Espera-se muito da visita do presidente Lula à China. Não está em questão apenas o aumento de comércio entre os países (refletido na grande comitiva de empresários, incluindo os do agronegócio) ou uma aliança de alto nível político para colocar Brasil e China como mediadores do fim do conflito em território ucraniano entre a Rússia e a Otan, mas o avanço da cooperação internacional para o desenvolvimento, especialmente àquela dedicada ao combate à fome no mundo e a promoção da segurança alimentar e nutricional por parte dos países.
O desafio é imenso e corresponde ao trabalho de quase todos os dezessete Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) no marco de ação da denominada Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), sem esquecer do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), reconhecido como um direito humano em 2010.
Não bastasse esses compromissos, o combate à fome está diretamente relacionado com o fenômeno das mudanças climáticas e das desigualdades, que preocupam o mundo todo no atual estágio do sistema capitalista global.
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O encontro entre Lula e Xi Jinping de abril de 2023 inevitavelmente terá influências no combate à fome no mundo, com esforços conjuntos para a promoção da segurança e soberania alimentar e nutricional (SSAN) pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e o Programa Mundial de Alimentos (PMA).
A China anunciou o fim da pobreza extrema em 2021 e lançou como próxima meta nacional a consecução de sua soberania alimentar. O Brasil, neste terceiro mandato de Lula, por sua vez, recriou o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), tem retomado todos seus programas e políticas que convergem no pacto contra a fome e anuncia um Pacto Global contra a Fome. Então o esperar dessa parceria entre o Brasil e a China nesta agenda?
O Brasil
Em 2014 o Brasil saiu do Mapa da Fome da ONU, mas essa histórica conquista se reverteu com o golpe em 2016 contra a presidenta Dilma Rousseff. Os desmontes das políticas públicas — como a reforma agrária, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), o Programa Bolsa Família e a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) —, acentuados pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, nos levaram à situação atual de mais de 33 milhões de pessoas em situação de fome, segundo dados da Rede Penssan.
O combate à fome retorna como prioridade do atual governo. A proposta de um pacto federativo e nacional baseia-se na ideia de que a alimentação adequada é parte dos esforços governamentais para a garantia de um direito humano e da dignidade humana que possibilitam pensar políticas de emprego (renda) e de educação (formação e capacitação).
Assim, em menos de 100 dias de governo, Lula tem empenhado esforços não apenas para a pactuação de iniciativas para a redução da insegurança alimentar com os distintos ministérios que integram a Câmara de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN), com as distintas organizações da sociedade civil que participam do CONSEA, mas também para iniciativas globais, conforme anunciado nos foros internacionais e visitas aos países parceiros que se empenhará na concretização de um Pacto Global contra a Fome.
Esta iniciativa tem sido muito bem vista, já que o Brasil - e toda a região latino-americana e caribenha - é considerado "o celeiro do mundo", mas, paradoxalmente, é onde a fome se manifesta com intensidade comparativamente alta devido a ser a região mais desigual do mundo.
Vale lembrar que em seu primeiro mandato, Lula criou a Coordenação-Geral de Cooperação Humanitária e Combate à Fome no Itamaraty para coordenar ações do governo brasileiro de combate à fome no âmbito internacional, garantindo a interlocução entre o antigo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e a chancelaria brasileira – instância extinta com o golpe de 2016.
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Em seu atual mandato, Lula restabelece a Coordenação-Geral de Segurança Alimentar (CGSA), diretamente ligada à Secretária-geral do Ministério das Relações Exteriores (MRE), e a Coordenação de Agricultura Familiar na Agência Brasileira de Cooperação (ABC) com o fim de apoiar tanto a política externa quanto os projetos de cooperação Sul-Sul nessas temáticas.
A atuação internacional do Brasil deve impulsionar essa agenda, o que pode transformar o país em um ator de grande peso na cena internacional - além de conectar as agendas interna e externa brasileiras - visto que SAN é um tema transversal a vários regimes internacionais e base do compromisso dos países de "não deixar ninguém para trás" da Agenda 2030.
Espera-se que a presidência do Brasil no G20 a partir de dezembro de 2023 e a realização da reunião de Cúpula da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) pautem o tema de SAN e da agricultura familiar. Também, o retorno dos blocos regionais na política externa brasileira - o MERCOSUL, a CELAC, a UNASUL entre outros – e a realização da COP 30 em 2025 no estado do Pará sejam espaços importantes para proclamar e fortalecer essa agenda.
Há ainda que ressaltar os projetos de cooperação coordenados pela ABC com assessoria de uma coordenação especializada a fortalecer a agricultura familiar e o desenvolvimento rural nos países parceiros do Brasil, em especial os projetos de cooperação técnica bilaterais com demais países em desenvolvimento, sobretudo africanos, latino-americanos e caribenhos, além das iniciativas trilaterais que contam com o apoio das agências do sistema ONU e alguns países desenvolvidos (da OCDE) que firmam com o Brasil marcos de parcerias mais abrangentes e robustos.
Parceria com a China
A visita de Lula à China coloca em evidência a importância do Sul global na política internacional. A vitória de Lula em 2022 ocorreu em um momento em que a China ocupa papel central na geopolítica global. Ao reivindicar uma ordem mundial multipolar e mais justa, ambos os países perseguem um modelo de desenvolvimento que, apesar de dar importância ao mercado, também dá grande atenção às políticas sociais, notadamente o combate à fome.
A visita, que aconteceria no final de março e teve que ser adiada por motivo de saúde do presidente com seus 77 anos de idade, aconteceu em dois momentos e resultou em dezenas de acordos firmados em benefício do setor empresarial brasileiro. Diferente do presidente Bolsonaro que oferecia "negócios da China" para as igrejas neopentecostais no exterior, Lula abriu oportunidade para áreas como energias renováveis, indústria automotiva, agronegócio, linhas de crédito verde, tecnologia da informação, saúde e infraestrutura; além do setor turístico, que assistiu à inclusão do Brasil entre os destinos autorizados para turistas chineses.
A China é o principal parceiro comercial do Brasil. Entre os produtos mais exportados para o país asiático estão a soja em primeiro lugar (US$ 31,78 bilhões em 2022) e carnes (US$7,49 bilhões em 2022). Reforçar tal comércio, entretanto, é uma preocupação para aqueles que trabalham pela agenda de SAN e do combate à fome. Há uma contradição nesta relação a despeito da preocupação chinesa com a "sustentabilidade" que não é somente ambiental, mas também social, especialmente para o sistema socialista chinês.
Enquanto o Brasil produz alimentos para a China, enorme sacrifício é feito pelos camponeses, e as populações indígenas e tradicionais que sofrem com a não demarcação de terras, a falta da reforma agrária e com um ecossistema cada vez mais destruído em benefício dos latifúndios e da pecuária. Nota-se, assim, que ao mesmo tempo em que a China volta suas preocupações para a área ambiental e as mudanças climáticas, os acordos firmados entre os países beneficiam muito o agronegócio brasileiro.
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No Brasil, cerca de 60% dos alimentos consumidos são produzidos pela agricultura familiar. Porém, para os acordos refletirem a preocupação com o combate à fome, seria necessário compromissos mais ousados do que o Memorando de Entendimento entre os ministérios do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome e do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar e o Ministério da Agricultura e Assuntos Rurais da China que tem o objetivo de trocar experiências, promover estudos e ampliar a cooperação entre os países na área social.
Seria importante vincular essa cooperação de cunho mais técnico à negociação dos acordos comerciais para ir, gradualmente, mudando a balança comercial para outra mais diversificada e menos baseada na exportação de commodities. Para tal, o Brasil deveria oficializar sua entrada na iniciativa da Nova Rota da Seda, que oferece investimentos público para infraestrutura (rodovias, hidrelétricas, etc) e empresas brasileiras incrementarem sua produção, mas não sem antes pensar essa parceria a partir de um plano nacional de desenvolvimento.
Essa ambiguidade no que tange à cooperação em agricultura, refletida também na agenda de cooperação internacional Sul-Sul brasileira, mostra-se mais contraditória do que concomitante. Por isso, seria de se esperar que a soberania alimentar e o combate a fome tivessem um lugar mais relevante na visita de Estado, garantindo coerência entre as políticas nacionais e externas dos dois países.
Seria desejável haver definido onde se pretende chegar, o que se pretende alcançar mediante esta parceria com a China. Quando se busca entender os conceitos de diplomacia, política externa e relações internacionais e a relação entre eles para assegurar a inserção internacional, é preciso antes de tudo ter claro onde se quer chegar.
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Para tanto, devemos reconhecer que falta para o Brasil contar com um plano nacional de desenvolvimento. A ele devem estar subordinadas suas várias políticas (tanto internas quanto externa), o que significa estabelecer como prioritárias a inclusão e justiça social, que estão na base do combate à fome. Isso, em detrimento de alimentar um modelo de crescimento econômico assentado na exportação de commodities, na contramão da sustentabilidade social e ambiental cedendo ao lobby do agronegócio e permitindo a captura do interesse público pelo privado.
Recentemente, Xi Jinping fez um discurso reivindicando como meta a soberania nacional alimentar. Isso significa que a China deve investir para alcançar a produção agrícola de gêneros alimentícios internamente, em vez de seguir dependente da importação de alimentos. Tal declaração de intenções por parte da China deve servir como estímulo para o Brasil avançar num projeto de maior estímulo a agricultura familiar, produção agroecológica e desenvolvimento rural, uma vez que em breve poderá ver-se sem seu mercado consumidor chinês para os produtos agrícolas.
Então, se por um lado, é de se esperar que a China seja coerente e busque sua soberania alimentar e, também, evite comprar produtos da agricultura extensiva-latifundiária intensiva em agrotóxico e água, por outro lado, deve-se reconhecer que cabe ao Brasil estabelecer seu modelo de produção agrícola de forma a não permitir que o agronegócio goze de incentivos fiscais enquanto a agricultura familiar seja ameaçada constantemente.
Não se pode esquecer do papel importante que o Brasil desempenhou no combate à fome globalmente desde 2011 quando José Graziano da Silva assumiu a Direção Geral da FAO. E, também, que ele foi sucedido pelo ex-ministro da agricultura chinês, Qu Dongyu, que reconhece a importância e dá continuidade ao legado de Graziano. O livro publicado pela FAO está disponível aqui.
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Como dois países que têm em comum o combate à fome e às desigualdades como prioridades e que assumiram a condução da agência da ONU responsável pela erradicação da fome no mundo, Brasil e China têm muito a cooperar entre si para benefícios mútuos e em prol de uma iniciativa global de grande peso político. A China parece ser o melhor parceiro para Lula seguir adiante com seu pacto global contra a fome, resta saber se tal iniciativa será acompanhada de avanços lentos e graduais no plano interno, enquanto se mantém uma balança comercial constituída de produtos vindos do agronegócio.
*Flávia Chacon é graduada em Relações Internacionais pela UnB, especialista em Gestão de Políticas Públicas pela Unicamp e mestra em Ciências Sociais pesquisando sobre Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil, também pela UnB.
*Marina Bolfarine Caixeta é graduada em Relações Internacionais e doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília (UnB); pesquisadora do Centro de Estudos e Articulação da Cooperação Sul-Sul (Articulação Sul) dedicada aos temas da Cooperação Sul-Sul, da China e de SAN dentre outros.
Edição: Thales Schmidt