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Ao criticar os EUA, Lula afasta Brasil da posição de neutralidade na guerra da Ucrânia?

Visita de chanceler russo e tentativa de equilíbrio diante do conflito expõem desafios da diplomacia brasileira

Rio de Janeiro |

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Ministro das Relações Exteriores da Rússia, Serguei Lavrov, se reúne com o colega brasileiro, Mauro Vieira, durante a visita do chanceler russo ao Brasil, em 17 de abril de 2023. - Evaristo Sá / AFP

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) afirma ter uma posição clara sobre a guerra da Ucrânia. Sem se alinhar às sanções do Ocidente contra a Rússia, Lula nunca deixou de tratar a intervenção militar russa como ilegal e defender as negociações de paz como único caminho de resolução possível para o imbróglio entre Moscou e Kiev. Suas declarações, contudo, diferem do tom uníssono do Ocidente ao apontar apenas para as responsabilidades do presidente da Rússia, Vladimir Putin.

Ainda em campanha eleitoral, contrariando a narrativa vigente, Lula disse em maio de 2022 que o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, e o bloco ocidental também são responsáveis pela guerra.

"Putin não deveria ter invadido a Ucrânia. Mas não é só o Putin que é culpado, são culpados os EUA e é culpada a União Europeia. Qual é a razão da invasão da Ucrânia? É a Otan? Os EUA e a Europa poderiam ter dito: 'A Ucrânia não vai entrar na Otan'. Estaria resolvido", disse Lula na ocasião.

Dessa forma, o presidente conseguiu navegar pela cisão entre Moscou e Ocidente sem queimar pontes e mantendo a linha de neutralidade e defesa de um mundo multipolar. No entanto, com novas declarações mais enfáticas, feitas a jornalistas durante sua viagem à China e aos Emirados Árabes, a neutralidade do Brasil ficou em xeque, a julgar pela negativa reação das potências ocidentais.

A controvérsia teve seu ápice com a visita do chanceler russo, Serguei Lavrov, ao Brasil no início da semana, como primeira parada da turnê de visitas oficiais do ministro pela América Latina, que incluiu passagens pela Venezuela, Nicarágua e Cuba. Do lado russo, os objetivos são mais evidentes. Isolada na comunidade internacional, a Rússia busca respaldo em regiões que ainda mantêm diálogo aberto com Moscou. Não por acaso, com a exceção do Brasil, os países escolhidos para a viagem têm políticas antagônicas aos EUA.

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Em entrevista ao Brasil de Fato, o professor de Relações Internacionais da Universidade de São Petersburgo, Victor Jeifets, disse que a turnê de Lavrov pela América Latina está alinhada com a nova concepção da política externa russa.

Em setembro de 2022, Putin aprovou uma nova doutrina de política externa da Rússia orientada para o aumento da cooperação com China, Índia, países do Oriente Médio e América Latina, no contexto da promoção de uma ordem internacional baseada no multilateralismo. Nesse sentido, o Brasil é visto por Moscou como uma liderança do que se entende como Sul Global, conceito das Relações Internacionais que abarca países periféricos e em desenvolvimento.

"Eu acredito que para Lavrov é fundamental anunciar publicamente o ponto de vista da Rússia e na prática buscar fazer um 'rebranding' da posição da Rússia em relação ao mundo multipolar […] A Rússia vê na América Latina uma parceria de diálogo, um dos pilares do mundo multipolar, e o Brasil é um dos pilares de liderança nesse sentido", diz Jeifets ao Brasil de Fato.

Ao mesmo tempo, o analista destaca que o Brasil foi usado como uma plataforma para a Rússia expor sua defesa da guerra na Ucrânia, mas que isso configura uma prática normal, considerando que na América Latina "tem mais países dispostos a escutar a Rússia".

Durante a reunião entre o ministro russo e o chanceler brasileiro, Mauro Vieira, a posição do Brasil foi marcada pela reiteração de defender uma solução pacífica para a guerra na Ucrânia e pela crítica às sanções do Ocidente contra Moscou.

"Recordando as manifestações do presidente Lula no sentido de buscar facilitar a formação de um grupo de países amigos para mediar as negociações entre Rússia e Ucrânia. Também reiterei a posição brasileira sobre a aplicação de sanções unilaterais. Tais medidas, além de não contarem com a aprovação do Conselho de Segurança das Nações Unidas, têm impactos negativos sobre as economias de todo o mundo e, em especial em países em desenvolvimento, muitos dos quais ainda não se recuperaram plenamente da pandemia”, disse Vieira em declaração à imprensa após a reunião.

O ministro russo, por sua vez, destacou a convergência das posições entre Brasil e Rússia na política internacional.

"Afirmamos que as abordagens da Rússia e do Brasil aos eventos que estão ocorrendo agora no mundo são consonantes. Estamos unidos por um desejo comum de contribuir para a formação de uma ordem mundial mais justa, verdadeiramente democrática e policêntrica", disse Lavrov.

Esta declaração do ministro russo foi traduzida e difundida pela imprensa brasileira com uma alteração. A imprensa nacional afirmou que Lavrov apontou a existência de uma "visão única" de Brasil e Rússia para a guerra da Ucrânia. Ou seja, nuances de tradução foram usadas para criar uma narrativa de que Brasil estaria alinhado com Moscou no contexto da guerra na Ucrânia.

Na última terça-feira, dia 18, Lula se manifestou novamente sobre o assunto, declarando que condena a "violação da integridade territorial" da Ucrânia e voltou a dizer que sua defesa é por uma solução "política e negociada" para a guerra.

Tensão com EUA

A interação russo-brasileira no contexto da guerra causou uma repercussão negativa na Casa Branca. O porta-voz de Segurança Nacional dos EUA, John Kirby, chegou a dizer que o Brasil estava "papagueando" a propaganda russa e chinesa.

Para o ex-diretor do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca para Assuntos do Brasil e do Cone Sul, Nick Zimmerman, "as declarações de Lula não foram percebidas como neutras ou precisas". Ao Brasil de Fato, o analista destacou que é clara a percepção norte-americana de que as declarações de Lula estabelecem uma falsa equivalência, visto que a Ucrânia "foi invadida pela Rússia e está tentando defender sua existência e território".

Ao mesmo tempo, Zimmerman, que atua hoje como analista do Brazil Institute do Wilson Center, aponta que "os EUA entendem que o Brasil é um país soberano com seus próprios interesses nacionais".


O presidente dos EUA, Joe Biden , caminha ao lado do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, em sua visita a Kiev em 20 de fevereiro de 2023 / Dimitar Dilkoff / AFP

"Perspectivas diferentes entre grandes países são normais e os EUA continuarão priorizando suas relações com o Brasil. Basta ver que a Casa Branca acabou de anunciar uma nova iniciativa de apoio ao Fundo Amazônia", afirmou.

Na mesma semana da visita do ministro Lavrov ao Brasil e a consequente reação de incômodo da Casa Branca, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, anunciou a doação de R$ 2,5 bilhões para o Fundo Amazônia "para ajudar o Brasil com o esforço de acabar com o desmatamento até 2030".

Abordagem brasileira é mais próxima da China

É simbólico que declarações mais proativas do presidente Lula sugiram justamente durante a sua visita a Pequim, viagem marcada pela assinatura de 15 acordos bilaterais com a China.

Para o professor de Relações Internacionais da Universidade de São Petersburgo, Victor Jeifets, "Lula não se aproxima tanto da posição da Rússia quanto se afasta da posição do bloco ocidental". "Parece que é mais preciso formular assim", destaca.


Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, e presidente da República Popular da China, Xi Jinping em Cerimônia Oficial de Recepção / Ricardo Stuckert/PR

Segundo o pesquisador, o horizonte que o presidente Lula parece almejar é de criar um protagonismo brasileiro junto a países "não alinhados" com partes da guerra quando houver cenário possível para negociações de paz.

"É provável que Lula agora não espere que seu plano de paz tenha sucesso, ele provavelmente entende muito bem que a fórmula 'Crimeia em troca da paz’ não pode significar nem um acordo de paz e nem mesmo uma rápida interrupção das ações militares. Lula entende perfeitamente bem que as elites ucranianas não vão concordar com isso, o que o [presidente] Biden já deu a entender durante sua visita que não vai apoiar esse plano", argumenta.

De acordo com Jeifets, a posição de neutralidade e equidistância do governo brasileiro se mantém, porque "Lula deixou muito claro que não considera a possibilidade de alterar fronteiras por vias militares". Ao mesmo tempo, segundo o analista, o ponto é que Lula busca angariar apoio de países do Sul Global.

"Se antes ele falava em mediação, agora o discurso está mais inclinado para a formação de grupo de Estados que querem ver a 'extinção do incêndio', me parece ser o principal objetivo. […] Lula e Xi Jinping não contam com a resposta de Moscou ou de Washington, nem de Bruxelas, mas contam com o apoio de uma grande quantidade de países que não apoiam a posição de Moscou, ou seja, não apoiam a anexação de territórios por meio da força", completa.

Após a controvérsia da posição brasileira em relação à guerra da Ucrânia, a diplomacia brasileira já deu acenos ao Ocidente do seu compromisso com a neutralidade. Foi confirmado na última sexta-feira (22) que o chefe da assessoria especial da Presidência da República para Assuntos Internacionais, Celso Amorim, viajará a Kiev para se reunir com o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky.

Nesse contexto, cresce a expectativa sobre a participação do Brasil no G7, que acontece entre 19 e 21 de maio. Lula foi convidado para participar da cúpula dos mais países mais desenvolvidos e a guerra da Ucrânia será um dos principais tópicos. Ao mesmo tempo que o convite em si ao Brasil é um demonstrativo do protagonismo da política externa brasileira, na última terça-feira (18), os chefes da diplomacia do G7 falaram em "custos severos" para países terceiros que possam oferecer assistência à Rússia no contexto da intervenção da Ucrânia.

Edição: Thales Schmidt