entrevista

Secretária Nacional do Clima defende financiamento e plano de adaptação e redução de emissões

Ana Toni afirma que adaptação ao clima precisa estar em todas as políticas públicas

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Ana Toni, nova secretária Nacional de Mudança do Clima, é economista e doutora em Ciência Política - Divulgação/Instituto Clima e Sociedade

No início da última semana, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, o IPCC, publicou um relatório-síntese com as principais constatações do corpo científico da ONU publicadas nos últimos anos com um alerta que mistura urgência e gravidade com um toque de esperança. Ou o mundo age para valer, de modo rápido, ou não haverá como garantir um futuro seguro para todos. É uma questão de sobrevivência, alertam os cientistas.

Mas, dizem, já conhecemos os caminhos para isso. Temos tecnologias que podem ser adotadas para reduzir as emissões dos gases que causam o aquecimento global. É preciso, porém, colocá-las em prática rapidamente, e de modo amplo. 

Isso significa reduzir as emissões de gases de efeito estufa do planeta em 43% em apenas 7 anos, até 2030, para conter o aumento da temperatura média global em 1,5ºC, na comparação com o período pré-Revolução Industrial. O mundo já está 1,1ºC mais quente e já estamos sentido o aumento das ondas de calor e de eventos extremos de chuva e de seca.  A tendência é que alcance o 1,5ºC em uma década. Passar disso pode ser catastrófico. A única saída nesse momento para isso não acontecer é reduzir as emissões.

A mensagem foi recebida como uma injeção de ânimo pela economista e doutora em Ciência Política Ana Toni, nova secretária Nacional de Mudança do Clima. 

Na segunda-feira, 20, poucas horas após o lançamento do relatório, ela afirmou para um grupo de jornalistas: “Não estamos mais no momento de saber quais são os problemas. Já sabemos muito, e já sabemos o tamanho da emergência climática que estamos vivendo. Agora é olharmos para as lacunas de implementação e como podemos acelerar o combate às mudanças do clima”.

Uma das vozes mais ativas na sociedade civil nos últimos quatro anos sobre o desmonte ambiental e climático do governo Bolsonaro, Ana Toni assumiu oficialmente a Secretaria Nacional de Mudança do Clima na última terça-feira, 21, com pelo menos três metas principais: trabalhar os meios para implementar efetivamente no país as medidas de combate às mudanças climáticas, a partir de planos setoriais; criar um plano nacional de adaptação ao problema; e elaborar os mecanismos financeiros que vão dar suporte para essas políticas.

Em entrevista à Agência Pública, ela afirmou que tudo isso passa por ter como foco salvar vidas. “A primeira prioridade de qualquer plano de adaptação no mundo, imagino, deveria ser salvar vidas, e a gente vê todos os anos – como foi o caso agora do litoral norte de São Paulo – perdas de vidas que vamos ter que priorizar”, disse.

Na agenda climática, a preocupação maior sempre foi com a redução das emissões de gases de efeito estufa – a chamada mitigação do problema. Em nenhum momento da história recente do Brasil, mesmo antes do governo Bolsonaro (que abandonou totalmente a questão), se elaborou um plano para lidar com os danos que vão ocorrer – e já estão ocorrendo – porque o mundo está mais quente. Mas o aumento e a maior agressividade dos eventos extremos colocaram a necessidade de adaptação como questão a ser enfrentada já.

Para a nova secretária, essa não pode ser uma agenda pensada apenas quando ocorre uma nova tragédia, nem ser de responsabilidade apenas do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima ou focada em ações específicas. 

“[O que precisamos] não é ter um plano isolado de adaptação, é trazer a perspectiva da adaptação para o bojo das políticas públicas. Será necessário trazer o olhar de adaptação e resiliência para dentro das políticas públicas”, afirmou.

Sobre a necessidade de cortar nossas emissões, Ana ressaltou que apesar de a redução do desmatamento ser a prioridade número 1, 2 e 3, que outros setores terão de começar a agir e que será para nortear as “escolhas difíceis” sobre quem terá de cortar primeiro, que serão feitos os planos setoriais. Mas avisou: “[reduzirmos] o desmatamento não é uma licença para os outros setores continuarem carbonizando”. 

Antes de assumir o cargo, Ana Toni era diretora executiva do Instituto Clima e Sociedade (iCS). É economista, mestre em Política da Economia Mundial pela London School of Economics and Political Science e doutora em Ciência Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Foi presidente do Conselho do Greenpeace Internacional (2010-2017), diretora da Fundação Ford no Brasil (2003-2011) e integrante de diversos conselhos empresariais e instituições da sociedade civil.

Confira a seguir a entrevista que ela concedeu à Agência Pública.

Nesta semana foi lançado o relatório síntese do IPCC, que trouxe uma mensagem mista de urgência com esperança. O documento reforça que só uma ação rápida e intensa pode garantir um futuro seguro para toda a humanidade. Mas também aponta que já sabemos o que precisa ser feito e que temos as tecnologias para reduzir a quase metade as emissões de gás carbônico do planeta até 2030. Só que ainda faltam meios de implementar isso, o que é fato também para o Brasil. Como você acha que podemos avançar?

A gente está vendo uma movimentação nos diferentes ministérios – o que é super bem-vindo – de olhar para novos instrumentos econômicos que tragam o tema do clima, ou pelo menos começar esse debate. Não só mercado de carbono, porque esse é óbvio, mas também criar uma taxonomia [conjunto de critérios para guiar o investimento em negócios verdes]. Obviamente a gente vai ter uma reforma tributária, e estamos discutindo como ela pode ajudar ou não. Isso, para mim, é olhar meios de implementação. Também é um meio de implementação checar a capacidade dos diversos ministérios para fazer coisas relacionadas às questões climáticas, que estão crescendo. Só de ter um monte de novas secretarias [órgãos relacionados ao tema em diversos ministérios] já é um aumento de capacidade. Mas precisamos ter novas formações dos servidores para termos gestores que tenham essa capacidade. E ter também estruturas de financiamento. Acho que a gente está nessa fase: os meios de implementação têm que ser o foco agora. Pode-se querer [fazer] muito, mas se não tiver uma linha de financiamento de algum banco [específica para clima], seja do BNDES, seja do banco estadual, não se faz. O combate às mudanças do clima não vai acontecer só pelo comprometimento político, mas através de ações concretas. E para ter ações concretas, tem que ter os agentes implementadores.

O Brasil passou os últimos quatro anos sem agir em relação à emergência climática, tanto em termos de mitigação, que não houve nenhuma – pelo contrário, aumentamos nossas emissões –, como em termos de adaptação. Sempre que acontece um desastre como o do litoral norte de São Paulo no Carnaval, percebemos como não estamos preparados para os impactos das mudanças climáticas. Você já disse que criar um plano de adaptação é uma das suas prioridades à frente da Secretaria Nacional de Mudança do Clima. Poderia explicar o que isso significa? Precisamos primeiro fazer um diagnóstico ou isso já temos? 

Estamos no começo, então não tenho respostas concretas e claras. A primeira coisa foi fazer com que isso fosse uma prioridade, e acho que é uma prioridade do governo, realmente, ter um plano de adaptação. A sensação que dá – por enquanto é uma sensação, porque a gente não terminou de fazer todo o trabalho – é que tem muitas ações que podem ser caracterizadas como ações de adaptação nos municípios e estados, porque eles não estão esperando, estão fazendo. No governo federal, temos o Cemaden [Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais] e o AdaptaBrasil [plataforma do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação que fornece indicadores de risco de impactos das mudanças climáticas no país], que estão fazendo um trabalho muito interessante. Há algumas, não muitas, ações interessantes dispersas e não tem um plano, o que é necessário obviamente até para mostrar quais são as grandes lacunas que temos de reforçar. Precisamos primeiro mapear todas as ações nos diversos ministérios, e logicamente nos estados e municípios, para descobrir o que tem, e a partir dele descobrir o que não existe e é absolutamente necessário.

Segundo, precisamos saber o que a gente quer, porque em termos de mudanças climáticas vamos ter que adaptar em todos os setores, em tudo que a gente faz na vida: segurança energética, segurança hídrica, segurança alimentar. Tem risco para tudo no tema de clima. Obviamente, não vamos conseguir fazer imediatamente um plano que cubra tudo, vamos ter que pensar qual é a prioridade, por onde começar. Porque o tema da adaptação, não só no Brasil, ainda é um um aprendizado para todos os governos. Se eu te perguntasse qual é o melhor plano de adaptação que conhece no mundo, você provavelmente não saberia responder. Se eu te perguntasse qual é o plano de mitigação da Alemanha, você provavelmente conseguiria me responder. Das perspectivas do governo e da sociedade, nos debruçamos muito pouco sobre o que significa adaptar às mudanças climáticas. Ainda não temos uma capacidade organizada nem na sociedade civil, nem no governo federal, nem nos municípios, nem nos estados. Mas tem ações, tem muita pesquisa. Por exemplo, o Cemaden monitora, se não me engano, 1.038 cidades [no início do mês, o número subiu para 2.120]. Há doze anos, estão monitorando essas cidades e já sabem como estão sendo afetadas. Ali é um mar de informação sobre o qual temos que nos debruçar. Só que há mais de cinco mil cidades no Brasil. Temos lacunas de informação e de coordenação. Não vejo como um plano, mas como um mapa do caminho para a adaptação que a gente comece obviamente por onde estamos, que é o mapeamento, mas que vá priorizando algumas das áreas.

A primeira prioridade de qualquer plano de adaptação no mundo, imagino, deveria ser salvar vidas, e a gente vê todos os anos – como foi o caso agora do litoral norte de São Paulo – perdas de vidas que vamos ter que priorizar. Depois vai vir o resto, porque a pessoa perde a vida, mas a família perde a habitação e em seguida fica em insegurança alimentar, é uma cadeia, temos que entendê-la. Um pessoal aqui do ministério já estudou planos de adaptação super interessantes, muitos deles em países desenvolvidos, que são high tech: indicam que tipo de asfalto colocar para ter mais absorção da chuva e não ocorrer inundação. É lindo, mas a adaptação vai ter que ser adaptada à nossa realidade, que infelizmente é muito básica: é bueiro cheio de lixo, é falta de saneamento. Vamos ter que olhar para o plano de adaptação [na lógica de que] o ótimo é inimigo do bom. Não vai ser ótimo. Foi lançado um plano em 2016, que era o início, basicamente só com estudos e informação. Mas vamos ter que começar com alguma coisa. Com muita ambição, mas começar pequeno, no sentido de que tem que ser concreto, porque enquanto a gente planeja, tem vida sofrendo com isso. Ninguém tem bola de cristal para saber onde vai acontecer o próximo evento extremo – se tivéssemos seria ótimo –, mas se a gente puder mapear os municípios mais críticos do Brasil, podemos ter uma uma agenda de prevenção. 


Para Ana Toni, desastres como o do litoral norte de São Paulo ressaltam a importância de criar um plano de adaptação climática / Rovena Rosa/Agência Brasil

Logo depois do desastre do litoral norte de São Paulo, a ministra Marina Silva anunciou a realização de um seminário para desenhar um plano emergencial de adaptação nesses 1.038 municípios que você comentou, que reúnem 57% da população brasileira. O que já temos de concreto sobre esse assunto?

Marcamos as primeiras reuniões com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação para pensar no seminário. A preocupação que a Marina colocou quando fez a visita [ao litoral norte de São Paulo] é que precisaremos ter sistemas e governança institucional para conseguir lidar com todas as etapas da adaptação. E o que acho que ela percebeu durante aquela visita é que, se a gente conseguisse declarar um estado permanente de emergência climática em alguns municípios, com base em ciência, eles poderiam ter um tratamento muito diferenciado quando ocorresse um desastre desses para conseguir recursos e fazer compras [emergenciais]. Porque hoje é só depois que acontece a chuva que se declara emergência. Num plano de adaptação, [seria essencial] tentar mapear – sem ter bola de cristal, obviamente – os locais mais vulneráveis e deixar pré-organizado, em uma emergência associada a eventos extremos, como o governo deve reagir. Porque é um desastre um pouco diferente: uma coisa é pegar fogo em um shopping center, mas isso não é emergência climática. Se conseguirmos caracterizar melhor o que é a emergência climática em termos de eventos extremos, teremos mais capacidade de reagir de maneira mais coordenada durante esses eventos.

De onde devem vir, na sua análise, os recursos para financiar essas estratégias de adaptação do governo federal?

Nenhuma ideia. Vai depender muito de como é que se pensa esses planos de adaptação.  Temos essas caixinhas – recursos para mitigação, recursos para adaptação –, e no final estamos falando um pouco da mesma coisa: conseguirmos trazer justiça climática e direitos humanos para toda a população em um momento que o planeta está e vai ficar cada vez mais quente. O que vai ser o orçamento para mitigação e como ele fala com o orçamento para adaptação? No final, estamos criando resiliência em um planeta que mudou. O Plano ABC, que é para agricultura de baixo carbono, é sobre mitigação [redução das emissões do setor], mas o agronegócio provavelmente vai ter que se adaptar a um planeta muito mais quente e com menos água. Como fazer essas relações? Aí não tenho a menor ideia. Acho que a gente conhece muito pouco das necessidades de adaptação e tem ignorado esse tema nas políticas públicas e nas privadas também, porque tem um risco climático [para os negócios], os stranded assets [ativos financeiros que prematuramente sofrem desvalorização devido às mudanças associadas à transição para uma economia de baixo carbono]. Voltando ao relatório do IPCC, fica muito claro que as mudanças climáticas estão chegando muito mais rápido e seus efeitos estão sendo muito mais severos e com muito mais amplitude do que os próprios cientistas pensavam. Pensávamos que teríamos que começar a adaptar depois de 2070, mas não, precisamos adaptar a partir de hoje, ou de ontem. 

O que você quer dizer é que obras de infraestrutura necessárias para melhorar a vida da população, como as de saneamento básico, por exemplo, poderiam já ser pensadas com esse componente da adaptação climática? Ou seja, são financiamentos previstos em qualquer plano de desenvolvimento para o país, certo? Não algo novo só para adaptação.

Por exemplo, se fosse um Minha Casa Minha Vida com adaptação, quão mais caro seria, ou quão mais barato? Não tenho a menor ideia, porque nunca tentamos fazer. Quanto custa uma estrada resiliente [aos impactos da mudança climática]? Não tenho a menor ideia. Não temos os elementos ainda porque as perguntas não estão sendo feitas dentro da política pública. [O que precisamos] não é ter um plano isolado de adaptação, é trazer a perspectiva de adaptação para o bojo das políticas públicas. E também ter um plano específico para emergência climática, para adaptação, porque aí é emergência e não tem jeito. Mas será necessário trazer o olhar de adaptação e resiliência para dentro das políticas públicas. E elas podem sim ter um custo maior, provavelmente terão, só que a gente tem que entender de quanto será.

O Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG) do Observatório do Clima acaba de lançar um relatório afirmando que o Brasil teve uma “década perdida” em termos de mitigação de emissões, que cresceram 40% entre 2010 e 2021. Além do desmatamento, que é o mais óbvio que precisa ser combatido, você já tem em mente um plano mais amplo para diminuir as emissões brasileiras?

Não sei se foi uma década perdida. Obviamente, em relação aos últimos quatro, não tenho dúvida. Mas tem duas coisas. O Brasil é um país em desenvolvimento, vamos lembrar disso. Era esperado que em alguns setores, a gente ainda estaria carbonizando [aumentando as emissões de CO2], infelizmente, e [agora] estamos correndo atrás da descarbonização. Por exemplo, no setor de energia, nessa década a participação de energia eólica e solar cresceu, então, da minha perspectiva, não foi perdido. No desmatamento é perdido, porque não se cria nenhuma riqueza, nenhum bem-estar, nada. Não foi [tudo] perdido em algumas áreas. O governo federal agora tem 17 ministérios falando de clima. Então não se perdeu. Estamos todos falando de clima, o setor privado andou, tem novos instrumentos econômicos. A gente poderia estar muito melhor, não resta dúvida, mas não vejo como totalmente perdida, até porque o tema de clima requer pensar um novo modelo de desenvolvimento, e não se faz isso automaticamente, do dia para a noite. Tecnologia [para limitar o aquecimento médio do planeta a 1,5°C, a meta do Acordo de Paris] agora já sabemos que tem, mas há dez anos nem isso sabíamos.

O mais importante é que a gente precisa no Brasil de um plano de desenvolvimento econômico e social de baixo carbono, um plano de clima lastreado pelos planos setoriais. Precisamos ter um plano setorial para todos os setores, não só para o desmatamento. É fundamental, prioridade número 1, 2 e 3 acabar com o desmatamento não só por questões de clima, mas por questões de biodiversidade, justiça climática, povos indígenas. Agora, não dá para imaginar que acabar com o desmatamento será suficiente. A economia brasileira não está produzindo o mesmo tanto de riqueza com menos carbono. A intensidade de carbono por PIB gerado não está diminuindo, esse é o grande problema. Não estamos ficando mais eficientes nem em termos energéticos – porque estamos usando mais energia para a produção de riqueza –, nem em termos de carbono, pois estamos usando mais carbono para produzir o mesmo tanto de riqueza. É isso que precisa mudar. Estamos usando mais carbono para produzir o mesmo tanto de energia, estamos sujando a matriz [energética]. E se a gente estivesse só limpando a matriz e não criando riqueza também seria um problema. Mas a gente não está nem criando riqueza, nem limpando a matriz, está errando em ambos os lados. Combater o desmatamento é fundamental, mas precisamos olhar para os outros setores: indústria, energia, transporte e obviamente agricultura. O desmatamento não é uma licença para os outros setores continuarem carbonizando.

Você disse que uma das suas prioridades é desenvolver os planos setoriais, e que isso também ajudaria a traçar prioridades, definir quem deveria reduzir emissões primeiro e quem pode talvez esperar um pouco mais. Poderia explicar isso melhor, por favor?

O Brasil já tem duas metas muito importantes: chegar na neutralidade de carbono até – a palavra “até” é importante – 2050, e cortar 50% das emissões até 2030. Para o modelo econômico e social que o Brasil quer para o seu futuro, a gente já sabe que vai ter que descarbonizar no máximo até 2050. Poderíamos, deveríamos e queremos descarbonizar muito antes e com mais ambição? Quais são as vantagens e desvantagens, as escolhas difíceis que teremos que fazer – e que talvez tenham oportunidades também? Porque só falamos do custo da descarbonização, mas talvez tenham oportunidades. Por exemplo, se os produtos brasileiros estão sendo produzidos com menos carbono do que outros países, talvez a gente tenha vantagens competitivas também em relação a outros. Vamos fazer os planos setoriais para cada uma das áreas e verificar quais setores têm mais facilidade para descarbonizar. O que quer dizer mais facilidade? Não só custa menos, mas também gera mais emprego e é socialmente melhor. Ou a transição, em termos dos trabalhadores, é mais factível, em comparação a outros. Se a gente acabar com o desmatamento – temos esse compromisso de fazê-lo até 2030 –, os outros setores teriam bastante capacidade de performar muito melhor do que era esperado antes para que possamos descarbonizar até mais. Mas tem que ter viabilidade econômica, assegurar que é socialmente justo e ter a viabilidade política, que vai ser muito importante também, porque o tema de clima não é mais só de cima para baixo, vai ter que ser construído em um pacto da sociedade brasileiro. É esse o desenvolvimento que a gente quer. Já temos um parâmetro da onde a gente tem que chegar, então dentro desse parâmetro, como a gente divide as caixinhas agora? 

Se o Brasil realmente conseguir combater o desmatamento rapidamente, como é necessário, qual seria a próxima prioridade de redução das emissões? 

Tem a área de agricultura, a pecuária em particular, que tem que descarbonizar, obviamente. Já estamos trabalhando na área da eficiência energética, que é fundamental e vai ajudar a descarbonizar todas as matrizes. Tem também o tema dos transportes, que é um calcanhar de Aquiles e é bom tanto para saúde como para a descarbonização. Ônibus elétrico é um ganha-ganha, ajudaria muito se a gente conseguisse avançar com os ônibus elétricos em todas as cidades. Agora, quanto custa? O que precisa ser feito? Quais são os meios de implementação que a gente tem pra para que isso aconteça? Se pudéssemos oferecer para todos os municípios ônibus elétricos, duvido que teria um prefeito que falasse não, até porque a gente sabe o quanto tem de custo para a saúde a poluição do ar nas cidades. Mas a gente consegue oferecer ônibus elétrico para todos os municípios? E acho que vamos ter que priorizar não só a perspectiva do carbono, que obviamente é fundamental, mas também aspectos sociais e econômicos. Não dá para começar a descarbonizar o setor que mais emprega antes de assegurar que esses trabalhadores serão requalificados para outras atividades. Serão necessários alguns critérios que norteiem essas escolhas – carbono é obviamente um, mas não pode ser o único.

Esse comentário que você está fazendo agora ressoa como o discurso, por exemplo, que o pessoal do carvão mineral em Santa Catarina adota. Eles falam muito da perda de empregos que a desativação da termelétrica pode trazer. Quando você menciona que é preciso pensar em descarbonização mas também na justiça social, não teme que esse argumento poderia ser empregado, por exemplo, para aumentar a sobrevida do uso do carvão?

Espero que não, porque não é esse o objetivo. Acho sim que o argumento social e de emprego é absolutamente fundamental, mas não pode ser uma desculpa. O argumento ser válido – e eu acho que ele é válido e importante – é uma coisa. Ele ser desculpa para pedir que os subsídios ao carvão continuem por mais 40 anos é uma outra coisa. Temos de usar o critério dos trabalhadores e dos empregos para ajudar nas escolhas, e não para atrasá-las, porque a gente vai ter que fazer escolhas difíceis. Sabemos exatamente como é que a gente chega lá. Então, entre gastar uma certa quantia de subsídio ao carvão e treinar as pessoas para [que se qualifiquem para outros empregos], tenho uma escolha a fazer. Continuo com a mesma premissa de que os trabalhadores são fundamentais, mas uma coisa é dar mais 40 anos de subsídio às empresas carvoeiras versus pegar todos esses subsídios e tirar das empresas para requalificar seus trabalhadores. O mesmo dinheiro que o governo dá hoje de subsídio poderia ser usado para a requalificação desses empregados. 

Aproveitando o tema da energia, gostaríamos de saber o que você pensa sobre, por exemplo, a exploração de petróleo pela Petrobras na bacia da Foz do Amazonas, considerada uma área ambientalmente sensível. Será tomada uma decisão sobre isso levando em conta a questão climática no governo? 

Antes de falar desse tema da Foz do Amazonas, acho que tem uma coisa maior: a política energética brasileira talvez ainda não tenha incorporado todos os elementos de meio ambiente e clima necessários. Isso é um trabalho que vai ser feito conjuntamente entre o MMA e o Ministério de Minas e Energia. Se analisarmos os critérios ambientais e climáticos usados para as realização dos leilões, acho que isso ainda tem sim que ser fortalecido entre todos os ministérios. A questão do offshore [exploração longe da costa] é ainda onde pega. Sobre onshore já tem muito debate e regulamentações de licenciamento, mas talvez o offshore tenha sido menos observado nas questões ambientais, às quais acho que Ibama e Conama começam a estar mais alertas porque estamos usando o offshore não só para a extração de combustíveis fósseis, mas também para energia eólica e pesca. Como já existe na parte terrestre, a gente começa a ter agora uma concorrência no offshore, e aí acho que tem um olhar mais atento a quais serão as salvaguardas socioambientais para esses projetos, pois serão necessárias tanto para a energia eólica como para os combustíveis fósseis.

Especificamente em relação à Foz do Amazonas, existe um debate aqui no ministério. Estou chegando agora a esse debate, que se iniciou antes da minha entrada. Entendo que está no Ibama, e tendo o Rodrigo Agostinho como presidente do órgão, alguém totalmente consciente dos temas climáticos, tenho certeza que isso será levado em consideração. Mas o Ibama implementa o licenciamento, as regras não são dadas por ele. Por isso, volto a chamar a atenção para as salvaguardas que temos no offshore, quais são as regras que a gente precisa. Espero que vá para o caminho que a gente espera que vá, mas acho que a gente deveria ter um olhar mais atento para o problema maior: primeiro o offshore, e segundo a política energética inteira. A Foz do Amazonas é o símbolo da falta de uma governança mais ampla e estruturada para as escolhas difíceis que temos que fazer na área de energia. Há um tema que queria mencionar que é: infelizmente todas as fontes energéticas têm impactos ambientais e sociais. Todas elas: solar, eólica, e obviamente os combustíveis fósseis. Temos visto comunidades com muitos problemas em relação à indústria eólica em algumas religiões do Nordeste. As renováveis não podem cometer os mesmos erros que a indústria de combustível fóssil fez no passado. Ou seja, precisaremos de um planejamento ambiental e social específico para que a energia limpa que queremos e da qual precisamos possa vir sem a bagagem e os erros do passado.

Temos visto uma disposição do governo federal em incorporar as questões climáticas, mas isso não acontece na Câmara e no Senado. Não há um movimento majoritário de inserir as pautas climáticas no debate legislativo. No entanto, algumas mudanças recentes importantes na política energética vieram do Congresso, como por exemplo a obrigatoriedade de construção de termelétricas a gás natural que foi embutida na autorização de privatização da Eletrobras. Como será a relação da pauta climática do do governo com o Congresso, que em sua maioria parece hostil a essas questões?

Isso se chama democracia. Da perspectiva do governo federal, o presidente Lula, a ministra Marina, todos eles já deixaram absolutamente clara essa postura de querer ser um líder de clima e pensar na descarbonização em todos os seus âmbitos. O governo federal não tem a maioria no Congresso em tudo que quer. Isso serve para a política climática como serve para a reforma tributária. O diálogo entre governo federal e Congresso vai ter que ser estabelecido para todas as políticas e também para a política climática, não resta dúvida. Eu não diferenciaria as dificuldades da política climática de muitos outros temas. Para o bem ou para o mal, já temos uma boa legislação em muitos aspectos ambientais e climáticos – por exemplo, para acabar com o desmatamento. Temos que nos defender para que isso não piore. Mas está na mão agora do Executivo e dos governos estaduais diminuir as emissões, o Congresso até pode ajudar, mas não tem muito como atrapalhar. Talvez em algumas outras áreas, como a política energética, isso seja diferente. Por isso os planos setoriais são tão importantes.

Todo mundo sabe que a área de energia tem que descarbonizar. Mas quanto, quem, o quê? Não tem um plano de descarbonização da área de energia. Esse pacto não foi dado nem pelo governo federal, muito menos pelo governo federal com o Congresso, muito menos com o setor privado, com os municípios, com os estados. Realmente acho que a gente vai ter a oportunidade de criar grandes pactos, e aí espero e quero que o governo federal lidere, porque está muito comprometido com a agenda de descarbonização. No meio tempo, [a questão] é como a gente atua no Congresso para não piorar e reverter o que for possível. Serão escolhas muito difíceis, e tem um desbalanço na capacidade de influência [entre as áreas]. Agora, não é só porque elegeu um governo federal comprometido com o tema clima que os problemas foram resolvidos – não foram. As diferenças continuam muito vivas na sociedade. Esse embate continuará, não sei até quando, mas certamente vai continuar nos próximos quatro anos.

Não só não temos um Congresso com a pauta climática incorporada, como nos últimos anos houve um aumento do negacionismo climático no Brasil. Era algo que já existia, mas de modo periférico. Nos últimos quatro anos esse discurso foi incorporado pelo próprio governo e as desinformações acabaram se espalhando. É algo que te preocupa?

Fico me perguntando se a sociedade brasileira se tornou mais negacionista ou se ela foi induzida a ser mais negacionista. Tinha um megafone para os negacionistas até recentemente. Esse megafone talvez tenha influenciado bastante essa opinião. Em geral, todos os dados que eu vejo, é que numa situação normal sem esse megafone, digamos assim, a população brasileira não é anticlima, ela entende o que está acontecendo, tem consciência, está vivendo na pele. Fico ainda com esperança que esse negacionismo que a gente detectou na população nos últimos anos seja fruto do megafone que havia dentro do governo federal e não da perspectiva real das pessoas. Acho que a gente só saberá disso daqui a pouco, daqui a um ano, dois anos, e vai precisar de mais pesquisa para entender exatamente onde a população brasileira está. Quando os lobistas negacionistas não tiverem tantos recursos, não estiverem à frente de políticas, saberemos até que ponto isso era induzido ou se era real.

Sobre a Autoridade Nacional de Segurança Climática, que está prestes a ser criada pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, como ela funcionará e qual será a interface entre essa nova autarquia e a sua secretaria?

Está ocorrendo um debate muito interessante aqui dentro sobre essa autoridade, qual seria o seu papel, como é que ela falará com os diversos órgãos. A gente está tentando montar um sistema de governança muito robusto para clima. Temos a Secretaria de Clima, mas temos clima em diversos órgãos do governo federal, tem o Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima, que tem que ser robustecido porque agora tem muito mais interesse sobre o tema e esse vai ser um órgão muito importante. O presidente Lula e a ministra Marina acordaram em criar a Autoridade Climática, assim como também um conselho de clima mais amplo. Tomara que a gente consiga deixar o legado de uma governança climática robusta para o país, que não será só do governo federal. Não temos ainda no Brasil – e talvez a autoridade esteja sendo desenhada pensando nisso – um lugar que traga para todos os órgãos [o questionamento sobre] se nossas políticas públicas estão coerentes com nossas metas climáticas, com nosso plano de mitigação. Ainda não temos um, mas quando tivermos. As políticas públicas que estamos aprovando estão coerentes com a política de clima em termos de emissão? Acho que a autoridade pode nos ajudar muito a fazer essa pergunta, porque depois que a política pública foi elaborada e está sendo implementada, tem que se avaliar se realmente está contribuindo para a política de clima. E falo não só de políticas públicas a nível federal, mas a nível estadual, o próprio setor privado. Onde temos hoje no Brasil um lugar em que se possa verificar se todas as políticas que estão sendo desenhadas são corretas para ajudar na implementação de um plano de clima? Se conseguirmos que a autoridade seja esse lugar, acho que vai trazer muito mais transparência para todo mundo em relação às políticas que realmente fazem parte de um processo de implementação da política climática [mais abrangente]. Essa tem sido um pouco a intenção do que está sendo desenhado, e vamos ver se sai, como sai. Ainda tem muita conversa com diversos ministérios.