A corrida cambial do dólar paralelo, ou dólar blue, continua pressionando o aumento dos preços na Argentina pela segunda semana consecutiva. As análises sobre essa bomba-relógio são variadas. Além da renúncia do chefe de assessores da presidência, Antonio Aracre, na semana passada, e do freio que o setor agro pôs sobre a venda de suas colheitas nestas semanas, ganha corpo a versão de que o disparador da reação do mercado seja o cenário de incertezas políticas em ano de eleição presidencial.
A cena mostra um governo da Frente de Todos debilitado, sem baixas nos índices de inflação, e tensões na coalizão que não permitem a definição, até agora, de um candidato para 2023; e, do outro lado da calçada, tampouco há favoritos de destaque no campo da oposição.
Enquanto isso, a direita e a extrema direita lançaram seus pré-candidatos, mesmo com seus conflitos internos, e já pautam o debate a 4 meses da eleição primária. Nesse contexto, uma proposta para a economia do país ressoa e ganha a mídia, ainda que recebida como absurda: a dolarização da economia argentina.
A ideia vem sendo propagada pelo deputado Javier Milei, da coalizão de extrema direita Libertad Avanza, e foi reforçada durante o tradicional Fórum de Llao Llao, um encontro de candidatos à presidência com os empresários mais influentes do país, que aconteceu em Bariloche no último dia 18. Sua proposta de substituir os pesos argentinos por dólares se relaciona com a eliminação do Banco Central, entidade reguladora dos bancos no país.
"Trará mais soluções que problemas, mas, principalmente, eliminará a inflação”, prometeu o autoproclamado libertário diante de empresários de nomes como Mercado Livre, Globant e Accenture. A proposta de Milei foi recebida com reticência e dúvidas sobre sua possível implantação, informam fontes que estiveram presentes no evento.
Milei tampouco encontra muito apoio entre especialista de diferentes alinhamentos políticos. O economista Martín Tetaz, deputado pela coalizão do ex-presidente Mauricio Macri, Juntos por el Cambio, destacou em um artigo no La Nación a "baixa correlação" do ciclo econômico e termos de intercâmbio com os Estados Unidos, um risco caso haja "um crescimento mais rápido da produtividade nos Estados Unidos, recriando as condições de 2001", ano de uma profunda crise social e econômica no país. "Milei não é um político, é uma celebrity", afirma Tetaz.
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Em termos gerais, a medida seria um programa de choque que aceleraria a desvalorização da moeda nacional e provocaria impactos sociais mais severos que os já vistos nos últimos anos. O economista Claudio Katz, do coletivo Economistas de Izquierda, retoma a raiz do projeto de dolarização do país, proposto por Emilio Ocampo. "Ele diz que, para dolarizar, tudo o que falta privatizar na Argentina deveria ser privatizado, porque emitiria um título com garantia pelo petróleo, pelo lítio, pelo fundo de seguridade social", explica.
“Com isso, iriam aos mercados buscar os dólares de que o país precisa para dolarizar a economia”, afirma. “Em outras palavras, privatizar, ajuste fiscal, desvalorizar a moeda nacional: são todos os projetos da direita. Formulados em termos de dolarização, tem o atrativo demagógico de gerar a ilusão entre a população que as pessoas vão ter dólares", pontua o economista, autor do livro "Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo, socialismo" (Expressão Popular).
Milei também tem propostas como a venda de órgãos humanos e um sistema mercadológico de vouchers para a educação.
O canto da sereia
Em ano eleitoral e com a disparada da inflação, o discurso da dolarização encontra muitos ouvidos. Especialmente em uma economia – e uma cultura – tão referenciada no dólar como a argentina. "Temos uma economia que podemos chamar de bimonetária", explica a economista argentina Corina Rodríguez, da organização feminista Mujeres por un Desarrollo Alternativo para una Nueva Era.
"O peso argentino é a moeda de curso legal própria, mas os ativos duráveis, como imóveis e veículos, são referenciados no dólar", afirma, agregando que, ao mesmo tempo, há serviços cotidianos, como eletricidade e combustível, que também seguem a evolução da moeda emitida pelos EUA, com uma incidência direta nos demais preços da economia.
"Essa característica da economia argentina é histórica, desde a década de 70, e, em alguns momentos, se aprofunda", diz a economista. É o caso, agora, com o reflexo deste mecanismo nos preços dos aluguéis: a inflação é alta e o valor fixado em pesos perde valor rapidamente. Há proprietários que já não aceitam receber o aluguel em pesos. “Em um período de alta inflação, o que acontece com o dólar é muito relevante para saber o que vai acontecer com os preços", diz.
O debate sobre a dolarização no país, portanto, não é uma novidade. Como destaca Rodríguez, um projeto parecido foi a conversibilidade, em que 1 dólar equivalia a 1 um peso, implementado na década de 1990, no governo de Carlos Ménem, e que derivou na grande crise econômica de 2001.
"Manter essa equivalência do peso e do dólar teve um custo econômico terrível", conta a economista. "A Argentina financiou esse esquema cambial primeiro com as privatizações de todas as empresas públicas para a entrada de dólares e, quando acabaram, o financiamento passou a ser em dívida pública. Sustentar qualquer esquema que fixe o dólar requer de uma fonte de financiamento; o mesmo acontece com a dolarização."
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"Dolarizar a economia cria a ideia de que, com o desastre com a moeda nacional, o trabalhador receberá em dólares, o que é verdade. A única coisa que não dizem é quanto", alerta o economista Katz.
O economista afirma que o salário médio na Argentina hoje é de cerca de US$ 400 a US$ 500 dólares e que, com a dolarização, esse salário passaria para algo entre US$ 25 a US$ 60. "Por que? A dolarização significa que toda a massa de dinheiro em pesos – as cédulas circulantes e os depósitos nos bancos –, seria trocada por dólares do Banco Central. A relação de quantos dólares e quantos pesos você tem dá o que se chama de regra de conversibilidade", explica.
Portanto, as baixas reservas do Banco Central em dólares, destinados ao pagamento da dívida com o FMI contraída por Macri, explicariam o aumento do valor do dólar em uma suposta dolarização. Segundo cálculos divulgados por consultorias na última semana, se a economia argentina fosse dolarizada hoje, cada dólar passaria a valer 9 mil pesos.
"Em suma, qualquer projeto que nos aproxime disso requer uma enorme desvalorização, algum plano de entrega dos recursos naturais para obter dólares, algum confisco de moeda", destaca Katz.
Outro grande problema trazido pela dolarização da economia é a autonomia sobre a política monetária. "A Argentina passaria a operar sua economia em uma moeda sobre a qual não tem autoridade", aponta Rodríguez. "Mesmo que se dolarize, o país não vai passar a imprimir dólares. Os dólares são impressos pelo Banco Central dos EUA."
Enquanto isso, o Sul Global aponta para um outro sentido, especialmente com o ascenso da China como potência. "Quando há uma tendência a desdolarizar as transações mundiais, seria o cúmulo do absurdo que a Argentina dolarize sua economia", observa Katz.
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Direita à espreita
Condicionado ao FMI, e portanto aos Estados Unidos, o governo do presidente Alberto Fernández apresentou também pouca margem de manobra política para enfrentar o setor econômico concentrado, que contabiliza seus rendimentos em dólares. Em ano eleitoral, Fernández, que já abandonou a corrida eleitoral, concentra esforços em não deixar essa corrida se refletir no dólar oficial – que também sobe, mas em relação ao dólar paralelo, sobe pouco.
A direita e seus projetos anunciados como salvadores ficam à espreita, em um contexto de pressão também por parte dos EUA sobre a Argentina para que freie sua relação bilateral com a China. Nas últimas semanas, funcionários estadunidenses aterrissaram no país com esse objetivo, como a chefe do Comando Sul, Laura Richardson, expressamente interessada nas reservas de lítio do país sul-americano.
O presidente Alberto Fernández se pronunciou sobre a corrida cambial dos últimos dias. "É uma prática permanente da direita argentina. Primeiro, instalam rumores pela manhã, operam durante todo o dia, e quando termina à tarde, retiram sua rentabilidade do mercado cambial e atingem, assim, as economias da maioria dos argentinos. Sempre atuaram assim", apontou o presidente. Enquanto isso, esperam-se definições do peronismo para responder eleitoralmente aos avanços – e ideias – da oposição.
Edição: Thales Schmidt