Agricultura familiar, soberania alimentar e comunidades de matriz africana possuem muito em comum. Com apoio institucional e de políticas públicas, podem estabelecer conexões, valorizar suas produções e aumentar o alcance do seu conhecimento a outras regiões do país. É o que pensam algumas lideranças que estiveram em Brasília durante a semana da Igualdade Racial, e se reuniram para debater propostas e trocar experiências.
Na segunda-feira (20), diversas organizações do movimento negro promoveram uma conferência livre sobre saúde e segurança alimentar no auditório do Ministério da Agricultura e Pecuária. Com a presença de ativistas de diferentes estados, a condução e mediação dos debates foram feitos por Kota Mulanji, nome tradicional de Regina Barros Nogueira, coordenadora do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana (Fonsanpotma).
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A atividade colocou em evidência alguns padrões rituais, estéticos e alimentares que foram forjados em conhecimentos ancestrais e na resistência do povo negro, transmitidos ao longo de gerações. Segundo Mulanji, há uma reivindicação histórica da população negra pelo seu reconhecimento como "equipamento de promoção da saúde", mantendo laços diretos com a ancestralidade.
"Os nossos saberes, conhecimentos, dentro da questão de ervas, todas essas práticas que são na verdade a grande porta de entrada da maioria desta população brasileira que não têm acesso na atenção primária, e ele vai para dentro dessas mudanças territoriais. E aí lá ele encontra a integralidade do ser, do corpo, físico e espiritual dentro desse processo alimentar também, uma alimentação adequada", pontua.
Gestos apontam para retomada de ações afirmativas
Na manhã de terça-feira (21), Dia Internacional de Combate à Discriminação Racial, uma sessão solene no Plenário da Câmara dos Deputados reivindicou a eliminação da discriminação racial e a tolerância com religiões de matriz africana. Durante a tarde, no Palácio do Planalto, outra solenidade contou com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Acompanhado de ministros, como Anielle Franco (Igualdade Racial) e Silvio Almeida (Direitos Humanos), Lula anunciou um pacote de medidas e programas dedicados à inclusão e ao desenvolvimento da população quilombola e de comunidades negras tradicionais. Um aceno de Brasília à reparação histórica, que contou com a titulação de três territórios quilombolas, onde vivem 936 famílias, e ao retorno de ações afirmativas pautadas nas memórias e saberes seculares.
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O evento também contou com a presença de Eloi Ferreira de Araujo, presidente da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), que comemorou a titulação de terras como sinal de avanço na intensa disputa fundiária do país. Ele também entregou a Lula um levantamento feito sobre a estrutura alimentar dos quilombolas.
"O povo negro vive nesse país por uma ciência natural, passando de pai para filho. O meu pai sabe o momento que ele deva plantar, o momento que ele não deve plantar, e ele explicava isso para nós. A nossa renda é a produção, não é a moeda, então nós produzimos para nos alimentar, nós só vendemos o excedente. (...) Hoje, nós temos comunidades quilombolas que vivem apenas da própria produção", salienta.
Estímulo à produção e escoamento de alimentos
Instituído em 2013, o Programa Nacional de Desenvolvimento dos Povos Tradicionais de Matriz Africana foi interrompido em 2019, após a posse de Jair Bolsonaro (PL). Assumidamente contrário às pautas quilombolas, o ex-presidente não demarcou nenhum território durante sua gestão.
Agora, com o retorno do Partido dos Trabalhadores ao governo federal, um trabalho interministerial começa a ser feito para garantir algumas proposições. Afinal, completou-se 20 anos da criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, em 2003, embrião do atual Ministério da Igualdade Racial.
Um dos caminhos pode passar por um Marco Legal para os territórios já existentes, materializado no Projeto de Lei Makota Valdina, de autoria da deputada Erika Kokay (PT-DF). Outro projeto, do senador Jaques Wagner (PT-BA), estabelece que o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) passe a comprar uma cota mínima de produtos advindos de comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais.
Há ainda iniciativas que contam com apoio da Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias (Embrapa) para agregar conhecimentos técnicos e de logística. De acordo com Alberi Noronha, analista de Clima Temperado da estatal, algumas iniciativas foram provocadas pela Fonsanpotma e visam criar um fluxo de transferências de conhecimentos e tecnologias.
"Por ter uma rede formada por várias unidades no país, a Embrapa pode, em diferentes ambientes, se conectar a diferentes estratégias comuns do movimento de alimentos de alto valor biológico, que tenham ativos do ponto de vista ambiental, social e político importantes para o desenvolvimento do Brasil. Sobretudo num momento de crise planetária e de mudanças climáticas extremas", resume.
Rota do Bode e a união das comunidades tradicionais
Noronha esteve presente em um debate realizado nesta quarta-feira (22) na sede do Incra em Brasília, também organizado pela Fonsanpotma. O encontro, que contou com as presenças do secretário de Políticas Quilombolas, Ronaldo dos Santos, e da deputada federal Daiane Santos (PCdoB-RS), ajudou a aproximar as experiências dos povos de matriz africana com as comunidades tradicionais de Fundo e Fecho de Pasto do semiárido.
Uma oportunidade para aprender com as práticas seculares das populações do Vale do São Francisco, no Nordeste. Uma região cujos habitantes aprenderam a driblar as agruras do clima seco e da falta de água com técnicas de agricultura familiar, uso comunitário da terra e com a tradição de criar animais soltos.
Valério Rocha, articulador do Movimento Fundo e Fecho de Pasto, no norte da Bahia, explica que as secas prolongadas levaram as comunidades da região a privilegiar a cultura de caprinos, mais resistentes à estiagem do que outros animais. Segundo dados do IBGE, há cerca de 1 milhão de bodes atualmente no Sertão do Vale do São Francisco, sendo o município de Casa Verde o principal polo.
Para Rocha, a circulação desses animais ainda é muito restrita e pouco valorizada, sem contar com estímulos governamentais. A carne de bode, segundo ele, é muito saudável e não passa por processos industriais como a bovina ou suína, mas ainda é vista com preconceito em outras regiões.
"A gente produz e o consumo fica mais próximo da nossa região, Pernambuco e Piauí, no máximo até o Rio Grande do Norte. Por isso, queremos consolidar a chamada Rota do Bode para o sul e centro-oeste do Brasil para facilitar a comercialização e valorizar mais o nosso produto", comenta Rocha sobre a demanda, que também inclui a criação de áreas para os animais descansarem enquanto fazem a travessia vivos.
Relançamento de programa beneficia produção comunitária
Como no caso do semiárido nordestino, os alimentos produzidos pelas diferentes comunidades tradicionais ainda são muito restritos ao consumo local. Para além da venda do excedente da produção, que ajuda a garantir a sobrevivência em períodos de estiagem, seria possível abastecer os centros urbanos, gerando renda, reduzindo custos e qualificando os produtos que chegam à mesa de quem mais precisa.
Nesta quarta (22), o presidente Lula e alguns ministros estiveram em Recife, onde relançaram o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), substituído pelo Programa Alimenta Brasil em 2021. A Medida Provisória busca solucionar exatamente esse gargalo entre a agricultura familiar e comunitária e a garantia de segurança alimentar e nutricional, especialmente para a população mais vulnerável.
O programa permite que, por meio de chamamento público, órgãos do governo comprem produtores de agricultores familiares cadastrados em valores compatíveis com os praticados pelo mercado. O teto de comercialização de agricultores familiares - serão privilegiados povos indígenas e comunidades tradicionais - foi ampliado de R$ 12 mil para R$ 15 mil.
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Kota Mulanji acredita que esse tipo de política pública tende a beneficiar também a população negra adensada nas cidades. "70% da população negra, que é a mais atingida pela fome, está no meio urbano. E as nossas unidades territoriais também estão urbanizadas", afirma.
"Se todas as pessoas decidissem consumir o que nós consumíamos nas nossas comunidades tradicionais, nós conseguiríamos ter um trabalho que embasa nossa justificativa. Quase R$ 33 bilhões de reais que circulam pelo povo inviabilizado, discriminado e perseguido", estima a coordenadora.
Noronha celebra a possibilidade de disseminar conhecimentos invisibilizados pela ciência ocidental moderna sobre milhares de culturas indígenas e camponesas. "Existe nesse universo um conhecimento que é de uma cosmovisão de práticas seculares, às vezes milenares, e que se mantiveram e se reproduziram ao longo de todas as transformações no curso da humanidade. A ciência, os técnicos, as políticas públicas têm muito a aprender com essas experiências", conclui.
Edição: Nicolau Soares