A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, quer que o plano de carreira da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) figure no rol das ações que o presidente Lula (PT) pretende apresentar ao Congresso Nacional dentro dos 100 primeiros dias de governo. A mandatária falou sobre o assunto durante conversa com um grupo de trabalhadores da autarquia que fizeram protesto em frente ao prédio da pasta, em Brasília (DF), para pressionar o governo. Guajajara lembrou que o grupo de trabalho da transição havia elencado o plano de carreira como uma das metas prioritárias que deveriam constar no roteiro da nova gestão.
“Quando a gente assumiu, a gente continuou com esse ponto na prioridade de encaminhamento do ministério e a gente colocou já também na pauta como os pontos nossos que precisam estar entre os 100 primeiros dias de governo. Então, daqui a gente encaminhou”, disse, ao afirmar ainda que entregou a proposta de plano de carreira a Lula para avaliação do governo.
“Pode ser que não tenha a prioridade que precisa, e a gente precisa estar conversando. Nós queremos muito destravar essa pauta e [espero] até o final do ano ter isso encaminhado, saindo do Executivo e sendo pautado no Legislativo. Vocês sabem que tem algumas etapas a serem seguidas”, emendou Sonia, ao se remeter aos servidores.
O Ministério dos Povos Indígenas (MPI) entregou ao presidente uma minuta de medida provisória (MP) sobre o assunto. Caso a ideia seja aceita pela cúpula do governo, precisará ser aprovada pelo Legislativo para que o plano possa constar no orçamento de 2023. De acordo com a pasta, a proposta cria diferentes padrões de remuneração e gratificação e se baseia em modelos adotados pelas agências reguladoras, já que a natureza jurídica desses órgãos é a mesma da Funai por se tratarem de autarquias.
Ainda segundo cálculos do MPI, a MP exigiria investimentos da ordem de R$ 315,5 milhões no próximo ano, com acréscimos graduais que chegariam a R$ 317,7 milhões em 2026. Atualmente, os valores investidos no funcionalismo do órgão são de R$ 271 milhões. A medida alcançaria os atuais 1.343 servidores ativos, os 1.684 aposentados e os 807 instituidores de pensão. Sonia Guajajara afirma que a valorização dos servidores da Funai seria também uma forma de beneficiar os povos indígenas, público-alvo da autarquia.
“A gente está na mesma luta. Conheço bem essa necessidade. Sei que aquilo que não atende bem o servidor da Funai vai estourar diretamente como consequência lá na ponta, nos territórios dos povos indígenas, que são o sentido de a gente estar aqui para fazer essa luta, proteger os territórios, garantir a segurança dos servidores, garantir a proteção dos indígenas”, disse a ministra.
Campanha
Atualmente em campanha pela criação do plano de carreira, os servidores correm contra o tempo para emplacar a pauta. Isso porque, para que possa valer no ano que vem, a medida precisa ser inserida na Lei Orçamentária Anual (LOA) 2024, mas precisa também enfrentar um longo percurso no governo federal, passando ainda por Advocacia-Geral da União (AGU), Casa Civil e Ministério do Planejamento e Orçamento (MPO). Na minuta feita pelo MPI, a pasta aponta a data de 31 de maio como referência por conta do cronograma que rege a tramitação do projeto da LOA no Congresso.
“A gente está com urgência porque a MP teria que ser enviada para a Câmara dentro desse prazo. Estamos trabalhando tanto com deputados para tentar convencê-los a votarem positivamente quando a MP chegar à Câmara como trabalhando internamente no governo, fazendo pressão em alguns órgãos de gestão para que os pareceres sejam favoráveis e que haja uma vontade mais certa do governo Lula de fazer esse aporte de um plano de carreiras para a Funai”, afirma o servidor Gustavo Peixoto, que atua no órgão e também é ligado à associação Indigenistas Associados (INA).
O plano de carreira do órgão está em debate na Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal (Condsef) desde 2004. O diretor jurídico da entidade, Edison Cardoni, destaca que a falta de um plano de carreira se soma ao contexto de adoecimento dos servidores provocado pelo excesso de trabalho e pelo acúmulo de problemas que historicamente maltrataram a Funai, especialmente nos últimos anos, quando o orçamento e as políticas do órgão foram desidratados pela gestão Bolsonaro, marcada também por um contexto de assédio institucional sobre o funcionalismo.
No ano passado, a categoria chegou a deflagrar uma greve por um conjunto de fatores, entre eles a falta de segurança para a execução do trabalho dos servidores, sobretudo daqueles que atuam em regiões de grandes conflitos agrários, como é o caso da Amazônia. O movimento de paralisação veio à tona durante o contexto de busca pelos corpos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, ambos assassinados na região do Vale do Javari, no Amazonas.
Cardoni ressalta que esse cenário gera ainda outro problema, a evasão de parte dos servidores, que acabam migrando para outras carreiras mais atraentes. Atualmente, o órgão tem 1.353 servidores efetivos e 1.820 cargos vagos, sendo este último dado resultado da evasão, da falta de concursos permanentes e também da onda de aposentadorias registrada nos últimos anos.
“Há lugares [da autarquia] em que nos últimos concursos entraram 20 pessoas e hoje sobraram três. Então, é uma situação muito difícil. O plano de carreira é fundamental para essa pauta estruturante da Funai e também para que possa haver um concurso público que retenha as pessoas, de que o pessoal não caia fora”, argumenta Cardoni.
Desafios
A servidora da Funai Mônica Carneiro, que atua na diretoria do Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Público Federal no Distrito Federal (Sindsep-DF), ressalta que a falta de servidores amplia o desafio para que a autarquia consiga dar conta de todos as 680 terras indígenas em que atua, as quais respondem por 14% do território nacional. Dados do MPI mostram que o órgão tem, além da sede de Brasília, 293 unidades descentralizadas pelo país. Juntas, elas somam 2.306 funcionários, sendo 1.343 concursados e os demais, terceirizados ou comissionados.
O desafio se torna ainda maior diante do vasto escopo de competências da autarquia, que vão desde os estudos de demarcação de terras até o monitoramento das políticas voltadas aos indígenas, que estão distribuídos em 305 povos distintos pelo país. “O problema da Funai e da estruturação da política indigenista não vai se resolver com políticas paliativas porque a gente tem um problema de enfraquecimento crônico da força de trabalho da Funai”, aponta Mônica Carneiro, ao mencionar um relatório produzido pelo Tribunal de Contas da União (TCU) ainda em 2015.
O documento é o resultado de uma auditoria que chamou a atenção para uma série de deficiências que, de acordo com o TCU, traziam riscos ao órgão. Além de destacar o número insuficiente de servidores e a evasão, o tribunal mencionou questões como baixa regularidade de admissão de quadros, dificuldade de fixação de servidores, principalmente nos lugares de trabalho mais remotos, baixa remuneração, inexistência de incentivos para compensar situações de trabalho adversas e para que os servidores busquem qualificação específica na área indígena, além de outros pontos.
A ascensão da agenda indígena, relacionada ao fortalecimento do movimento político do próprio segmento e também à mudança de governo, tem ajudado a impulsionar a articulação dos servidores da Funai. “Essa mudança de postura política foi muito desejada pelos servidores da Funai porque isso reconhece e valoriza a presença indígena no país. Agora, a gente entende que só mudar o discurso e a postura política é algo que não resolve o problema. Isso tem que vir acompanhado de uma estruturação do órgão que implementa e qualifica as políticas públicas para os povos indígenas”, argumenta Mônica Carneiro.
Edição: Vivian Virissimo