Eu acho que agora o nosso mundo tem que parar o racismo
Há 20 anos, a Lei Federal 10.639, que tem por objetivo resgatar a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à história do Brasil e da África, foi instituída. Mas, mesmo depois de duas décadas, ainda são pontuais as escolas que aplicam a lei de forma integral.
Na Escola Municipal Deputado Caio Sérgio Pompeu de Toledo, localizada na zona leste de São Paulo, por exemplo, o projeto Mediadores de Leitura chama a atenção para a história da África e para a luta dos negros no Brasil. Renilde dos Santos, pedagoga e professora de leitura, diz que a implementação da lei vem da busca dos próprios professores da instituição.
“Os nossos estudos referentes à lei vêm de uma busca do grupo em fazer um trabalho mais efetivo para a comunidade, percebendo que nós estamos inseridos num bairro onde 90% da população é negra. A gente teve que revisitar o nosso projeto político pedagógico e fazer as adaptações para que essa lei realmente se efetivasse. Cada professor, na sua disciplina, vai tentando encaixar esse tema. Eu trago a literatura de escritores negros, de escritores indígenas, como uma ferramenta”, explica Renilde.
Fruto da luta do movimento negro, a lei foi criada para colocar a valorização das religiões de matriz africana, dos intelectuais e dos artistas negros nas salas de aula, equiparar a construção dos conhecimentos dentro do ensino, combater a discriminação e gerar representatividade. Renilde usa seu exemplo para falar da importância do texto.
"Eu estudei nessa escola e fui me descobrir como uma adolescente preta já no nono ano. Eu queria o tempo todo me embranquecer. A lei é importante por conta disso, para que as crianças se vejam representadas na literatura, por exemplo. E com isso elas ficam empoderadas e começam a refletir, ser os agentes multiplicadores disso, dessa educação antirracista, de combate à violência”, defende a pedagoga.
Ex-aluna da escola, Rafaela Ribeiro cursa agora o Ensino Médio em uma escola estadual e sente falta dos conteúdos relacionados à história da África e à cultura afro-brasileira. Para continuar se debruçando sobre os temas, ela participa como monitora do projeto mediadores de leitura.
“O dia a dia do projeto é bem tranquilo. Temos livros mais relacionados à África e à cultura afro-brasileira. A professora convidou a gente para a feira, para ler trechos de livros ou declarar poesias que falam sobre da questão afro e eu achei muito interessante esse projeto, eu gostei bastante de participar”, conta a estudante.
O tema da história da África e da cultura afro-brasileira, assim como o racismo, são debatidos cotidianamente nas aulas da estudante Melyssa Dias Portugal, de 11 anos. Na avaliação dela, por conta disso, os episódios de racismo na escola têm diminuído drasticamente.
“Antigamente tinha bastante racismo aqui na escola, mas a gente foi conversando que racismo é crime. E aí melhorou bastante na minha sala. Todo mundo respeita cada um”, afirma Melyssa, que relata ter conhecido a escritora Carolina Maria de Jesus nas atividades.
“Eu gostei bastante porque ela é negra, guerreira, trabalhadora. Era catadora, e os lixos que ela pegava tinham papéis. E aí ela escrevia muitas coisas da vida, da realidade dos negros. E morava na favela e escrevia tudo o que acontecia lá. Ela era virou uma escritora de grande sucesso, é muito legal”, se empolga a estudante.
Apesar de conquistas e avanços, na visão da historiadora Ana Paula Brandão, a Lei Federal 10.639 não está institucionalizada de fato. Segundo ela, quando acontece a implementação da lei, os conteúdos não são oferecidos de modo contínuo.
"Para implementação de uma lei como essa você precisa de outras etapas que não foram cumpridas. Precisa que os secretários de educação invistam na implementação dessa lei. E isso significa ter uma dotação de verba na secretaria, porque precisa de material didático, formação continuada e ações diretas para ter uma efetividade na implementação da lei”, explica Ana Paula.
A pesquisadora pontua ainda que todos os profissionais das escolas devem estar preparados para trabalhar com um sistema de educação antirracista, que pode fazer a diferença em toda a sociedade, seja na inclusão de negros em cargos de melhores salários ou nos cursos universitários, para confrontar piadas sobre cabelo ou na face mais cruel do racismo, na morte de jovens negros vitimados pela violência.
“Não se restringe a uma disciplina ou a um professor, o tema do racismo tem que ser trabalhado de forma estratégica em todas as disciplinas em toda escola. Na verdade, é uma mudança de paradigma preparar a sua escola para lidar com a diversidade”, afirma a historiadora.
O Ministério da Educação informou que recriou a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão, que está trabalhando para que a aplicabilidade da Lei Federal 10.639 incida sobre as políticas educacionais de modo estrutural e não em pontos específicos. A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo informou que para a rede estadual estão disponíveis materiais didáticos, acervo nas bibliotecas com temática antirracista e rodas de leitura.
Já a Prefeitura de São Paulo informou que possui o Núcleo de Educação para as Relações Étnico-Raciais, que tem como objetivo “fomentar e promover práticas antirracistas e formar profissionais atentos às desigualdades”. Nenhum dos órgãos respondeu se existem metas para acompanhar o cumprimento da lei.
Edição: Rodrigo Gomes