Para mim marcou muito, foi o início de uma coisa que infelizmente hoje é chamada de 'necropolítica'
No dia 17 de abril de 1996, 19 trabalhadores rurais sem terra foram assassinados pela Polícia Militar do Pará no episódio que ficou conhecido como Massacre de Eldorado dos Carajás. Mais duas pessoas perderam a vida por conta da ação policial, totalizando 21 mortes e dezenas de pessoas feridas. As que sobreviveram trazem na memória as imagens do terror daquele dia.
Imagem na memória
As famílias do então Acampamento Formosa deram início a uma grande marcha rumo à Belém para reivindicar a desapropriação da Fazenda Macaxeira. Os manifestantes foram surpreendidos por um ônibus cheio de policiais que para liberar a estrada ocupada pela marcha do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), começaram a atirar contra os manifestantes.
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“Lembro bem quando consegui sair da margem do asfalto e chegar até uma casa onde estavam muitos companheiros, já tinha um amigo de infância também adolescente com um tiro no olho e tinha uma repórter lá. Quando eu vi que soldados estavam se aproximando, eu corri para o mato e não consegui avisar minha mãe e os meus irmãos. A partir do momento que a notícia saiu do perímetro da curva do S, a chacina ganhou uma dimensão internacional”, relata Batista do Nascimento da Silva, que tinha 15 anos à época do Massacre de Eldorado dos Carajás e participava da marcha.
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O sobrevivente do massacre é hoje militante sem-terra, e diz que a primeira imagem que tem na memória deste dia é a morte dos sonhos daqueles que estavam ali. Batista continua na luta para dar continuidade aos que foram assassinados.
“Eram centenas de mulheres, crianças e homens que tinham um sonho em comum, que era ter a posse de terra para trabalhar, produzir, ter sustento e dignidade. E tu perceber que o Estado na condição de quem tem o dever de garantir essa acessibilidade promovendo uma chacina, ceifando vidas interrompendo esses sonhos de homens e mulheres que ali estavam naquele dia”, diz Silva, sobrevivente do massacre. Dos 155 policiais envolvidos na operação, apenas dois foram condenados.
Batista conversou com o Brasil de Fato em 2022, enquanto estava à caminho da chamada "Curva do S", para as atividades que marcaram os 26 anos do massacre. Na "Curva do s" as famílias sobreviventes que hoje vivem no assentamento 17 de abril participam de um ato ecumênico no exato local da brutalidade, na BR-155.
::Testemunha da chacina de Pau D’arco relatou ameaças da polícia antes de ser morto::
Imagem na fotografia
Alguns fragmentos dessa memória de Batista estão eternizados pelas lentes do fotógrafo João Roberto Ripper, já conhecido na época pela sua atuação nos direitos humanos. Ele foi ao velório dos sem-terra e registrou o desalento das famílias sobreviventes. As fotos mais famosas são dele e do colega Sebastião Salgado. Ripper ressalta que assim que soube do massacre pediu dinheiro emprestado e foi até o Pará, para denunciar com a fotografia a violência da polícia contra os sem terra.
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“Foi muito difícil para mim. Lá tinha vários fotógrafos, Salgado, eu, e o Nelson Mancini que foi chamado pela Comissão de Direitos Humanos para refazer a autópsia, porque a autópsia que tinha sido feita antes foi toda maquiada. Fiz as fotos de todos os corpos. E aquilo foi muito doloroso, me emocionei. Naquele momento entendi, porque alguns estavam machucados, e me explicaram que é como se você fosse baleado, já estava para morrer, mas vai lá e ratifica a morte”, lembra o fotógrafo.
Denúncias e anúncios
Com quase 50 anos de fotografia, Ripper tem uma trajetória marcada por registros de violências e desigualdades sociais, mas também voltada para a beleza das histórias de pessoas como ele mesmo nomeia “esquecidas” nos interiores do país.
“Para mim marcou muito, foi o início de uma coisa que infelizmente hoje a gente vive com uma intensidade brutal no país, que tem como política a necropolítica, que é ‘vamos matar aqueles que não interessam a nós’, nós, os poderosos, os ricos. Então esse massacre acaba sendo um marco que se espalha por outros massacres, como o que acontece no Rio de Janeiro contra os negros”.
::Radiodocumentário relembra 21 anos do Massacre de Eldorado dos Carajás::
Ripper mergulhou no trabalho escravo Brasil afora, testemunhou indígenas serem expulsos de suas terras, e outras situações de violência. Ele se afastou das redes sociais, pois começou a ser ameaçado pela publicação de trabalhos, como foi o caso de Carajás. Ele recebeu mensagens de ódio, ataques às vítimas de uma violência brutal e a criminalização do massacre.
Democratização na fotografia
Para ele, o fotógrafo é testemunha dos fatos e deve usar a fotografia para denunciar as violações. Ressalta que se a grande mídia não está fazendo o seu papel e apenas servindo ao poder, ele defende que é preciso formar comunicadores e fotógrafos populares.
“A fotografia brasileira é predominantemente masculina, é o homem, se exclui mulheres, negros, indígenas, LGBTQIA+... E assim foi na história do mundo. Então hoje eu luto para trazer todas essas pessoas. Por exemplo, formamos fotógrafos na favela em projeto na Maré, em mais de 60 pessoas hoje que vivem da fotografia e estão fazendo trabalhos de denúncia de direitos humanos. Mas temos que formar também em todos os cantos fotógrafos populares”.
Ripper já realizou diversas exposições e foi reconhecido pelo seu trabalho com diversos prêmios. Ele comenta que tirar fotos do celular é uma técnica que pode ser aprimorada e levada a sério. “O celular é um elemento de democratização da fotografia, se a gente colocar cada vez mais pessoas trocando experiências e técnicas. É claro, continuar fotografando com as câmeras, mas entender que dá para fazer muita coisa importante pelo celular”.
Edição: Douglas Matos e Daniel Lamir