Apesar de ser o maior país do mundo em extensão territorial, a Rússia enfrenta um histórico problema demográfico, com diminuição das taxas de natalidade e expectativa de vida. O país ocupa o nono lugar entre os mais populosos do mundo, com 146 milhões de pessoas. Contudo, dados do órgão federal de estatística da Rússia (Rosstat) mostram que estes indicadores vêm caindo há cinco anos consecutivos.
De janeiro a junho de 2022, nasceram 635,2 mil crianças na Rússia, o que representa 42,9 mil, ou 6,3% a menos que o resultado do mesmo período de 2021. Antes disso, a taxa de declínio do número absoluto de nascimentos desacelerava desde 2019. Em 2023, a Rosstat revelou que ao longo do último ano a população da Rússia diminuiu em mais de 550 mil.
O agravamento desse quadro teve a pandemia da Covid-19 como umas das principais causas, deixando mais de 1,1 milhão de mortes. Mas mesmo com a crise do coronavírus controlada, os índices demográficos permaneceram preocupantes, mantendo a tendência em baixa desde 2019. Agora, a guerra que a Rússia iniciou na Ucrânia em 2022 projeta um novo capítulo nebuloso para os índices demográficos do país.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o demógrafo independente Aleksey Raksha, que é um dos principais nomes das análises estatísticas na Rússia, declarou que ainda não se pode falar em uma grave crise demográfica, mas destacou que a “situação está constantemente piorando”.
“Houve uma grande crise durante a Covid-19", observou. "E isso foi drástico, mas agora a Covid-19 terminou e nós voltamos aos patamares anteriores, que também não eram positivos, a situação piorava lentamente”.
O estatístico explica que o “acúmulo da inércia das ondas demográficas é um problema que não deixou de existir”. “Então, por inércia, nós estamos indo cada vez mais baixo e, com a guerra, o mais provável é que isso se acelere”, acrescentou.
De acordo com o analista, ainda não é possível mensurar os efeitos da guerra para a demografia do país. Em primeiro lugar, porque o número de mortes, apesar de ser impactante do pontos de vista humanitário, não alterou drasticamente os indicadores demográficos. Fora o fato de que, no contexto do conflito, não há como mensurar precisamente quantas pessoas morreram entre civis e soldados, considerando que os números oficiais, quando são divulgados, tendem a maquiar a realidade do campo de batalha.
No entanto, ao comprar a mortalidade da pandemia com a da guerra até o momento atual, o demógrafo Aleksey Raksha observa que existem particularidades sociais que diminuem as distorções que os dados apontam à primeira vista.
“No que diz respeito à mortalidade, eu acredito que na guerra morreram com certeza não mais do que 60 mil pessoas, pode ser até que não mais do que 50 mil mortes, e é claro que são cifras enormes do ponto de vista da guerra, mas, se compararmos com a Covid-19, que teve 1,1 milhão de mortes, isso é 22 vezes menos.
No entanto, se considerarmos que em média essas pessoas ainda viveriam uns 40 anos e que com a Covid-19 morreram pessoas que tinham 10 a 15 anos de vida em média [pela frente], então a diferença não será em 22 vezes, mas em torno de seis ou sete. E se pegarmos a diferença só de homens, a diferença cairá para três ou quatro”, explica.
Além disso, as estatísticas não dão conta do principal efeito que a Rússia sofreu em termos de número durante o período da guerra: o fluxo migratório. O início do conflito já causou uma onda significativa de pessoas deixando o país. Mas o anúncio da mobilização de novos soldados para a Ucrânia em setembro de 2022 provocou uma saída em massa de homens entre 20 e 40 anos, em sua grande maioria.
Na ocasião, o Ministério da Defesa anunciou que o objetivo da medida era recrutar 300 mil novos soldados. Como a mobilização não foi revogada, apenas desacelerada, de lá pra cá foram cerca de 450 mil homens chamados para a guerra, segundo estimativas. Em relação ao fluxo migratório, análises dão conta de que entre 500 mil a 800 mil pessoas saíram do país - não existem dados oficiais sobre o número de pessoas que emigraram da Rússia, logo eles não entraram em nenhuma estatística demográfica.
De acordo com Aleksey Raksha, só será possível analisar os efeitos da mobilização nos índices demográficos quando forem divulgados os números de natalidade a serem divulgados a partir de junho, quando o recrutamento de cidadãos russos para a guerra terá completado nove meses. “A demografia é algo inercial, que não nos permite ver ainda baques graves desde a Covid. Aparentemente ainda não é o momento, mas estamos aguardando com atenção até a metade do ano”, explica.
Efeitos na economia
Por outro lado, também houve um grande fluxo de pessoas fugindo da Ucrânia por conta da guerra com destino à Rússia. De acordo com estudos, entre 500 mil a um milhão de pessoas chegaram no país. No entanto, como observa Aleksey Raksha, são contingentes muito distintos.
“Foram embora, em sua maioria, homens jovens com escolaridade, e chegaram, em grande parte, idosos e mulheres com crianças da Ucrânia. Então em número esses fluxos são parecidos, mas sua composição é completamente diferente. Então a guerra teve um reflexo mais negativo no mercado de trabalho, no nível de escolaridade e na economia, mais que na demografia”, esclarece o analista.
Esse diagnóstico já foi refletido em uma declaração oficial do presidente russo, Vladimir Putin, no início de abril. Sem falar em crise demográfica, muito menos citar os efeitos da guerra na Ucrânia para a economia russa, Putin declarou que o país enfrenta um déficit de trabalhadores em várias áreas. Ele observou que, mesmo com uma “taxa de desemprego historicamente baixa de 3,5% no país como um todo, simplesmente não há trabalhadores suficientes em muitas áreas”.
Os problemas demográficos do país não são de agora. A Rússia iniciou uma tendência de agravamento da situação demográfica ainda na profunda crise econômica que assolou o país após o fim da União Soviética, nos anos 1990. A explosão no consumo de álcool e cigarros, fluxos migratórios saindo do país e falta de perspectiva no mercado de trabalho, iniciaram uma tendência de baixa natalidade e queda da expectativa de vida, que só começou a melhorar em 2012 a partir de certas medidas do governo.
Mas o ciclo de indicadores positivos só durou até 2016. A partir de 2018, as estatísticas oficiais registraram uma diminuição da população por cinco anos consecutivos.
Um outra projeção, publicada pela revista The Economist, aponta que, entre 2020 e 2023, a Rússia perdeu entre 1,9 milhão e 2,8 milhões de pessoas, somando a pandemia, as baixas da guerra e a fuga de cérebros durante a mobilização. A publicação destaca que esse estudo não contempla o encolhimento natural da população, que é resultante de uma taxa de natalidade baixa e de mortalidade alta, tendência que a Rússia já havia retomado antes mesmo da pandemia.
O que dificulta vislumbrar um cenário preciso sobre as tendências demográficas na Rússia é a falta de transparência dos dados estatísticos oficiais, sobretudo no contexto da guerra. Os estudos são embasados basicamente nos dados de natalidade e mortalidade oficiais. Já os fluxos migratórios e de mortes da guerra não possuem números oficiais, ou confiáveis. Mas mesmo as estimativas mais elementares já garantem aos estudiosos um prognóstico negativo para a demografia da Rússia.
“Foram mobilizados em torno de 450 mil a 500 mil homens, e o mesmo número ou mais fugiram do país, chegando a quase um milhão. E no total, o número de homens entre 20 a 40 anos na Rússia é de cerca de 20 milhões. Isso significa que por volta de 5% dos homens foram afastados de suas famílias. Então só por isso, a natalidade deve cair em não menos do que 5%, e isso sem considerar os fatores psicológicos. Esse é o prognóstico. Outras previsões não existem, porque depende de como irá transcorrer a guerra e o que irão fazer as autoridades russas”, completa.
Edição: Patrícia de Matos