Eleição 2023

Cristina Kirchner dá o tom: 'É necessário que nada volte a depender de uma pessoa'

Em discurso esperado pela militância peronista, a vice apontou a necessidade de 'voltar a criar programas de governo'

Brasil de Fato | Buenos Aires, Argentina |
Cristina Kirchner durante classe magistral na inauguração da Escola Justicialista de formação política. - Reprodução

No mesmo 27 de abril em que, em 2003, Néstor Kirchner foi vitorioso nas urnas e eleito como presidente, a vice-presidenta, Cristina Kirchner, discursou no aniversário de 20 anos deste marco inaugural dos anos de governos kirchneristas no país. Foi a primeira vez que a vice apareceu publicamente após o presidente Alberto Fernández anunciar que não será candidato à reeleição.

O evento, ocorrido no Teatro Argentino de La Plata, inaugurou a "Escola Justicialista Néstor Kirchner", um centro de formação política. Apesar das expectativas por alguma definição ou pistas sobre as candidaturas da coalizão governista Frente de Todos, Cristina focou seu discurso no tema de sua aula magistral sobre economia, intitulada "A Argentina circular: o FMI e sua histórica receita de inflação e recessão".

A vice-presidenta não fez menção a Alberto Fernández e nem falou sobre questões eleitorais do espaço peronista. Ao menos não verbalmente: a composição de dirigentes na plateia apresentou uma cena de rara unidade entre diferentes correntes da Frente de Todos. Além de dirigentes kirchneristas, estiveram presentes nomes da ala massista (próximos do Ministro da Economia, Sergio Massa) e, notavelmente, da ala albertista, como a Ministra do Desenvolvimento Social, Victoria Tolosa Paz, o deputado Leandro Santoro e o Ministro de Obras Públicas, Gabriel Katopodis.

:: Guerra, pandemia e fuga de cérebros: Rússia enfrenta perspectiva de crise demográfica ::

Como em todas as últimas aparições, o público cantou "Cristina presidenta" em diversas oportunidades. Em dado momento, alguém na plateia fez menção à Cristina como gestora, quando a vice comentava a recente disparada do dólar – as chamadas corridas cambiais –, e mencionava como evitou esse fenômeno durante seus governos aplicando políticas monetárias sobre tipos de dólar (atualmente, há mais de 15 tipos de dólar no mercado cambiário do país), e cuidando das reservas de dólares do Banco Central. Ela, então, respondeu ao comentário que veio da plateia: "Não, não se trata de uma pessoa. É necessário voltar a construir programas de governo. É necessário não voltar a depender de uma pessoa", disse a vice, no que pode ser interpretado como um reforço de sua posição de não ser candidata à presidência, conforme já havia anunciado em dezembro do ano passado.

Nesse sentido, Crstina respondeu a um mote de Javier Milei, um deputado de extrema direita com aspirações presidenciais e que afirma ser um inimigo da "casta política".

"Não é coincidência que a única dirigente política que foi condenada, proscrita, inabilitada e que tentaram assassinar foi uma só", disse Cristina, seguida de aplausos. "Não quero ser autorreferencial. Esses que andam dizendo que 'a casta tem medo', de que tem medo? Se nunca aconteceu nada com você, irmão", disse, seguida de mais aplausos. "Caras de pau. Medo tenho é que meus netos cresçam em um país tão injusto, desigual. Eu já vivi, já dei o que tinha que dar, já vivi. Temo pelos jovens, porque há muita covardia, muita hipocrisia", concluiu.

A volta do passado e a extrema direita

Sem citar nomes, Cristina criticou o que considera a repetição de fórmulas econômicas e políticas que já se mostraram fracassadas.

"Estamos nesse estranho momento em que o passado se torna presente e talvez frustre o futuro. Por isso, é importante gerar espaços como esta escola", destacou, no início de sua fala.

Neste sentido, Cristina entrou na questão da dolarização, uma das propostas de Milei e que tem sido amplamente debatida nas últimas semanas no país. Em um comparativo com o programa de conversibilidade da década de 1990, a vice apontou a experiência de dolarização que custou caro ao país; uma dolarização "não tão extrema" de tornar o dólar a moeda oficial do país, como propõe Milei, mas que estabeleceu que cada peso teria o mesmo valor de um dólar.

:: 'A nova ordem mundial': pesquisadores lançam edição internacional de revista chinesa ::

"Essa conversibilidade foi sustentada com os dólares que entraram das privatizações e que, quando acabaram os dólares das privatizações, com os dólares de endividamento que a nação tomava para que a base monetária estivesse respaldada por dólares. Isso não durou, obviamente", pontuou Cristina. "Com a abertura comercial indiscriminada, todo o aparato industrial começou a ser destruído, o desemprego aumentou, e também caíram preços das matérias-primas", disse.

"A conversibilidade terminou como começou, com a captura de todas as poupanças, depósitos", recordou, lembrando que as pessoas saíram às ruas e houve "mortos, violência, repressão". "Essa é a história da conversibilidade na República Argentina, e é a história da dolarização."

"O acordo com o FMI é inflacionário"

Ponto crítico de discórdia e determinante no racha da Frente de Todos, o acordo com o FMI foi apontado explicitamente pela vice como um problema na Argentina atual. "O acordo com o FMI é inflacionário", disse, apontando um gráfico que mostra a evolução do índice de inflação no país nos últimos anos.


Slide da apresentação de Cristina Kirchner: "o acordo com o FMI é inflacionário", disse a vice. / Reprodução

"Vejam como a inflação dispara a partir da assinatura do acordo, quando perdemos ferramentas", apontou. "A taxa de desvalorização [do peso] tem que acompanhar a inflação, em um país de economia bimonetária como o nosso, onde o principal causante da disparada dos preços é a variação do dólar", disse. "É algo que não entra na cabeça dos técnicos do FMI."

A vice criticou o objetivo de criar déficit fiscal na economia, um dos principais pontos do acordo com o FMI e mecanismo defendido por economistas de direita. "No ano passado, a meta do déficit fiscal foi super cumprida. Ou seja, excedeu o que o Fundo exigia, e, ainda assim, a inflação se disparou. Por que? Porque a inflação está atada na Argentina à escassez ou à abundância de dólares", destacou.

"Querem aplicar políticas enlatadas que, além disso, não se restringem à Argentina; na verdade, as políticas do FMI não deram resultado em lugar nenhum", enfatizou a vice. "Não há um modelo exitoso."

Sobre as particularidades do país, Cristina Kirchner também destacou a necessidade de agregar valor aos produtos primários, e que estes, sozinhos, "não são salvações milagrosas", como as reservas de gás e hidrocarbonetos de Vaca Muerta, grande aposta para o futuro recente do país.

Edição: Thales Schmidt