Coluna

Os impactos das empresas transnacionais na vida das mulheres

Imagem de perfil do Colunistaesd
Mulheres da Ocupação Povo Sem Medo, em Porto Alegre (RS). Que sejamos mulheres de luta, de afeto e solidariedade! - MTST/RS
O 24 de abril relembra as mais de mil vítimas do desabamento do Rana Plaza, em Bangladesh, em 2013

As empresas transnacionais são o centro do capitalismo contemporâneo. Organizadas em amplas cadeias globais de valor, expropriam territórios extraindo matérias-primas, que são transferidas por corredores logísticos que cortam terras, países, oceanos. Favorecem a exploração de mão de obra barata em todas as regiões que estiverem dispostas a receber seus investimentos em troca da redução de direitos humanos e trabalhistas. Assim, as corporações detêm um poder nunca antes visto, controlando economia, política, cultura  e, por conseguinte, as formas de produção da vida.

Ao contrário do que os economistas liberais nos querem fazer crer, as corporações são cada vez um grupo mais fechado. Esses donos do mundo decidiram parar de competir e se uniram para controlar setores estratégicos da economia, como a produção de alimentos e a saúde. Por detrás desses investimentos estão fundos de pensão cujas pessoas jurídicas e físicas ficam encobertas por um véu jurídico de proteção, com uma riqueza pulverizada em diversos paraísos fiscais ao longo da Terra. Não há limites, apenas um único objetivo: seguir lucrando sempre mais.

Contra esse poder nascem as lutas ao redor do dia 24 de abril, Dia Internacional de Solidariedade Feminista contra o Poder das Empresas Transnacionais. A data relembra as mais de mil vítimas do desabamento do prédio Rana Plaza, em Bangladesh, no ano de 2013. Mas também, as vítimas do Desastre de Bhopal, quando o vazamento de gás da fábrica de pesticidas Union Carbide India Limited matou quase 4 mil pessoas na Índia. Ou ainda, as 272 pessoas mortas em Brumadinho e as 19 mortas em Mariana, nos rompimentos de barragens de mineração em Minas Gerais. As 150 pessoas resgatadas do trabalho análogo à escravidão nas vinícolas do Rio Grande do Sul. Uma lista interminável de graves violações aos direitos humanos por essas empresas.

A atuação das empresas transnacionais deixa um rastro de violência nos corpos das mulheres, que queremos relembrar neste dia 24 de abril. Quando as empresas transnacionais chegam aos territórios com vulnerabilidade social, apresentam uma série de discursos alegando que a obra irá promover o desenvolvimento local. Várias narrativas corporativas são mobilizadas para conseguir a aceitação das comunidades. Em geral, na linha de frente da resistência encontram-se as mulheres. E é justamente sobre suas vidas que recaem a externalização dos danos sociais e ambientais das empresas.

O patriarcado, como um sistema de dominação das mulheres, impõe uma divisão sexual do trabalho, que relega para as mulheres papéis sociais de cuidado da casa, da família, dos filhos, da saúde, da disponibilidade de alimentos, água, moradia. Quando todos esses direitos são ameaçados pelos interesses econômicos das corporações, são as mulheres que suportam a carga negativa. Tomemos como exemplo a situação emblemática da presença da Fraport, empresa alemã, que recebeu a concessão do Aeroporto Salgado Filho, na cidade de Porto Alegre (RS).

A Fraport e a destruição dos modos de vida da Vila Nazaré

No ano de 1960 se formou a Vila Nazaré, nas margens do que hoje é o aeroporto de Porto Alegre. Criada por camponeses e camponesas que foram sendo expulsos do campo e migraram para a capital em busca de melhores condições de vida. Ao longo dos anos na ocupação, a comunidade se organizou na Associação de Moradores, conquistando saúde, educação, acesso à água e luz, e desenvolveram formas de sustentação por meio da reciclagem de materiais.

Em março de 2017, a prefeitura concedeu a administração do aeroporto para a empresa alemã Fraport, que iniciou uma operação de ampliação da estrutura para atendimento de cargas. Nesse momento, começou o pesadelo da comunidade. Primeiro, a empresa negou a existência das famílias na área, alegando que a ocupação era ilegal. Uma técnica bastante comum entre as corporações, negar a existência dos sujeitos e das violações. 

As famílias que viviam na Vila Nazaré começaram a sofrer um agressivo processo de remoção e de constrangimento por meio de diferentes estratégias de opressão aos modos de vida existentes na comunidade. Ao passo que as famílias eram removidas, também eram tiradas suas casas, apagando décadas de histórias. As mães que iam permanecendo na comunidade, conviviam com riscos à segurança das crianças, inclusive uma delas chegou a ter a guarda de sua filha questionada pelo Conselho Tutelar diante da precariedade da região de moradia. 

Logo no início das obras, a empresa construiu um muro ao redor do aeroporto. Este muro impediu o acesso das crianças da Vila Dique à escola. Sem o muro, o caminho até a escola levava 15 minutos, mas com ele, passou a levar mais de uma hora, demandando até transporte público, o qual muitas famílias não poderiam arcar. Algumas mães tentaram quebrar o muro, para fornecer acesso das crianças à escola, mas foram criminalizadas.

A empresa contratou uma consultoria para conduzir o processo de remoção, que foi pouco a pouco sufocando a comunidade e impedindo as condições de vida. As mulheres enfrentaram, além do problema de acesso à escola, o isolamento das casas e a falta de atendimento à saúde - pois a Unidade de Saúde da região foi fechada. Sendo obrigadas a irem para área de reassentamento, as quais não estavam preparadas com equipamentos para atender as demandas das famílias.

Foram alocadas em dois condomínios - Nosso Senhor do Bonfim, no bairro Sarandi, e Irmãos Maristas, localizado na Rubem Berta, empreendimentos que pertenciam à prefeitura, sendo obras do programa federal "Minha Casa, Minha Vida". Ocorre que, na divisão, separaram-se familiares e amigos, quebrando os laços comunitários existentes na Vila Nazaré. Para as mulheres, os laços comunitários compõem uma rede de solidariedade e apoio para a socialização do cuidado com as crianças, idosos e emergências de saúde. Em comunidade, as mulheres se apoiam para dividir tarefas de cuidado. Isaura Martins, militante do Movimento dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Sem Teto (MTST) removida da Vila Nazaré, revela a crueldade da ação: "botaram cada um num canto".

Isaura conta ainda que o condomínio Irmãos Maristas, onde vive, difere muito da proposta que a empresa apresentou na única reunião que realizou com a comunidade. "A vida é ruim [no condomínio] porque fizeram um monte de proposta para nós, a gente está dentro de um galinheiro, não tem nem espaço para gente ficar com criança, para quem tinha casa grande, agora tem um penico, é ruim". Conta ainda: "(...) tive que dar metade dos meus bichos, não pode plantar nada, ter horta, mudou muito, (...) fizeram várias promessas não cumpridas: colégio, posto, creche".

As mulheres na comunidade tiveram que lutar pelo acesso à escola e permanecem em luta para melhorar suas condições porque, como conta Isaura, ainda não são iguais à situação que tinham na Vila Nazaré. Inclusive, na Instituição de Educação Infantil mais próxima não tem vagas suficientes para a demanda da comunidade, levando muitas mães a terem que buscar colégios mais distantes, desafiando o orçamento da família com os custos adicionais de transporte público. Na unidade de saúde referência para o atendimento da comunidade, o acesso também é precário, responsabilizando as mulheres pelo cuidado dos familiares. 

Com o processo de remoção e reassentamento, a comunidade enfrenta dificuldades em manter a renda com a reciclagem porque os condomínios, além de não ofertarem a estrutura necessária para garantir a manutenção do trabalho, estão distantes da cidade, numa região com longo histórico de trabalhadores catadores de material reciclado. Isaura relata, que no antigo local de residência, "antes cada um saía catar material até a pé", justamente pela proximidade da comunidade com as áreas centrais da capital. Porém, hoje, mais isolados, a renda com a prática tornou-se escassa. Muitas pessoas, principalmente as mulheres, não conseguiram se colocar novamente no mercado de trabalho porque a distância do condomínio e a precariedade dos equipamentos sociais e políticas públicas de educação infantil e mobilidade urbana dificultam o deslocamento da população em situação de vulnerabilidade e risco social. Sabemos que as mulheres, sobretudo pretas e periféricas, compõem os setores de trabalho informal, e por isso não acessam os direitos constitutivos da CLT, entre eles o vale-transporte, assim como os demais que permitiriam o acesso ao trabalho.

A vida das mulheres atingidas pela Fraport assemelha-se às violações sofridas pelas mulheres atingidas pelo rompimento de barragens, hidrelétricas, agronegócio, à medida que a chegada das empresas, o exercício de sua atividade econômica, conflita com as formas de produção da vida nos territórios. Em geral se observa que há uma sobrecarga do trabalho da economia de cuidado (acesso à educação e saúde), além do não reconhecimento dos impactos no trabalho das mulheres, aprofundando a invisibilidade e a vulnerabilidade. 

O nosso remédio é a economia feminista popular 

Não há outras formas de alcançar o fim da impunidade das corporações que não seja por meio da luta contra o poder corporativo. As mulheres, no mundo, têm se organizado e construído a economia feminista popular como uma ferramenta alternativa à crise sistêmica. É por meio desta proposta que as mulheres têm construído laços de solidariedade e apoiado outras mulheres a saírem de sua condição de vulnerabilidade. Podemos citar as cozinhas comunitárias presentes nos condomínios como estratégia de resistência popular ao enfrentamento da fome e insegurança alimentar.

Com organização, mobilização e participação comunitária, cujos laços de solidariedade mostram-se como alternativa aos impactos provenientes do processo de remoção e reassentamento, é possível vislumbrar a potência presente nos territórios. Para além da produção e distribuição gratuita de alimentos, os espaços das cozinhas se tornam referência na atenção, acolhida e cuidado, sobretudo para as mulheres e suas famílias. Uma vez que compartilham suas histórias de vida, demandas e alternativas de melhor resistir entre si. São espaços onde se gestam sonhos e esperanças, trocas e afetos. Locais onde são possíveis a construção de processos sociais emancipatórios e de análise crítica da própria realidade enquanto componente fundamental para o fortalecimento da luta das mulheres. 

Pelo fim da impunidade aos impactos das ações produzidas pelas transnacionais! Por uma economia feminista e popular! 
 

Edição: Thalita Pires