O golpe militar, que sufocou as liberdades no Brasil por 21 anos, completa 59 anos neste sábado (1), com as Forças Armadas vindo da experiência mais próxima do poder que tiveram desde a redemocratização no país, em 1985. Com a aliança com o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), os militares receberam os holofotes em diversos momentos, principalmente nos que uma parcela diminuta da população pedia uma intervenção.
O desejo por outro golpe protagonizado pelas Forças Armadas, que acabe com liberdades, pode parecer impensável em um país que conviveu, por décadas, com uma rotina de torturas e assassinatos, cometidos por agentes das forças de segurança pública do país.
Para o antropólogo Piero Leirner, que pesquisa o meio militar há mais de três décadas, a lista de crimes da ditadura militar não é revoltante para uma parcela dos brasileiros. “Sinceramente? Acho que a maior parte da população não está nem aí para isso. Perdeu-se o timing, essa ficou sendo uma questão minoritária.”
Leirner avalia que as Forças Armadas conseguiram manter uma imagem estável e positiva. “Acho que isto é resultado justamente de uma operação psicológica razoavelmente bem-feita.”
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Como o senhor avalia o atual prestígio das Forças Armadas com a população?
Piero Leirner: Me parece que houve uma pesquisa, se não me engano, da AtlasIntel, que mostrou um índice de confiança bem abaixo do que se costumava ver. Isso foi medido no final de janeiro, depois de tudo que ocorreu no dia 8 e de toda exposição negativa que as Forças Armadas tiveram na imprensa neste período.
Ainda assim, os números conseguiram ser um pouco melhores que os atribuídos ao Governo (confiam e não confiam respectivamente 42% e 45%) e ao STF (42% e 47%) e muito melhores que os do Congresso. Isso mostra, se considerarmos válidos esses números, que a “desconfiança” recaiu sobre todo mundo.
Isso para mim é um sinal interessante, pois pode ser uma evidência de que aquilo que vem ocorrendo nos últimos tempos surtiu efeito: uma espécie de desestabilização da percepção social sobre a política, as instituições e as tais “regras do jogo”. Poderíamos até recuar este processo para antes do governo Bolsonaro até, mas vamos nos limitar ao início da campanha eleitoral com seu processo de ataque realizado por uma série de atores, não só Bolsonaro. Isto deu um tranco.
Estes números refletem talvez aquele termo muito usado, a tal polarização. Mas o que isso quer dizer? Do meu ponto de vista é o fato de que nem as instituições nem o chamamento à dissolução delas têm condições de resolver este impasse. É uma espécie de corrida armamentista.
Dito isso, é preciso ver se o ajuste à conta-gotas de um acordo, que é o que me parece que está sendo tentado, vai esfriar ambos os lados, e como isso vai repercutir. Normalmente eu diria que para as Forças Armadas recuperarem a confiança basta sair da capa do jornal.
As últimas pesquisas mostram que houve uma queda expressiva da confiança da população nas Forças Armadas. Há alguma relação, em sua opinião, com a aliança estreita que os militares mantiveram com o governo Bolsonaro?
Não acho possível estabelecer essa causalidade sem maiores detalhes, investigações qualitativas. Porque ao olharmos os números ali, também poderíamos dizer que as Forças Armadas têm praticamente a mesma popularidade de Bolsonaro, que enfim, chegou na reta final com quase metade dos votos, e assim aqueles que são bolsonaristas coincidem com os militaristas, e vice-versa.
Isso não explicaria por que, então, houve essa queda expressiva. Só quem é do campo democrático passou para o “não confiam”? Pode ser. Mas, em todo caso, é preciso levar em conta que a identificação militares-Bolsonaro já está dada há muito tempo.
E as pesquisas não acompanharam as mesmas oscilações do ex-presidente, se não me engano. Na minha opinião esta queda deveu-se muito mais à exposição negativa que os militares começaram a ter na imprensa. Primeiro, aos poucos, com casos de superfaturamentos, doce de leite e viagra, isso sim cola em Bolsonaro, o “imbrochável” com sua lata de Leite Moça no café da manhã, mas depois especialmente com a associação direta ao 8 de janeiro.
Como os militares ficaram operando tudo isso “dentro da margem de erro”, isto é, ao mesmo tempo participando do governo e dos arroubos de Bolsonaro, mas negando o tempo todo, as consequências não foram piores. Então, a meu ver eles fizeram uma manobra onde evidentemente se esperava alguma baixa, mas no geral saíram vivos e com seu objetivo primário conquistado: não perderam poder, pelo contrário.
Ainda que em queda, as Forças Armadas possuem um índice de confiabilidade muito maior que outras instituições, como os partidos e o STF. A que o senhor atribui essa aprovação?
Acho que isto é resultado justamente de uma operação psicológica razoavelmente bem feita, pois justamente baseada na ideia de que eles estavam lá operando essa máquina de dissonância cognitiva chamada Jair Bolsonaro e ao mesmo tempo negando ao máximo isto.
Toda vez que a coisa os apertava davam um jeito de fazer a bomba estourar no colo do ex-Presidente. Por exemplo, precisaram criar aquele teatro da demissão dos comandantes para colar a ideia de que Bolsonaro tentava o tempo todo aparelhá-los, mas eles resistiam enquanto “instituição de Estado”.
Toda a imprensa, com auxílio de muita análise acadêmica, diga-se de passagem, repercutiu este evento colocando os militares na posição de vítimas, o que para mim é uma dissimulação típica “de manual”. Nessa jogada, então, eles garantiram que se cristalizasse a ideia de que havia militares “bolsonaristas” que aderiam ao “projeto” por uma opção pessoal, e esquivaram a corporação militar da frente de ataque.
Isso aí garantiu, a meu ver, que eles ainda chegassem em primeiro lugar nessa maratona de combalidos.
Sem uma guerra ou processos internos e externos que os coloquem em evidência ou como protagonistas, como os militares conseguiram vencer a guerra da propaganda que os condena por crimes da época da ditadura?
Sinceramente? Acho que a maior parte da população não está nem aí para isso. Perdeu-se o timing, essa ficou sendo uma questão minoritária.
Edição: Rodrigo Durão Coelho