resenha de livro

Traições, transformações: pensar e fazer Teatro do Oprimido hoje

Prática do Teatro do Oprimido (TO) é um sistema de formas teatrais criado por Augusto Boal nos anos de 1970

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Augusto Boal foi um homem do fazer coletivo, um homem de movimentos, de grupos, de partido. - Reprodução/ Instituto Augusto Boal

Como uma prática teatral emancipatória, idealizada em momento de luta política radicalizada à esquerda na América Latina, pôde assumir usos conservadores no mundo contemporâneo? Essa é uma das perguntas feitas por Julian Boal em seu livro Sobre antigas formas em novos tempos: o Teatro do Oprimido hoje entre “ensaio da revolução e técnica interativa de domesticação das vítimas”, lançado pela editora Hucitec, em 2022. Construído a partir da tese de doutorado de Julian, o livro apresenta um estudo aprofundado sobre a prática do Teatro do Oprimido (TO), sistema de formas teatrais criado por Augusto Boal nos anos de 1970,  considerando sua historicidade, seus impasses e suas possibilidades.

Julian é filho de Augusto Boal, praticante e militante do Teatro do Oprimido, além de curador e coordenador de diversos encontros de TO pelo mundo, o que faz com que seu olhar crítico tanto para a história do TO quanto para a sua prática seja privilegiado:  se “utilizar Brecht sem criticá-lo é traí-lo”, segundo o dramaturgo alemão Heiner Müller citado por Julian logo na introdução do livro, pensar sobre o TO sem analisar suas contradições seria igualmente uma traição.

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A primeira parte do livro é dedicada a uma investigação minuciosa sobre os pressupostos históricos do TO, envolvendo tanto a trajetória de Boal no Teatro de Arena, o contexto social e político do Brasil e da América Latina, como os conceitos e referências mobilizadas pelo sistema. Para Julian, a genialidade de Boal foi incorporar debates, soluções e impasses da cultura política dos anos de 1960 e transformá-las numa das práticas teatrais mais importantes da história do teatro no Brasil e no mundo.

O autor defende a hipótese de que a criação do TO partiu das reivindicações emancipatórias da esquerda, transpondo para a técnica teatral os debates sobre a divisão social do trabalho, o fim da separação entre arte e vida, a autoemancipação e autoorganização dos oprimidos e a aposta na individualidade heróica como forma de ação política.

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É nesse último ponto que entra a discussão sobre a luta armada, já que o imaginário sobre a Revolução Cubana estava vivo e atuante, intensificado pelas lutas de liberação nacional e anticolonial nos países africanos. Boal era crítico à atuação do Partido Comunista Brasileiro, em especial à possibilidade de aliança entre classes e ao papel do intelectual como “guia das massas” e se filiou à ALN (Aliança Libertadora Nacional), organização liderada por Carlos Mariguella,  apostando na guerrilha e no protagonismo heroico individual como estratégia de luta política nos anos de ditadura militar no Brasil e na América Latina.

Nesse contexto, a criação do TO seria uma síntese em forma de sistema teatral das estratégias políticas da esquerda revolucionária brasileira pós-1968, confiando na virtude heróica individual como forma de transformação da realidade. É o que vemos objetivamente na prática do Teatro Fórum, onde através de intervenções individuais mediadas pela figura do “curinga” pode haver a problematização/ resolução de conflitos de ordem coletiva expostos em cena, desencadeando uma reflexão conjunta para a tomada de ações concretas na realidade. Se o mundo é passível de transformação pela ação dos homens e mulheres, o TO, nas palavras de Boal,  é um “ensaio da revolução”, ou seja, a prática teatral não é um fim em si mesmo, mas parte de um processo de organização coletiva para a emancipação da sociedade.


Um dos maiores dramaturgos brasileiros, Boal usava a arte como ferramenta para transformação social / Foto: Thehero/Wikicommons

Entretanto, o cenário político atual é completamente distinto dos anos de 1960/1970. Politicamente, a luta armada foi derrotada e a “virtude heróica individual” está agora vinculada à ideia de empreendedorismo e à figura do “self made man” do capitalismo financeiro. Como Julian aponta ao citar Gilda de Mello e Souza e a “incontrolável autonomia das formas”: independente da vontade inicial de seu produtor, as formas artísticas produzidas para um determinado fim podem produzir o seu contrário, ainda mais se pensarmos em diferentes conjunturas. Nesse sentido, não basta praticar TO munido de “boas intenções”, o próprio sistema contém em si pressupostos de valorização da ação individual que tem sido apropriados pelos mais diversos meios, desde workshops em empresas, ONG’s assistencialistas a grupos revolucionários. Por isso a insistência na pergunta sobre o potencial emancipador do TO nos dias atuais.

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Longe de articular a reflexão crítica para uma paralisia, Julian traz possibilidades de enfrentamento a partir de experiências concretas ligadas a conjunturas específicas, articulando diretamente as relações entre prática teatral e organizações sociais, como o Jana Sanskriti,  na Índia; o Óprima, em Portugal, e a Escola de Teatro Popular, no Brasil. O livro termina com uma ótima provocação sobre o papel da arte na luta política anticapitalista. Se os impasses para a prática contemporânea de TO são muitos, maiores são as possibilidades de imaginar intervenções coletivas emancipatórias a partir do teatro e do pensamento de Augusto Boal.

*Mariana Mayor é professora de História do Teatro Brasileiro do Instituto de Artes/ UNESP.

**Resenha de 'Sobre antigas formas em novos tempos: o teatro do Oprimido hoje entre ensaio da revolução e técnica interativa de domesticação das vítimas', de Julian Boal.

***As opiniões expressas nesse texto não representam necessariamente a posição do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo