Nos bastidores, às claras ou com medidas legais, o governo de Jair Bolsonaro atacou e desconstruiu instituições governamentais ligadas à ciência. Durante quatro anos, muitos órgãos foram alvo do ódio bolsonarista, mas o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) é um símbolo dessa política de destruição. Essa ofensiva não se movia a ódio puro e simples, mas estava aliada aos interesses de Bolsonaro e a quem ele representava.
O papel do Inpe é muito relevante para os tempos de eventos climáticos extremos que causam tanta destruição, fazendo das populações mais pobres as principais vítimas. Então, da capacidade de previsão de ocorrências como tempestades, geadas ou secas depende a prevenção de danos a economias locais. E, sobretudo, a proteção à vida. Uma tarefa que o Inpe ainda não tem capacidade de cumprir, mas que se enquadra em em sua missão, o que exige investimentos em pesquisa e tecnologias.
Mas entre as diversas atividades científicas do instituto, uma delas, incomodou mais o chefe do clã: o monitoramento do desmatamento na Amazônia. Por esse motivo, o Inpe era atacado por Bolsonaro, pelo general Augusto Heleno e pelo ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, o ministro do Desmatamento, ou “da boiada“. Todos acusavam o instituto de manipular dados.
Hoje, então, o orçamento do órgão é de cerca de R$ 75 milhões. Já foi de R$ 250 milhões, mas chegou a ser de R$ 326 milhões entre o final do segundo governo Lula da Silva e o começo da gestão Dilma Rousseff.
Na opinião de cientistas ouvidos pela RBA, as intenções do bolsonarismo contra o Inpe ficaram claras em agosto de 2019. Na ocasião, o diretor-geral Ricardo Galvão foi exonerado após cometer o “pecado” de defender o próprio instituto. O motivo foi a guerra de informações em torno dos dados de desmatamento da Amazônia.
Bolsonaro acusou a instituição de divulgar números “mentirosos”. Disse a jornalistas estrangeiros que o Inpe estava “a serviço de alguma ONG”.
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Nomeado pelo 'Astronauta'
Para a sociedade e a comunidade científica, a demissão de Galvão fez cair a ficha sobre o que representaria Bolsonaro para a ciência. O governo, então, nomeou o coronel da Aeronáutica Darcton Policarpo Damião, que virou um interventor no Inpe por pouco mais de um ano.
Depois, a partir de uma lista tríplice definida por um comitê, o doutor em Geofísica Espacial Clézio Marcos de Nardin foi nomeado em 2020, pelo então ministro da Ciência e Tecnologia Marcos Pontes, o “astronauta”, para comandar o órgão.
Com mandato de quatro anos, Nardin fez até aqui “uma reestruturação tirada de sua própria cabeça”, diz Acioly Olivo Cancellier, vice-presidente do Sindicato Nacional dos Servidores Públicos Federais em Ciência e Tecnologia do Setor Aeroespacial (SindCT).
Na chefia de uma instituição de 61 anos de reconhecida excelência técnica, Nardin mudou departamentos, criou cargos, “substituiu pessoas competentes por incompetentes, não consultou a comunidade interna nem a comunidade científica externa”, afirma Olivo.
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Nowcasting: previsão do tempo
Além dos cortes orçamentários e ataques à reputação do instituto, o governo militarizou determinadas atribuições e missões do Inpe. É o caso da previsão do tempo para curtíssimo prazo, conhecida tecnicamente como nowcasting.
O serviço, de características complexas, puramente científicas, migrou para o Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam), um órgão militar à época ligado ao general Augusto Heleno, ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República.
Essa transferência de atribuição “seguiu a lógica do governo Bolsonaro de substituir tudo o que foi possível dos civis para os militares”, nas palavras do cientista Gilberto Câmara, que comandou o Inpe de 2005 a 2012. Para ele, o exemplo extremo dessa lógica foi colocar o general Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde. E para “cuidar” de vacinas, justamente no advento da maior pandemia que atingiu o mundo desde a gripe espanhola, há um século.
Delírio bolsonarista
“Fazer previsão de tempo não é missão militar. Quando põem Pazuello para cuidar da vacina é porque têm um projeto de apropriação pelos militares de atribuições civis. Por trás disso há um delírio completo, algo como ‘nós sabemos o que é melhor pro Brasil’”, diz Câmara. “Assinaram um acordo irresponsável, porque você não abre mão de uma missão civil e científica para um órgão militar que não tem essa competência.”
Nas duas Conferências das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP-26 e COP-27) realizadas durante o governo Bolsonaro, nos anos de 2021 (em Glasgow, Escócia) e 2022 (em Sharm el-Sheikh, Egito), o governo omitiu os dados do inventário anual do desmatamento da Amazônia.
“Foram divulgados depois, claro, mas sem o impacto que os relatórios teriam, se divulgados nas conferências”, diz Acioly Olivo. Por óbvio, o bolsonarismo não poderia falsear os dados do Inpe, porque o serviço de mapeamento é disponível por satélites de outros países também. Se houvesse interferência do Planalto para mudar os números, seria um escândalo mundial.
Segundo Gilberto Câmara, Bolsonaro e seu governo também tentaram transferir o monitoramento das queimadas e incêndios florestais no Brasil do Inpe para o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), subordinado ao Ministério da Agricultura. Mas não conseguiram porque encontraram resistência dos cientistas.
Sobre as críticas, o atual diretor-geral do Inpe afirma que não é ligado a agremiações partidárias. “Eu prefiro não comentar. Eles têm direito à opinião deles”, diz Clézio Nardin. “Eu não sou filiado a nenhum partido, não tenho nenhuma ideologia e estou trabalhando para uma instituição de Estado”, acrescenta.
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Ministério
Acioly Olivo Cancellier e Gilberto Câmara dizem estranhar que a gestão do Inpe permaneça a mesma quase três meses depois de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tomar posse. Afinal, se Nardin tem mandato, Galvão também tinha, mas foi exonerado por Bolsonaro. Galvão é hoje presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Olivo afirma que a ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), Luciana Santos, teve a gentileza de receber uma comitiva, que entregou a ela um documento com análise do que foi o Inpe e com propostas de ações esperadas para o instituto. Ele sugere que a ministra visite o Inpe e convide o presidente Lula a ir junto. Assim, mostrará que o país está mesmo em uma “nova era” e que o Inpe está valorizado pelo novo governo como representante da ciência.
A RBA entrou em contato com o MCTI, mas não obteve retorno até o fechamento desta matéria. Após resposta da pasta, haverá atualização da reportagem.