Da infância marcada por operações policiais na Vila Cruzeiro, na Penha, zona norte do Rio de Janeiro, até a estreia nos cinemas, Natália Balbino, de 27 anos, sempre levou a vivência das favelas e periferias cariocas para o centro dos palcos, seja como atriz ou roteirista.
É assim que na sua trajetória profissional ela busca desconstruir o estigma que insiste em associar as favelas somente à violência também nas produções audiovisuais.
Leia mais: Reconhecimento facial: jovem negro prova inocência pela terceira vez após ser acusado por erro
“Todos meus trabalhos trazem protagonistas pretos, falando preferencialmente de territórios periféricos, mas fugindo de uma narrativa estereotipada e da temática da violência. Ao mesmo tempo procuro dar subjetividade e complexidade para esses personagens que são tão sub representados”, afirma Natália.
Comemorando 10 anos de carreira como atriz, que reveza na escrita de roteiros para TV e plataformas de streamings, ela faz questão de pontuar que é formada em Artes Cênicas na Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio) graças à bolsa de estudos integral do ProUni, programa de acesso à universidade criado no governo Lula (PT).
O gosto pela arte veio muito antes, ainda criança, no primeiro contato com um espetáculo de balé clássico pela televisão. Natália relembra que tinha 7 anos quando deu os primeiros passos na dança. Logo também se interessou pelas aulas de teatro na escola municipal Leonor Coelho Pereira, na Vila Cruzeiro.
Na mesma época, porém, operações policiais aconteciam diariamente em comunidades do Rio em nome da realização dos Jogos Pan-Americanos de 2007. “Foi um ano que não me esqueço, tive o primeiro contato com o teatro, mas tive que sair da minha escola obrigada por causa da segurança pública”, lamenta Natália que ficou sem aula por causa da violência.
Leia também: Grande Rio tem 11 crianças baleadas nos primeiros meses de 2023, segundo Fogo Cruzado
Às vésperas do megaevento, a Polícia Militar invadiu o Complexo do Alemão, também licalizado na zona Norte, deixando ao menos 19 mortes com a justificativa de combater o tráfico de drogas. O episódio ficou conhecido como a “chacina do Pan”. Para Natália Balbino, o fatídico ano dos jogos, além de traumático pessoalmente, inaugurou um modelo de segurança pública que se repete até hoje e prejudica os mais pobres.
“Invadem as favelas, fecham as escolas, privam uma parte da população de um direito que deveria ser de todos. Meu caso foi diferente porque meus pais fizeram um esforço pela minha educação. E as outras crianças da minha sala?”, questiona.
Projetos
Só no último mês, Natália comemora a estreia de dois filmes. Um deles em que atuou como uma das roteiristas, chamado “Escola de Quebrada”, disponível na Paramount+, o outro chamado “Medusa”, sua grande estreia como atriz nas telas de cinema no papel de Jennifer - uma das jovens de uma congregação neopentecostal na distopia criada por Anita Rocha da Silveira.
"Medusa" mistura os gêneros terror, fantasia, musical e comédia para abordar temas relevantes como radicalismo religioso e patriarcado. O filme, apesar de representar um contexto fictício, não parece tão distante da realidade brasileira nos últimos anos. Natália observa que houve uma mudança na reação do público ao filme de acordo com o momento político do país.
Leia: Exclusivo: 44 pessoas resgatadas de pedreira usavam bombas caseiras sem proteção em Alagoas
“Ele foi gravado durante o governo Bolsonaro com muitos referenciais do que a gente estava vivendo. A estreia em festivais no Brasil foi em 2021 e, mesmo com público reduzido, a gente sentia uma aflição e revolta maior na sala de cinema. Algumas cenas despertavam mais revolta, as pessoas choravam. Hoje em dia a gente vê a plateia mais à vontade para rir de algumas cenas, gritar”, comenta a atriz que interpreta Jennifer.
Já no filme “Escola de Quebrada”, Natália integra a equipe de roteiro em parceria com a produtora audiovisual paulista Kondzilla, que ela sempre admirou. Para Balbino, aceitar o convite para retratar a periferia da zona leste de São Paulo foi uma oportunidade de desbravar um novo mundo.
Leia mais: Operação invade escola pública na Maré (RJ) com blindados e prende suspeitos em fuga
“Veio esse desafio de escrever sobre uma favela paulistana que é muito diferente de uma favela carioca em vários sentidos. Seja na maneira de falar, vestir, na lógica geográfica da cidade, da mobilidade urbana que afeta a favela. Tudo isso impacta na maneira como a história vai ser contada. Então me mudei para São Paulo durante todo período de criação do projeto”, conta a roteirista.
Nascida e criada na Vila Cruzeiro, filha de pai trabalhador da indústria têxtil e mãe empregada doméstica, Natália considera a educação sua principal bandeira. Ela, inclusive, já ofereceu oficinas de roteiro para crianças e jovens da comunidade carioca.
“Colocar os dilemas de um menino preto, jovem, da classe C, que muito se assemelha aos problemas que eu tive na minha escola, foi muito divertido”, completa sobre o filme inspirado na série estadunidense “Todo Mundo Odeia o Chris”.
No audiovisual, ela avalia que o mercado está demandando cada vez mais pessoas pretas e LGBTQIA+ para ocupar diferentes funções, mas faltam iniciativas de formação acessíveis voltadas para o setor.
Leia: CPT entrega relatório sobre conflitos no campo à equipe de transição de direitos humanos
“Ainda percebo poucas iniciativas de formação. Minha expectativa é que iniciativas de formação se amplifiquem e a gente forme mais pessoas com cursos livres, técnicos, universidades. Para eu ter cada vez mais colegas, e possa ser cada vez menos a única pessoa negra no ambiente de trabalho”, reflete Natália.
Por fim, ela adianta que está trabalhando em duas novas séries para uma grande plataforma de streaming. Outra produção, um longa-metragem que ela assina como roteirista, deve sair ainda esse ano.
Fonte: BdF Rio de Janeiro
Edição: Mariana Pitasse