A comunidade Tiradentes 2, na Cidade Industrial de Curitiba (CIC), passou um final de semana de trabalho intenso. A ocupação, liderada pelo casal Estefany e Gaúcho, reuniu os poucos materiais que sobravam, entre caibros, ripas, lâminas de telhas, e ergueu um barracão comunitário para receber o lançamento da "Campanha Fica Tiradentes 2!" contra o risco de despejo forçado.
Isso porque a situação dos moradores é cada vez mais delicada. No dia 20 de março, o juiz de direito substituto Paulo Fabrício Camargo expediu ofício solicitando o cumprimento da ação de reintegração de posse e pedindo reforço policial ao 23ª Batalhão da Polícia Militar do Paraná.
Mas, no final de semana, domingo de sol, a comunidade abriu as portas, de forma amiga, para apoiadores, parlamentares de esquerda, movimentos de moradia e integrantes da campanha Despejo Zero. A Tiradentes 2, localizada abaixo da passagem de um córrego, entre árvores e casas de madeirite, apresentava as bandeiras do Movimento Popular por Moradia (MPM), com o qual se organiza. Um momento artístico e apresentações locais também fizeram parte do roteiro daquele dia.
Nem sempre o inimigo que ameaça uma área de ocupação é visível. Mas no horizonte, a olho nu, dava para ver o primeiro morro do que pode ser considerado o antagonista dos moradores das ocupações da região: o aterro sanitário da empresa Essencis Soluções Ambientais SA, um dos 39 aterros do grupo Solví, que presta serviços de engenharia, saneamento e coleta de resíduos sólidos.
Entidades sociais e ambientais questionam a própria razão de ser do aterro da Essencis, instalado na Cidade Industrial desde 1997, recebendo lixo industrial e hospitalar, perigosamente próximo de áreas de manancial, da represa do Passaúna, da Casa de Custódia de Araucária, entre outros pontos. Documentos antigos, do chamado Dossiê Stirps, questionam ainda o licenciamento ambiental das ações da empresa.
Mobilização e urgência
Ainda em 2015, a ocupação Tiradentes 1, composta por centenas de famílias, encarou a ação de reintegração de posse da sociedade empresarial Stirps Empreendimentos e Participações Ltda, uma massa falida que havia sublocado o terreno para a Essencis. No primeiro momento, na sua política de expansão, a ação empresarial buscou remover os moradores da Tiradentes 1. Mas não tiveram êxito.
Agora, numa espécie de revanche, as 64 famílias da Tiradentes 2 enfrentam ação de reintegração de posse movida pela Essencis, em área reivindicada diretamente pela empresa.
Os dias passam voando e trazem preocupação. A situação urgente fez com que, em reunião da Campanha Despejo Zero no Paraná, no dia 20 de março, a situação das famílias da Tiradentes 2 fosse colocada como foco das ações de apoio do mês de abril, passado o ato exitoso do dia 7 de março, que levou às ruas 1.500 mulheres do campo e da cidade.
Diante do risco, existe a compreensão de que uma comunidade deve ser auxiliada por todas as outras. Ao todo, são ao menos onze ocupações recentes, em Curitiba e região, organizadas no período de pandemia e ainda sob riscos e incertezas. De alguma forma, cada ocupante de Curitiba sentiu em todos seus ossos a dor do despejo completamente irregular da ocupação Povo Sem Medo, ocorrido sem negociação e garantias por parte do poder público, no dia 10 de janeiro deste ano.
Crianças, mães, antigos moradores em situação de rua colocaram-se em estado de alerta e passaram a pedir o apoio da sociedade para a causa. Uma luta de Golias contra Davi. "Já estamos morando com toda a dificuldade e o poder público não olha isso. Está na hora de colocar em prática o 'mexeu com um mexeu com todos'", afirma Gaúcho, uma das principais lideranças da Tiradentes 2.
Uma luta de gigantes
Apenas o patrimônio líquido total dos controladores da Solví está na casa dos bilhões, gerando uma contradição séria entre o direito de acumulação do capital e o direito de moradia das famílias. Um dos dirigentes do MPM chega a comparar que há mais reciclagem de lixo nas comunidades do que no interior do aterro sanitário, que não cumpriria função social ou ambiental.
"Ao lado da Tiradentes 1, a área Tiradentes 2 é de famílias trabalhadoras, gente simples, lutando contra o desemprego, contra a inflação. (...) a luta da comunidade também é uma luta ambiental, social. Curitiba, que se diz uma capital ecológica, tem um aterro bem no meio da Cidade Industrial, que recebe lixo perigoso, lixo hospitalar, industrial. A comunidade vai resistir contra o despejo", afirma Paulo Bearzoti Filho, dirigente do MPM.
Mesmo em meio ao clima de fraternidade, no coração do domingo, com atividades culturais e oferecimento das guloseimas, feitas no forno comunitário recém-criado, feito de barro, os visitantes puderam conhecer pessoas e algumas das histórias enfrentadas por elas.
Com isso, foi possível constatar que a fiação de luz ainda é insuficiente para todos os momentos, e há necessidade de avanço em fossas sanitárias. O poder público, no entanto, ao invés de arregaçar as mangas e se debruçar sobre os problemas cotidianos, parece apenas querer removê-los.
Recentemente, Gaúcho nos mostra, a comunidade intensificou os trabalhos com a horta comunitária e a limpeza no terreno dos fundos para um espaço para as crianças – bem na divisa entre o aterro sanitário e o direito de morar.
No meio de tantos desafios e incertezas, além da necessidade de lutar, é Gaúcho quem mostra o clima fraterno entre as pessoas no local. "Está vendo, aqui as portas das casas ficam abertas", mostrou.
Histórias de vida
Carlão
Carlos Eduardo, ou Carlão, aproxima-se para contar com orgulho a sua história. O que passa por conduzir a reportagem até a parte de trás da comunidade. Ali ele mostra, orgulhoso, a casa que ergueu em menos de um dia e que permitiu Carlão deixar as ruas onde dormia há oito meses. Desde que se separou da companheira e acabou se distanciando dos três filhos pequenos, o antigo morador em situação de rua afirma que havia "perdido o chão", talvez reencontrado agora com a nova oportunidade. Carlos Eduardo narra que já arrumou novo emprego na construção civil. Antes das ruas, era açougueiro, mas havia perdido toda a documentação para comprovar o vínculo de trabalho anterior. "Aqui estou reconstruindo minha vida", conta, sorriso no rosto, certeza de quem já caminhou pelas ruas de Santos, São Paulo, Santa Catarina e Curitiba.
Maria
Maria Gonçalves Soares estava radiante no dia do lançamento da campanha. Quem a conhece sabe que essa trabalhadora, cabeleireira e diarista, já se lançou em várias tentativas de participar de uma ocupação, desde 2021. Vive na ocupação Tiradentes 2, onde finalmente pôde se assentar, com filho e filha. Maria conta que, ali, aprendeu a entender a dinâmica de um movimento popular. "Bati na porta de várias áreas, para agora poder ficar, finalmente", relata.
Parlamentares se posicionam ao lado de moradores
Presentes no evento de lançamento da "Campanha Tiradentes 2 Fica!", as vereadoras Giorgia Prates e Professora Josete (PT) e o vereador Ângelo Vanhoni (PT), expressaram apoio militante à causa dos moradores.
"Temos que resistir. Temos mais direito à moradia do que a expansão do lixão. Por isso, podem contar com nosso apoio decisivo para essa comunhão e resistência", afirmou Vanhoni.
A vereadora Giorgia Prates já acompanhava a região na condição de fotógrafa, muitas vezes vivenciando situações absurdas, caso do incêndio criminoso do dia 7 de dezembro na ocupação 29 de março. "De tanto ir para as ocupações e desocupações, isso virou mais dor do que qualquer outra coisa. E antes ninguém apoiava as ocupações, mas as pessoas continuam ali, continuam na luta, ainda que com os terrenos não regularizados. Hoje espero fazer mais pelo movimento de moradia", afirma.
Também estiveram presentes a deputada estadual Ana Júlia Ribeiro (PT) e o deputado federal Tadeu Veneri (PT), quem comparou a luta entre comunidade versus Essencis com a forma habitual de as empresas operarem no Paraná em relação à propriedade da terra.
"A Essencis começou com uma localização, foi ampliando, foi fazendo com que perdêssemos áreas de mananciais, e faz o mesmo que várias empresas no Paraná: se dizer dono de áreas em litígio, e ganhar mais dinheiro. Antes do lucro tem a vida, a vida das pessoas aqui que não podem correr risco", critica.
Já Ana Julia ressaltou o vínculo do mandato a serviço dos movimentos populares. "Contem com o nosso mandato, que só existe por um único motivo. Ele só existe para fortalecer as lutas dos movimentos, do MPM", afirmou.
A proposta do Movimento Popular por Moradia (MPM) e da campanha Despejo Zero é dialogar, ao longo de março, com o aniversário de Curitiba de 330 anos, buscando mostrar as situações que não estão em cartão postal ou nas pesquisas no Google. Enquanto pauta, o movimento aposta que há condições para debater com a opinião pública a necessidade de remoção do lixão.
"Há muitas irregularidades da parte da Essencis, eles falam de irregularidades da comunidade, mas eles não estão enquadrados na lei. A opinião pública não pode ficar a favor da expansão do aterro dentro da cidade, o aterro deve ser selado", ressalta Paulo Bearzoti Filho.
Privatização de serviços de saneamento e resíduos sólidos
O Grupo Solví controla empresas que atuam nos segmentos de resíduos sólidos, saneamento e engenharia. Este é o principal grupo controlador da empresa Essencis, atuando também em 39 aterros sanitários, e outras chamadas "Unidades de Valorização Sustentável", no Brasil, Bolívia, Peru e Argentina.
É fato que o ramo da água, saneamento e resíduos sólidos - cuja gestão deveria ser pública, planejada, e não voltada apenas ao lucro -, é foco da expansão do capital em estados como Paraná, São Paulo e Minas Gerais.
O segundo maior aterro privado de Curitiba e Região Metropolitana apresenta como principais problemas o fato de, desde 1997, recebe os chamados resíduos industriais tóxicos perigosos e não perigosos. Como consequência do acúmulo de lixo, está o despejo na forma de chorume (líquido proveniente do lixo) em três corpos de rio, com respectivas nascentes. O aterro da empresa Essencis localiza-se a pouco mais de um quilômetro da Represa do Passaúna, que abastece milhares de moradores.
O local onde a Essencis está localizada e a sua cobertura vegetal pode ser caracterizada como local de nascentes e biomas de Mata Atlântica.
Em 2009, houve o precedente de transferência de aterro sanitário. A mobilização de moradores do bairro Caximba resultou no fechamento do aterro e transferência para Fazenda Rio Grande. A diferença para o caso atual é que, na Caximba, o apelo era de moradores de classe média e casas consolidadas, enquanto agora os moradores de área de ocupação lutam contra a invisibilidade.
Outro lado
A reportagem do Brasil de Fato Paraná tentou, por vários canais, locais e nacionais, contato com assessoria de imprensa do grupo Solví. Até o fechamento da edição não houve resposta. O espaço segue aberto para o posicionamento da empresa.
Fonte: BdF Paraná
Edição: Lucas Botelho