Uma nova iniciativa de Moscou pretende transformar o status jurídico das populações dos territórios do leste da Ucrânia anexados pela Rússia. O decreto assinado pelo presidente russo, Vladimir Putin, em 28 de abril determina que quem não aderir à cidadania russa pode chegar a ser deportado para o seu país de origem. De acordo com o documento, os cidadãos das regiões de Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporozhye devem se tornar cidadãos da Rússia ou declarar seu desejo de não fazê-lo até 1º de julho de 2024.
Atualmente, a população dessas regiões é, em sua maioria, composta por russos, ucranianos e pessoas que tornaram-se cidadãos das autoproclamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, em meio ao processo de independência desses territórios separatistas do governo de Kiev. Dessa forma, o decreto pressupõe que os moradores destes territórios que decidirem não receber o passaporte russo serão considerados estrangeiros ou apátridas. Com isso, a nova lei prevê a possibilidade de deportação dos que não aceitarem receber o passaporte russo.
Este tipo de intervenção não é uma iniciativa nova. Conhecido como "passaportização", o processo de intervir no status burocrático das populações de regiões de influência da Rússia foi aplicado de forma massiva nas regiões separatistas da Ossétia do Sul e Abkházia, durante a guerra com a Geórgia, em 2008, e também chegou a ser aplicada em Donetsk e Lugansk. Ou seja, a criação massiva de novas "populações russas" pode ser entendida como uma forma subjetiva de estender a ocupação russa para além da operação militar.
De acordo com o diretor do Instituto Ucraniano de Política, Ruslan Bortnik, paralelamente às ações militares, a busca de Moscou por "modificar a população dos territórios ocupados" faz parte de uma severa batalha ideológica no campo social. Em entrevista ao Brasil de Fato, o cientista político avalia que a estratégia russa se baseia em criar argumentos jurídicos para reivindicar que os territórios do leste ucraniano "devem ser mantidos e fixados à Rússia".
O pesquisador observa que o decreto de Putin tem a particularidade de incorporar os cidadãos das regiões anexadas à cidadania russa quase que de maneira compulsória. Ou seja, quem não quiser virar russo, terá que se manifestar e declarar isso oficialmente. Caso contrário, receberão o status de cidadão russo automaticamente.
"Se a pessoa ficar 'na calada' e não for atrás do passaporte russo, por esse decreto ela será considerada cidadã da Rússia. As pessoas que não adotarem a cidadania russa serão aquelas pessoas que declararam o desejo de não adotá-la. Mas se o indivíduo declarou que não quer receber o passaporte russo, então é facilitado o mecanismo de sua expulsão", afirma o analista.
De acordo com a lei, a expulsão poderá ocorrer em um período de apenas três dias. A primeira justificativa prevê a deportação em caso de manifestação "a favor de mudanças dos atuais fundamentos da Constituição da Federação". Ruslan Bortnik explica que "se a pessoa não reconhecer o status russo destes territórios ocupados, se isso for manifestado, já é uma justificativa para expulsão".
A segunda justificativa para expulsão diz respeito à "atividade política extremista", que possui um entendimento muito amplo e vago, a começar pelo termo "atividade", que pode implicar tanto participação em protestos até publicações nas redes sociais com tom crítico à ação da Rússia.
Assim, o diretor do Instituto Ucraniano de Política aponta que, nos casos em que a pessoa decidir que não quer receber a cidadania russa, o "procedimento de sua expulsão será significativamente facilitado".
"É provável que tais pessoas que vão declarar sobre o desejo de não receber a cidadania russa serão expulsos, expulsos massivamente, porque eles serão questionados: 'E por que vocês não querem receber a cidadania russa?'. A pessoa pode responder 'porque considero que a região de Kherson é território da Ucrânia'. 'Então vocês precisam ir embora porque vocês estão violando o decreto do presidente da Federação Russa'. É dessa forma que esse mecanismo vai funcionar", afirma Bortnik.
A iniciativa aprofunda ainda mais a crise entre Rússia e a Ucrânia na medida em que expõe visões irreconciliáveis sobre os territórios de Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporozhye. Ao mesmo tempo que a Rússia aumenta sua presença e a incorporação das regiões ocupadas aos mecanismos burocráticos da Federação Russa e sua Constituição, a lei ucraniana pressupõe que o "território temporariamente ocupado" é uma "parte inseparável do território da Ucrânia" e o seu regime jurídico está sujeito à Constituição e às leis da Ucrânia.
O comissário do Parlamento Ucraniano para os Direitos Humanos, Dmytro Lubinets, afirma que a leitura a partir da Constituição da Ucrânia é respaldada pelas leis do direito internacional, pois "de acordo com o Protocolo nº 4 da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais, ninguém pode ser expulso do território do Estado de que é cidadão, e nenhum cidadão pode ser proibido de entrar no território do seu Estado".
O parlamentar destaca ainda ao Artigo 7 do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, segundo o qual a "deportação ou transferência forçada de populações" é um crime contra a humanidade e acarreta responsabilidade criminal internacional.
"Portanto, o objetivo do decreto de Putin é um: intimidar e pressionar a população ucraniana nos territórios temporariamente ocupados, a fim de obter documentos no estilo russo. As ações do Kremlin contradizem as normas do direito internacional e receberão uma avaliação adequada no Tribunal Penal Internacional", diz Lubinets em publicação no Telegram.
De acordo com o comissário, na prática, a ação da Rússia pressupõe que uma pessoa que viveu desde o seu nascimento em sua terra natal pode se tornar um estrangeiro nessa terra da noite pro dia.
"Enfatizo que a Ucrânia não reconhece o passaporte forçado nos territórios ocupados temporariamente, não reconhece a aquisição automática forçada de outra cidadania por ucranianos neste território, e isso não é motivo para perder a cidadania ucraniana", completa
Autoridades ucranianas não têm consenso na orientação a cidadãos
Contudo, não há uma posição unificada na arena política ucraniana sobre como reagir à medida russa. Autoridades da Ucrânia divergem sobre a orientação aos cidadãos ucranianos de como proceder perante a autoridades russas nas regiões ocupadas.
Em particular, há uma discussão pública sobre esta questão entre o comissário para os Direitos Humanos, Dmytro Lubinets, e a vice-primeira-ministra do país, Irina Vereschuk. O primeiro defende que, chegando perto do prazo apontado pelo decreto, os cidadãos ucranianos adotem a cidadania russa nesses territórios para que eles não sejam expulsos.
"Na verdade, acho que todos os cidadãos da Ucrânia que recusarem um passaporte russo serão simplesmente presos. E esta será uma categoria separada de reféns civis que a Federação Russa manterá […] Aconselho vocês a tirar um passaporte russo, pois o mais importante é tomar a decisão de sobreviver. Entendemos que isso acontece sob pressão, pressão física. Portanto, pegue o passaporte, sobreviva, espere até libertarmos este território. Depois disso, uma lei apropriada está sendo elaborada, para renunciar oficialmente a este passaporte e retornar à vida normal", disse ele, citado pelo jornal Ukrainska Pravda.
Já a vice-primeira-ministra da Ucrânia, Irina Vereschuk, recomenda não adotar essa cidadania. "Eles querem que os ucranianos se tornem russos ou deixem os territórios temporariamente ocupados. Primeiro, é impossível transformar ucranianos em russos. Passaporte forçado ou repressão não ajudará", declarou Vereschuk em seu canal no Telegram.
Segundo ela, no dia 1º de maio, o Ministério da Reintegração dos Territórios Ocupados da Ucrânia apelou ao lado russo e ao Comitê Internacional da Cruz Vermelha com a exigência de abertura de corredores humanitários para que os ucranianos pudessem se deslocar ao território controlada por Kiev.
Para o cientista político Ruslan Bortnik, é compreensível que, do ponto de vista da desocupação dessas regiões e da manutenção dos movimentos de resistência ucranianos nestes territórios, é desejável para a Ucrânia que "essa população pró-ucraniana permaneça lá".
"A Ucrânia não tem interesse que a população pró-Ucrânia seja expulsa destes territórios, porque isso pode enfraquecer as estruturas de inteligência ucraniana, as possibilidades de desocupação", argumenta.
Por outro lado, o analista afirma que, do ponto vista público e político, a adoção em massa da cidadania russa terá um efeito retórico para o lado russo, já usado anteriormente na região de Donetsk e Lugansk a partir de 2014, de afirmar que estes territórios são habitados majoritariamente por russos. Vale notar que a principal justificativa para a intervenção russa na Ucrânia tem como base a ideia de defender sua população no espaço pós-soviético.
O que torna o imbróglio identitário e territorial no leste ucraniano ainda mais profundo é o fato de que a Rússia não possui controle total das regiões anexadas. Parte delas ainda são dominadas pelos militares ucranianos. Em particular, as Forças Armadas da Ucrânia retomaram o controle da cidade de Kherson em novembro de 2022.
Para Ruslan Bortnik, o processo de "passaportização" é mais um sinal de que "a Rússia só sairá desses territórios se ela for expulsa por meio da força, de que ela não pretende sair destes territórios voluntariamente". Dessa forma, o cientista político afirma que "a Rússia reprime o movimento de resistência e formula um argumento para futuras negociações políticas".
"Se a Rússia conseguir manter esses territórios por meio da força militar, de qualquer maneira no futuro haverá negociações entre a Ucrânia e a Rússia, ou entre Rússia e o Ocidente, em relação ao futuro da Rússia e da Ucrânia. Isso pode não acontecer rapidamente, pode ser daqui a muitos anos. Então, assim como na Crimeia, em Donetsk e Lugansk, a Rússia vai apelar com o fator da cidadania e questão étnica das populações desses territórios, como argumento sobre porque esses territórios devem ser mantidos e fixados à Rússia", completa.
Edição: Thales Schmidt