Ao falar da política colonial da época do imperialismo capitalista, é necessário notar que o capital financeiro e a correspondente política internacional, que se traduz na luta das grandes potências pela partilha econômica e política do mundo, originam abundantes formas transitórias de dependência estatal. Para esta época são típicos não só os dois grupos fundamentais de países – os que possuem colônias e as colônias -, mas também as formas variadas de países dependentes que, de um ponto de vista formal, político, gozam de independência, mas que na realidade se encontram envolvidos nas malhas da dependência financeira e diplomática. Uma destas formas, a semicolônia, indicamo-la já anteriormente. Modelo de outra forma é, por exemplo, a Argentina[1].
Vladimir Ilitch Ulianov, Lênin.
A guerra da Ucrânia abriu uma discussão na esquerda brasileira sobre o lugar da Rússia no mundo. Na América Latina a supremacia dos EUA como principal potência imperialista alimenta uma ilusão de ótica. Prevalece até, talvez, a percepção de que a Rússia seria um país dependente. Trata-se de um grave erro. A Rússia é um Estado imperialista, ainda que subalterno.
Quais são os critérios que permitem qualificar um país como imperialista? Qual deve ser a régua para medir o lugar que cada Estado ocupa no sistema internacional? Na tradição marxista a discussão esteve concentrada na necessidade de responder às mudanças que ocorreram nas vésperas da Primeira Guerra Mundial e que permitiram compreendê-la.
Em 1902 foi publicado o livro do inglês Hobson, O imperialismo, muito bem recebido por Kautsky, o principal líder teórico do SPD alemão, mais influente partido da Segunda Internacional e, em 1910, o de Hilferding, O capital financeiro, que obteve grande repercussão. Rosa Luxemburgo e Bukhárin foram, também, pioneiros na elaboração, mas foi o livro de Lenin "O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo" que alcançou maior repercussão.
:: Autoridades russas afirmam que atentado em São Petersburgo foi planejado por Kiev ::
Lenin destacou cinco novos fatores no metabolismo do capital que explicavam uma mudança de fase ou período na natureza do capitalismo: (a) concentração de capital e formação de monopólios; (b) fusão do capital industrial e bancário originando o capital financeiro; (c) papel da exportação de capitais na conquista e preservação de posições de domínio; (d) formação de corporações multinacionais que dividem entre si o mercado mundial; (e) partilha do mundo entre os Estados imperialistas.[2]
A Rússia dos Czares era um dos maiores impérios do mundo até o triunfo da revolução de outubro em 1917. Ocupava um lugar especial no sistema europeu de Estados porque era um país gigante, onde uma maioria de 90% dos 150 milhões de habitantes era camponesa, mas possuía o quinto maior parque industrial do mundo no início do século XX. Detinha domínio colonial sobre dezenas de nações não russas que foram oprimidas durante séculos. A URSS foi a primeira República socialista da história.
Mas a Rússia é hoje um país capitalista. Evidentemente, não tem sentido qualquer discussão sobre a restauração capitalista, iniciada sob o governo Gorbatchev, concluída, rapidamente, sob Yeltsin e consolidada pelos governos de Putin. Nos anos noventa, durante dez anos, a Rússia viveu uma terrível regressão histórica, mergulhou no abismo da decadência econômica-social, empobreceu de forma vertiginosa.
:: Biden pede que Rússia liberte jornalista dos EUA preso por 'espionagem' ::
Um critério lúcido para ordenar debates entre marxistas é reconhecer que existem discussões que a história resolveu, e outras que permanecem inconclusas. A história já confirmou que a ex-União Soviética não estava em transição ao socialismo.
Fosse qual fosse a natureza das relações sociais daquele modo de produção pós-capitalista, uma controvérsia teórica que foi, em seu tempo decisiva – Estado socialista ou operário ainda, mas, burocraticamente, degenerado, Estado burocrático, uma variante de capitalismo de Estado, ou outras – não restam dúvidas que a União Soviética não estava construindo uma sociedade mais igualitária. A transição tinha sido bloqueada.
A história confirmou, também, que uma parcela majoritária da casta burocrática dirigente, embora se autodeclarando marxista para dissimular seu projeto diante de setores de massas, era restauracionista. Não é razoável continuar polemizando, trinta e cinco anos depois se a maioria dos quadros dirigentes do ex-PC da URSS era ou não restauracionista, pela simples evidência de que, não só a URSS deixou de existir – por iniciativa de uma parcela dos seus líderes - como a restauração capitalista já se completou.
Mas, nos últimos vinte anos, a economia se recuperou, o que explica os mandatos ininterruptos de Putin. Na primeira década do século cresceu a uma média anual acima de 7% ao ano, duplicando o PIB. A Rússia é uma das dez maiores economias em PPC (Paridade Poder Compra), tem 150 milhões de habitantes e é, em território, o maior país do mundo, estimando-se que detém 30% dos recursos naturais do planeta. Estende sua influência desde a Bielorrússia, na Europa Oriental, até à Ásia Central: Cazaquistão, Turcomenistão, Tadjiquistão, Quirguízia, Uzbequistão. A Rússia possui o maior arsenal de armas nucleares e é um dos três maiores produtores de petróleo e gás. Possui um complexo industrial-militar de alta tecnologia, como jatos de combate de quinta geração, submarinos nucleares, e mísseis balísticos de curto e longo alcance, que só é comparável ao norte-americano. O mercado interno de consumidores de bens duráveis é de dezenas de milhões. A presença de grandes empresas estatais, como a Gasprom, uma das maiores do mundo de gás e petróleo não anula que seja capitalista.
:: Ordem de prisão contra Putin dificulta paz na Ucrânia e reforça laço entre Rússia e China ::
Se usarmos a fórmula de Lenin parece evidente que a Rússia é, também, um país imperialista, ainda que subalterno. A presença de monopólios, a liderança do capital financeiro, o papel da exportação de capitais, a competição por espaço de suas corporações no mercado mundial, e a disputa de áreas de influência estão todos presentes. Grandes empresas russas como a MMC Norilsk Nickel PJSC e Lukoil PJSC lançaram IPO’s em mercados financeiros como Nova York, Londres e Frankfurt e arrecadaram, ao longo de mais de muitos anos, dezenas de bilhões de dólares, até serem atingidas pelas sanções impostas após o início da guerra na Ucrânia.
No entanto, seria obtuso e anacrônico não compreender que é necessário atualizar a análise de Lenin. A definição de critérios parece ser uma boa discussão preliminar. O lugar de cada país periférico no sistema internacional de Estados dependeu de, pelo menos, quatro variáveis estratégicas:
(a) sua inserção histórica na etapa anterior. Ou seja, a posição que ocupou em um sistema extremamente hierarquizado e rígido: afinal nos últimos cento e cinquenta anos somente um país, o Japão, foi incorporado na Troika, o centro do sistema liderado pelos EUA, associado à Grã-Bretanha, e União Europeia, e todos os países coloniais e semicoloniais que ascenderam em sua inserção, como Cuba e China, só o fizeram depois de revoluções que permitiram conquistar maior independência. A URSS era a segunda potência mundial. A restauração capitalista fragilizou a posição da Rússia, mas ela não foi recolonizada, não perdeu sua independência política.
:: Rússia e China testam 'parceria sem limites' em visita de Xi Jinping a Moscou ::
(b) a dimensão de sua economia. Ou seja, os estoques de capital acumulado, a capacidade de ter soberania monetária, os recursos naturais – como o território, as reservas de terras, os recursos minerais, a autossuficiência energética, alimentar, etc. – e humanos – entre estes, sua força demográfica e o estágio cultural da nação – assim como a dinâmica de desenvolvimento da indústria, ou seja, sua posição na divisão internacional do trabalho e no mercado mundial. A Rússia é uma das dez maiores economias do mundo, tem reservas extraordinárias de matérias-primas, e é uma das três nações que forma mais especialistas de altíssima escolaridade.
(c) a capacidade de cada Estado em manter a sua independência e o controle de suas áreas de influência. Ou seja, sua força militar de dissuasão, que depende não só do domínio da técnica militar ou da qualidade das suas Forças Armadas, mas do maior ou menor grau de coesão social da sociedade, portanto, da capacidade política do Estado de convencer a maioria do povo, se for incontornável, da necessidade da guerra. A Rússia permanece uma das maiores potências militares do mundo. Invadiu a Georgia em 2007, interviu na guerra civil da Síria para proteger o governo de Assad, enviou tropas para o Turcomenistão, Cazaquistão e Bielorrússia e preservou governos aliados, anexou a Crimeia e declarou guerra à Ucrânia.
(d) as alianças de longa duração dos Estados uns com os outros, que se concretizam em Tratados e Acordos de colaboração, e a relação de forças que resultam dos blocos formais e informais de que fazem parte, ou seja, sua rede de coalizão. A Rússia tem uma aliança estratégia com a China, que é hoje, incomparavelmente, a segunda potência mundial.
Estes são os quatro critérios: história, economia, política e relações internacionais. O lugar de cada Estado no sistema internacional depende, portanto, de sua inserção no mercado mundial, ou seja, de seu lugar na divisão internacional do trabalho. Mas, embora seja fundamental, a economia não é a única variável que deve ser considerada. Porque as mudanças de lugar dos países no mercado mundial foram, historicamente, muito mais dinâmicas que a sua localização no sistema de Estados. A economia, ao contrário da aparência do fenômeno, é mais plástica e flexível à mudança do que a política, porque a inércia prevalece com mais força nas relações de poder. A Rússia tem muito poder.
A imensa maioria dos duzentos Estados que estão presentes na ONU são ex-colônias, e permaneceram dependentes, mas os graus de sua vulnerabilidade externa são variados. Embora todas as nações semicoloniais estejam na periferia, as diferenças entre elas não são irrelevantes. Existem variados tipos de semicolônias. E nem todos os Estados na periferia são semicolônias. Não há plena correspondência entre a presença no mercado mundial e o lugar no sistema de Estados. Há mediações, graduações, variações. Alguns países são, economicamente, atrasados e dependentes, mas não estão, politicamente, subordinados à ordem imperialista. Como exemplificou Lenin, considerando a situação da Argentina há cem anos atrás. 3 Hoje, a Venezuela e Irã, por exemplo, são Estados independentes.
O mais importante é sublinhar que o sistema de Estados demonstrou imensa rigidez histórica. Isso não impediu que ocorressem alterações quantitativas no lugar respectivo de alguns Estados. Mas realça que as qualitativas são raras. Nenhum Estado conquistou independência política nos últimos cento e cinquenta anos sem guerra ou revolução. Não obstante, a independência política por si só não emancipa um Estado da condição periférica no mercado mundial. Os dois processos têm relativa autonomia. Paradoxalmente, a Rússia, embora seja do ponto de vista econômico semiperiférica, é um Estado imperialista. Subalterno, mas imperialista.
Reconhecer o lugar imperialista da Rússia, e constatar que foi Moscou que precipitou a guerra na Ucrânia, não legitima apoio político-militar a Kiev. Porque é evidente que financiando o governo Zelensky em uma guerra por procuração está a OTAN e Washington. Mas desautoriza a ideia de que se trata de uma guerra defensiva da Rússia contra os EUA. Trata-se uma guerra inter-imperialista. Os imperialismos dominantes são os que, sob liderança de Washington, dirigem a OTAN. A Rússia é um imperialismo excluído do centro de poder mundial. Mas, assim como a Alemanha nas guerras mundiais do século XX, não merece apoio da esquerda mundial.
* Valerio Arcary é professor titular no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), militante da Resistência/PSol, e autor de O Martelo da história, entre outros livros.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Referências:
[1] LENIN, Vladimir Ilitch Ulianov. Imperialismo, estágio supremo do capitalismo, cap.VI sobre países dependentes.
[2] Segundo Lenin: Os cinco traços fundamentais: 1) a concentração da produção e do capital levada a um grau tão elevado de desenvolvimento que criou os monopólios, os quais desempenham um papel decisivo na vida econômica; 2) a fusão do capital bancário com o capital industrial e a criação, baseada nesse "capital financeiro" da oligarquia financeira; 3) a exportação de capitais, diferentemente da exportação de mercadorias, adquire uma importância particularmente grande; 4) a formação de associações internacionais monopolistas de capitalistas, que partilham o mundo entre si, e 5) o termo da partilha territorial do mundo entre as potências capitalistas mais importantes.
Edição: Vivian Virissimo