bolsonaro ocupem o poder. E hoje nós estamos arcando com as consequências, por isso o que aconteceu no dia 8 [de março] foi muito sério. E esperamos sanções mais severas da Casa em relação ao episódio.

Atitudes transfóbicas como a dele lhe preocupam em alguma medida?

Preocupam muito, porque esse discurso reverbera na sociedade. Então, vamos entender Belo Horizonte, por exemplo, que é a capital de Minas Gerais, onde fui eleita. Em Belo Horizonte teve uma pesquisa da UFMG [Universidade Federal de Minas Gerais] que mostra que 91% das travestis e transexuais não concluíram o Ensino Médio. 

Então, não existe evasão escolar pras travestis e transexuais. O que existe é uma expulsão escolar, porque o projeto educacional que está em curso no Brasil é, muitas vezes, uma ferramenta de violência contra a diversidade. Então, vamos pensar um discurso daquele se você tem uma aluna trans na escola. [Imagine] a quantidade de violência simbólica, física que ela pode receber, o questionamento que vai ter em relação à identidade dela... 

Esse tipo de violência impacta na evasão escolar das pessoas travestis e transexuais, impacta na violência física, já que somos o país que mais mata travestis e transexuais. A morte física é a ultima ponta. Antes dela, há a morte moral, a morte simbólica e há mais outras mortes que se dão no campo do discurso e que nós temos que combater. Temos que defender uma política mais plural, uma cidade mais plural. É isso que eu penso. 

A senhora foi a vereadora mais votada da história de Belo Horizonte e a primeira mulher trans a ser eleita na cidade. Além disso, é uma das primeiras trans eleitas pra Câmara Federal. Qual o peso desse título?

É, eu fiquei muito feliz com duas vitórias, que não são vitórias minhas, e sim vitórias dos direitos humanos, do campo progressista, da comunidade LGBTQIA+. Eu me tornei a pessoa mais bem votada da história de Belo Horizonte, com o dobro do recorde anterior. Aquele bolsonarista, Nikolas Ferreira, ficou bem atrás de mim na votação naquele ano. E, pra deputada federal, eu me tornei a deputada federal mais bem votada da história de Minas Gerais.

Então, [foram] duas grandes vitórias. Eu tenho uma responsabilidade muito grande, e isso tem que se traduzir em política pública de qualidade. Um processo legislativo maiúsculo é o que a gente quer fazer: discutir os impactos da Lei Kandir na economia de Minas Gerais; discutir junto ao governo federal um programa de analfabetismo zero, porque há estudos que mostram, por exemplo, que cerca de 30% da população brasileira têm algum grau de analfabetismo, ou seja, um terço da população brasileira acima de 15 anos tem pelo menos algum grau de analfabetismo. Isso é absurdo.

[Temos que] construir uma política de desmatamento zero, construir uma política de fato ligada à política alimentar para crianças. É um absurdo, por exemplo, que, no Brasil, um pacote de biscoito recheado seja mais barato do que uma maçã orgânica. Então, a gente quer promover políticas estruturantes porque é pra isso que nós somos eleitas. Eu não fui eleita pra discutir no plenário o que é homem ou o que é mulher. Eu fui eleita pra discutir no plenário o que vai tornar a vida de homens, mulheres, travestis, transexuais, LGBTs e pessoas com deficiência melhor.

Eu fui eleita pra promover o que nós chamamos de saúde única, que é entender que a saúde humana, animal e ambiental estão interligadas. Negligenciar uma saúde impacta diretamente em outra saúde. Então, se fôssemos traduzir o nosso mandato, ele veio para promover saúde – afetiva, humana, ambiental, animal. É isto que nós queremos: tornar este espaço [da Câmara] mais saudável, mais aberto à diversidade, e não um espaço tóxico, violento. Eu venho da literatura, com a qual aprendi que toda vez em que a palavra falha, a violência entra em cena.

Então, eu sou do discurso, sou da palavra. E a palavra, quando é encantada, quando é poesia, tudo fica melhor. Por isso que no Dia das Mulheres eu dediquei muita poesia pros fascistas, muita poesia pro Brasil. É isto que falta no Brasil: falta poesia. Já diziam os camaradas: “A gente não quer só o pão; quer poesia”, que é a metáfora de um mundo melhor, de um mundo igualitário, de um mundo que reconheça que o ser humano é profundo e diverso.

Como professora de literatura que é, a senhora acredita na educação como veículo para que a gente possa dar um salto civilizatório maior do que talvez tenha dado até agora? 

Eu digo sempre que posso estar na política, mas sou professora. Até porque reconheço que meu papel em sala de aula é muito mais importante que o papel no espaço legislativo. No espaço legislativo, eu crio e fiscalizo leis, mas em sala de aula nós criamos consciências. E o que muda o mundo de fato não são novas leis, mas novas consciências. Temos uma lei que criminaliza o racismo no Brasil, e eu pergunto: quantas pessoas já foram presas por racismo?  

Mais importante do que criminalizar uma prática é combater essa prática. Nós temos que construir consciências ecológicas em sala de aula, construir consciências antirracistas em sala de aula, construir consciências anti-LGBTfóbicas em sala de aula. Por isso que defendo sempre que nunca, jamais um político vai ter um papel mais importante do que um professor. Os políticos são importantes, mas os professores, mais importantes. Por isso que, se tivéssemos de fato aprovado nesta Casa a equiparação do salário de políticos com o salário de professores, [isso] daria outra roupagem pra sociedade brasileira. 

Edição: Rodrigo Gomes