O que precisamos é de uma semana nacional de convivência comunitária
O governo brasileiro sancionou a lei que cria a Semana Nacional de Conscientização sobre a Depressão. A efeméride marca para 10 de outubro o início de uma série de ações anuais relativas ao tema. No entanto, o texto gera críticas entre especialistas, que apontam a falta de uma visão coletiva, social e política sobre o problema.
Ariadna Patrícia Alvarez, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz) afirma que as discussões sobre a depressão são importantes, principalmente frente aos processos de invisibilização das questões relativas à saúde mental, mas devem ser abrangentes.
"Quando se fala em uma Semana Nacional de Conscientização da Depressão, não é que isso não seja importante, mas a maneira como se fala é o x da questão. Não se pode falar como está escrito no texto da lei, individualizando o problema, entendendo que é um problema daquela pessoa, que um remédio ou que um profissional especialista vão ser capazes de resolver."
Segundo a lei, a semana vai promover debates "abrangendo todos os aspectos da doença", estimular políticas públicas de enfrentamento, divulgar avanços em diagnósticos e tratamentos, assim como em formas de acesso à atenção à saúde mental.
Paulo Amarante, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz) critica o uso da palavra "doença" no texto. Ele ressalta ainda que o foco na ampliação do diagnóstico psiquiátrico e da prescrição de medicamentos não resolve a questão.
"A criação da semana me causou muita apreensão e preocupação. Em primeiro lugar, todo o texto da lei e sua fundamentação tratam o problema da depressão como doença. É uma questão não só epistemológica e científica, mas também política. E não é só semântica, porque a própria psiquiatria deixou de denominar doença os transtornos mentais e usa o termo transtorno, para fazer mais referência a uma situação do que a uma condição determinada com uma causalidade precisa."
Indústria farmacêutica
Um estudo publicado no ano passado pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), apontou que os diagnósticos de depressão aumentaram mais de 40% na pandemia de covid-19. Também durante a emergência sanitária, o Conselho Federal de Farmácia (CFF) observou alta expressiva nas vendas de antidepressivos e estabilizadores de humor. A comercialização desse tipo de substância teve incremento de 36%.
Paulo Amarante lembra que, em 2022, um grupo de pesquisadores e pesquisadoras, liderado pela especialista em depressão Joanna Moncrieff, descobriu que a falta de serotonina não tem relação com o transtorno. A conclusão endossa a percepção de que medicalizar a solução pode não ser o caminho certo. Frente a essa realidade, a semana de conscientização "pode ser um tiro a sair pela culatra", nas palavras de Amarante.
"O fato de alguém ser diagnosticado com depressão não significa que ele tenha depressão tal qual hipoteticamente se imagina. A psiquiatria fundamentalmente ortodoxa - que se autodenomina biomédica, mas não é, porque não tem essa base biomédica e é muito financiada e apoiada pela indústria farmacêutica, produtora dos antidepressivos, medicamentos que mais vendem no mundo inteiro - está transformando toda a experiência de sofrimento longo, de desamparo, de abandono, de solidão, de tristeza, de falta de possibilidade de trabalho, de ingresso social, falta de políticas públicas, uma série de questões de uma sociedade altamente competitiva, violenta, excludente, etc., em diagnóstico de depressão."
Artigo | Desafios do setembro amarelo frente ao neoliberalismo
A professora Ariadna Patrícia Alvarez também alerta sobre "a epidemia dos diagnósticos psiquiátricos e das prescrições farmacológicas", que ela considera um problema tão grave quanto a própria depressão.
"Existe uma indústria farmacêutica que, no sistema capitalista, se alimenta desses diagnósticos. Portanto, quando se pensa que a depressão é um problema individual e não um problema social, que tem raízes muito mais profundas do que um sentimento de tristeza daquela pessoa que está atravessando um quadro depressivo, é necessário considerar que é preciso levar em conta tudo o que está levando essa pessoa a vivenciar esse estado."
A solução é coletiva
"O que precisamos é de uma semana nacional de convivência comunitária", sugere Ariadna Patrícia Alvarez, ao falar sobre a necessidade de criação de políticas que fortaleçam vínculos sociais, com respeito às diferenças e valorização da vida em todas as suas formas. Segundo ela, as soluções devem abrir diálogos sobre relações de trabalho, do ambiente escolar e das comunidades e quebrar o ciclo de exclusão das populações pobres, negras e que vivem nas periferias.
A pesquisadora ressalta que o Sistema Único de Saúde (SUS) precisa refletir sobre as soluções que propõe para a depressão. É necessário que temas como política, convivência nos territórios, arte, cultura e economia solidária sejam abordados. Alvarez afirma que iniciativas dessa natureza já mostram sucesso e têm potencial transformador.
Setembro Amarelo: Por que o SUS é peça chave na prevenção ao suicídio
"A depressão é um estado em que a pessoa tem a potência de vida dela reduzida. Isso se dá também por conta do sistema em que vivemos, capitalista, que é baseado na competição. Quanto mais conseguirmos diminuir essa sensação de isolamento e ampliar a potência dos espaços coletivos, mais enfrentaremos o problema da depressão. Não é apenas com remédio, psiquiatra, psicólogo que conseguimos transformar uma vida. É preciso fortalecer as relações familiares, comunitárias, de trabalho e escolares. É fortalecendo os coletivos e não individualizando o problema que vamos conseguir criar um mundo menos depressivo e mais cheio de vida."
Paulo Amarante também alerta para as consequências do sistema capitalista na saúde mental. De acordo com o especialista, a depressão não pode ser vista como um transtorno individual em uma sociedade que "desqualifica o indivíduo, o coletivo, as práticas de solidariedade e deixa as pessoas extremamente sós". Ele cita ainda o risco de dependência dos medicamentos usados no tratamento.
Racismo e infância: Brasil falha em proteger crianças e jovens pretos e pretas
"Os antidepressivos não curam a depressão, por isso as pessoas os tomam por toda a vida. Não conseguem parar porque causa uma grande dependência. Se fosse uma doença, tal qual se diz, ela teria um fim quando se tomasse o antídoto, mas isso não acontece. Todo o problema social, a falta de política, de recursos, de dinheiro, de trabalho, de educação e de cultura, está sendo jogado nas costas de pessoas isoladas, sozinhas, perdidas, sem perspectiva e sem apoio social, sem apoio de políticas públicas. Esse sofrimento humano é transformado pela hegemonia psiquiátrica em doença, e as pessoas, além do sofrimento, além do desemprego, além da falta de perspectiva, se tornam consumidoras de medicamentos psiquiátricos."
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que a depressão atinja pelo menos 300 milhões de pessoas no planeta e é a maior causa de incapacitação do mundo todo. O Brasil é o país com maior prevalência na América Latina e o segundo do continente, atrás apenas dos Estados Unidos
Edição: Thalita Pires