#MeToo acadêmico

Boaventura de Sousa Santos é denunciado por assédio sexual e afastado de cargos institucionais

Artigo sobre "extrativismo sexual" e abuso de poder no meio acadêmico desencadeia acusações contra o sociólogo português

Brasil de Fato | Buenos Aires, Argentina |

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O sociólogo português é conhecido por trabalhos sobre pós-colonialismo e epistemologias do sul global.
O sociólogo português é conhecido por trabalhos sobre pós-colonialismo e epistemologias do sul global. - Gustavo Pereira/Reprodução Carta Capital

“Eu realmente estava em suas mãos. Essa sensação me gerou medo e ira.” O depoimento da líder mapuche Moira Millán, etnia indígena da zona patagônica argentina, contra o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos não foi contado pela primeira vez, mas agora ganha outra dimensão. Seu caso se soma a uma série de denúncias que surgiram na semana passada de assédio sexual e abuso de poder contra o intelectual, a maioria de ex-alunas ou orientandas de Boaventura.

Desde então, o acadêmico foi afastado de dois cargos institucionais: no Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso) e da direção do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, do qual foi um dos fundadores, em 1978. 

“A Clacso sempre soube, o que a torna cúmplice”, pontua Millán, em entrevista ao portal El Salto. “Sempre que me convidavam para uma mesa com ele, eu declinava. Quando insistiam, eu ameaçava denunciá-lo publicamente por abusador.”

No caso de Moira, ela conta ter sido convidada pelo sociólogo para dar uma conferência aos seus alunos na Universidade de Coimbra e foi conduzida a situações isoladas com ele após o término do evento, sem condições econômicas de deslocamento para além do que o convite à cidade incluía.

“Pensei que estaria toda a equipe, mas quando chegamos no restaurante, estávamos sozinhos. O lugar era um restaurante de sua família”, contou Moira. “Começou a beber muito e a dizer coisas fora de lugar para flertar. O tempo todo impus limites, mas ele insistiu para que eu fosse à sua casa para me dar uns livros”, diz. No apartamento, ele tentou investir sobre Moira.

“Eu não sabia a que distância estava do hotel, nem tinha dinheiro para ir para um táxi. Também não tinha minha passagem de volta. Tentei me acalmar e o fiz refletir. Aí ele se tranquilizou”, contou, sobre o episódio ocorrido em 2010.

#MeToo no mundo acadêmico


Pichação anônima contra Boaventura na Universidade de Coimbra / Divulgação

O movimento foi desencadeado com a publicação de três pesquisadoras que contaram suas experiências em primeira pessoa com o “professor estrela” e seu aprendiz, em um artigo intitulado “As paredes disseram o que ninguém pôde dizer: notas autoetnográficas do poder sexual na academia de vanguarda” (tradução livre), no livro “Conduta sexual imprópria na academia” (“Sexual misconduct in academia”, no original).

As autoras Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Miye Nadya Tom classificam como “extrativismo sexual” o abuso de poder sobre mulheres, em geral jovens, que dependem da aprovação acadêmica de seus mentores para construir suas carreiras, com o encobrimento das instituições sobre o “professor estrela”. Citam o caso também recente do especialista em estudos africanos e antropologia pós-colonial, John Comaroff, da Universidade de Harvard, também alvo de denúncias por assédio sexual e abuso de poder.

Apesar de o nome de Boaventura não ser citado no artigo, as histórias são conhecidas pelas pesquisadoras da Universidade de Coimbra e pela própria instituição, que já havia recebido denúncias previamente. Esse também é o caso do aprendiz de Boaventura, o professor Bruno Sena Martins. Segundo relatos das denunciantes, o pupilo reproduzia uma postura semelhante ao sugerir troca de favores sexuais com as pesquisadoras.

No caso, as “paredes que falaram” foram pichações nos muros da Universidade de Coimbra com os dizeres “Fora Boaventura, todas sabemos”. Uma mensagem anônima que serviu como impulso para as mulheres que processavam a situação em silêncio, segundo as autoras.

“Depois de meses de autocondenação, nossas suspeitas e dúvidas foram confirmadas, dando às nossas narrativas um ângulo diferente”, escrevem . “Percebemos que nossas experiências não foram isoladas nem excepcionais.”

A deputada brasileira Bella Gonçalves, do PSOL de Minas Gerais, se somou às denúncias de ex-alunas e orientandas do sociólogo português. No caso de Gonçalves, as consequências foram psicológicas, acadêmicas e financeiras, ao ter que devolver o valor que havia recebido para uma bolsa no exterior pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

“Um dia, ele pediu para marcar uma reunião no apartamento dele. Colocou a mão na minha perna. Falou que as pessoas próximas dele tinham muita vantagem e sugeriu que a gente aprofundasse a relação”, conta a deputada à Agência Pública. “Sou uma mulher de movimentos sociais, que faço denúncias de tudo quanto é jeito, mas não encontrei nenhuma saída para denunciar o assédio que sofri. Estava presa a uma teia de poder maior.”

Boaventura se pronunciou sobre as denúncias em uma live que realizou na terça-feira da semana passada (11), alegando ser alvo de uma “difamação anônima, vergonhosa e vil”, e que apresentaria uma queixa-crime contra as três autoras do artigo que iniciou a série de denúncias contra ele.

Por sua vez, a instituição cofundada por Boaventura, o CES, publicou um comunicado anunciando a abertura de uma investigação a partir das denúncias contidas no capítulo do livro. “Nesta medida, o CES irá constituir num curto prazo uma comissão independente à qual caberá a identificação de eventuais falhas institucionais e a averiguação da ocorrência das eventuais condutas anti-éticas referidas naquele capítulo", informaram.
 

Edição: Patrícia de Matos