O projeto socialista é o de uma gradual satisfação de mais e mais necessidades, e não uma restrição a requisitos básicos. Marx nunca foi um defensor do ascetismo ou da austeridade. Ao contrário, o conceito da personalidade totalmente desenvolvida, que é o próprio coração de sua visão de comunismo, implica a satisfação de uma grande variedade de necessidades humanas, e não um estreitamento decrescente de nossas necessidades a alimentos básicos e moradias.
O desaparecimento gradual do mercado e das relações monetárias concebido por Marx, envolveria a extensão gradativa do princípio de alocação de recursos ex-ante para a satisfação destas necessidades em um número cada vez maior de bens e serviços, engendrando uma variedade mais ampla, e não menor, do que a existente sob o capitalismo hoje em dia.”1 Ernest Mandel
A pesquisa do IPEC surpreendeu com uma pergunta um pouco esdrúxula sobre o risco do comunismo com a posse do governo Lula. Mais espantoso, entretanto, foram as respostas das entrevistas: um em cada três responderam que consideram o perigo muito grande. Mais 10% admitiram que temem algum risco.
Estes dados exigem uma interpretação do que se pode aferir no entendimento de “comunismo”. Evidentemente, estas respostas estão ancoradas no envenenamento ideológico que se expressou, nos últimos sete anos, nas campanhas de “vai para Cuba” e “o Brasil não será uma Venezuela”. O medo do comunismo remete ao temor de políticas públicas de redução da desigualdade social. Os ricos não querem pagar impostos sobre as suas fortunas. As camadas médias acomodadas receiam perder seus privilégios.
Parece mais ou menos óbvio, quando consideramos o conjunto da pesquisa, que a extrema-direita mantém influência sobre um terço da população. Isso significa que o bolsonarismo consolidou uma audiência na “massa” da burguesia, algo próximo a três milhões de capitalistas, na maioria das camadas médias, pelo menos mais cinco milhões, e numa parcela muito grande dos trabalhadores de renda média, não menos de dez milhões, além das massas populares que seguem as igrejas pentecostais.
Este processo obedece, em primeiro lugar, a interesses de classe. Uma parcela desta base bolsonarista mais popular vive na alienação de onde estão os seus interesses. Mas seria ingênuo não perceber que são arrastados por aqueles, os mais ricos na sociedade brasileira, que têm plena consciência. Dividi-los, e reunificar a maioria da classe trabalhadora, deve ser nossa estratégia. O que exige medidas concretas para melhorar as condições de vida dos mais pobres. Isso é possível. Mas exige coragem e disposição de luta.
O grande desafio de Lula neste primeiro semestre é libertar o governo da lei do Teto dos Gastos. Ainda não se sabe qual será a proposta de Haddad. Mas se o governo procurar uma concertação com o grande capital que assegure os interesses rentistas dos que se beneficiam dos juros reais mais altos do planeta, a ambição de uma estratégia de redução da desigualdade social seria, seriamente, comprometida.
Porque somente políticas públicas igualitaristas, como impostos sobre as grandes fortunas, podem erradicar a miséria. Têm, irremediavelmente, custos elevados, e alguém deve pagar. Porque, afinal, a desigualdade não é natural.
Estima-se que a população mundial ultrapassou os 8 bilhões em 15 de novembro de 2022. 2 A propaganda a favor do capitalismo argumenta que, apesar da pobreza e da desigualdade que permanecem, vivemos no melhor mundo “possível”. A natureza humana seria um obstáculo intransponível. O egoísmo, a avareza, a cobiça, a voracidade e a ambição seriam naturais e incorrigíveis.
Afirmam que o capitalismo estaria criando uma nova classe média nos países dependentes, na África e na Ásia, por toda a parte, até no Brasil. Além da pobreza, a desigualdade social estaria, surpreendentemente, diminuindo, também. A conclusão, absurdamente, otimista é que o direito à propriedade privada e a regulação mercantil teriam provado diante da história sua superioridade.
A publicação do livro de Piketty, há alguns anos, sobre a preservação da desigualdade social na longa duração, O capitalismo no século 21, produziu, portanto, grande controvérsia. Nas suas palavras categóricas: “É um fato: todos os rankings de riqueza indicam que os mais ricos estão cada vez mais ricos, e cada vez mais rápido.”
A alocação de recursos por um mercado desregulado; os ajustes feitos pela oferta e procura sem intervenção estatal; o direito irrestrito ao entesouramento; o direito de herança inviolável; a redução do custo fiscal dos Estados; as privatizações dos serviços públicos; a flexibilização das relações trabalhistas; a redução da proteção ao desemprego; a privatização das aposentadorias. É o argumento de Macron na França. Essa é a receita mundial para defender as condições que “favoreceriam” a volta ao crescimento econômico. Só a blindagem dos interesses dos capitalistas poderia favorecer investimentos necessários para o desenvolvimento. Esta é bíblia.
Nenhuma destas conclusões é correta. Como definir o que é a pobreza no mundo contemporâneo é um tema envolvido em uma hemorrágica discussão sobre critérios. Quais devem ser as linhas de corte? Não é controverso que ainda hoje pelo menos um bilhão de seres humanos vivam com até US$1 por dia. Outro bilhão com até US$ 2.
O mais importante é compreendermos que a miséria material que condena dois terços dos oito bilhões a viver com até US$ 8 por dia não é uma fatalidade. Não é verdade que o mundo não disponha de recursos para libertar esta maioria do flagelo da penúria extrema. Ela já poderia ter sido erradicada. Mas os propagandistas do capitalismo defendem que não é possível. O que parece mais ou menos incontestável é que o capitalismo não o fará.
Existe uma discussão teórica chave o marxismo que poderíamos enunciar como a teoria das necessidades em Marx. Expliquemo-nos: o socialismo se fundamenta na defesa que as necessidades humanas mais intensas são homogêneas, ou seja, são as mesmas para todos e, portanto, poderiam ser aferidas a priori antes da produção. Logo a produção poderia ser organizada em função de uma alocação de recursos pelo planejamento.
A discussão sobre a possibilidade da satisfação das necessidades remete aos fundamentos. É a própria ideia de socialismo que está em questão. Está em debate a superioridade ou não de um planejamento democrático. O que envolve a discussão da participação das amplas massas nas decisões de uma esfera pública alargada e complexa, que exige muitas decisões (e o tempo e a educação para querer e poder tomar decisões).
Mas, em primeiro lugar, está em discussão definir se as necessidades são limitadas e previsíveis, ou se elas são ilimitadas. Da aceitação do postulado de necessidades ilimitadas decorreria que a premissa de que a abundância é possível, desmoronaria, e a humanidade estaria condenada à escassez, com as suas inseparáveis sequelas: a mesquinhez, a propriedade privada, as classes e suas lutas, o Estado, etc.
Todo o edifício da hipótese marxista de uma transição para uma sociedade sem classes vem abaixo. Grande parte da produção artística contemporânea, livros, como “A estrada, séries como The last of us e filmes, como O triângulo da Tristeza, são distopias terríveis que se inspiram na inevitabilidade do fim da civilização. Ser socialista é acreditar que não há nenhuma essência humana que nos condena à barbárie como um destino.
O marxismo sempre defendeu que a satisfação das necessidades mais intensamente sentidas é possível, e que a abundância pode ser construída, progressivamente, como um processo. O que não significa que as necessidades não se alterem com o surgimento de novas demandas que resultam do progresso econômico e cultural, não necessariamente nessa ordem. Mas as necessidades que têm uma maior exigência foram, em uma mesma época histórica, sempre as mesmas.
A experiência histórica do século 20 deu razão à Marx de uma forma indiscutível: o boom do pós-guerra nos países centrais, a partir de 1945, revelou que o acesso a padrões materiais e culturais mais elevados de vida, permitidos pelo pleno emprego e pela elevação do salário médio, produzia-se com uniformidade nos padrões de consumo.
A constância na demanda não surpreendeu os marxistas. Quando melhoram as condições de vida, o cidadão médio tem as mesmas prioridades: primeiro o aumento do consumo de alimentos, com maior variação e mais fontes de proteína. Ou a aquisição de eletroeletrônicos que definem o conforto da vida doméstica e o lazer mais barato. Depois a busca do acesso à compra da casa própria, para se libertar do aluguel, e a preocupação com a maior escolaridade dos filhos, e a reivindicação por mais e melhores serviços públicos. Por último, as férias, as viagens, etc. Em algum momento, transporte individual.
Reconhecer que o padrão de consumo é homogêneo, uniforme, constante e previsível não deve obscurecer o fato de que: (a) ele muda; e (b) de que existe uma parcela de consumo supérfluo mais variável. As necessidades mais intensas são as mesmas para todos que vivem a mesma etapa da história. Evidentemente, as dos jovens do início do século 21 não são iguais aquelas de cem anos atrás. Nem sequer iguais à aquelas de quarenta anos atrás. O conteúdo do progresso foi, justamente, o aumento das necessidades. Também é verdade que existe uma margem de consumo pessoal que não é previsível, e que obedece a preferências subjetivas, até íntimas.
O importante é que pelo menos 90% do consumo de pelo menos 90% da população é homogêneo. Sendo assim, é perfeitamente previsível. De todas essas considerações se deve, portanto, concluir que não existe hoje nenhuma argumentação sólida, nem na economia, nem na sociologia, que desqualifique o planejamento como o método mais eficaz de alocação de recursos.
Mais eficaz não significa infalível. A alocação pelo planejamento é susceptível, também, a erros e, portanto, de desperdício de recursos que permanecem escassos. Porém, é mais eficiente que a alocação pelo mercado. Porque o papel do mercado é maximizar as condições favoráveis para que os proprietários do capital possam ganhar dinheiro. O papel do planejamento é maximizar as condições para que as necessidades mais intensas possam ser satisfeitas.
Os apologistas do capitalismo defendem que as necessidades são incertas, impossíveis de ser calculadas e, a rigor, ilimitadas, cabendo ao mercado revelar a posteriori se a demanda efetiva foi satisfeita, ou se ocorreu subprodução ou superprodução. No pós-guerra de 1945 a utilização de políticas anticíclicas de inspiração keynesiana deslocou a influência das premissas liberais clássicas, e a ideia de que o Estado poderia através de sua intervenção, dentro de certos limites, definir a demanda estabelecendo uma regulação sobre o mercado, se afirmou como pensamento burguês dominante. A crise depressiva prolongada aberta em 1973/74 trouxe de volta ao poder os fundamentalistas da “regulação mercantil pura”. Tem sido a etapa do neoliberalismo.
Nos círculos de esquerda, a pressão neoliberal não passou impune. As teorizações que estrategizaram a ideia de um socialismo “de mercado” são moeda corrente. Os termos da questão não são simples, é certo. Mas a aceitação do mercado como a forma fundamental de regulação econômica apunhala no coração de forma irreversível o projeto socialista.
É importante assinalar que a maioria esmagadora das elaborações que teorizam a defesa do socialismo de mercado, ou de um controle social do mercado nas suas versões ainda mais recuadas, não faz a defesa da troca de mercadorias como uma concessão transitória, dentro de um sistema híbrido de alocação de recursos, mas estão questionando a própria vigência histórica da perspectiva de uma produção mundial autorregulada, ou seja, subordinada ao planejamento.
Os recursos hoje disponíveis pelo desenvolvimento das forças produtivas, mesmo considerando que a permanência obsoleta do imperialismo bloqueie o potencial libertador nelas contido, permitiria arrancar das condições de miséria biológica, em pouco tempo, bilhões de seres humanos que vivem na miséria. A permanência senil do capitalismo é a explicação da sua perpetuação. O papel de uma esquerda para o século 21 é lutar contra a crescente desigualdade social. Sim, pelo socialismo.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rodrigo Durão Coelho