A proposta de novo marco fiscal, em discussão no Congresso Nacional, mantém intocado algo essencial a ser enfrentado para o desenvolvimento do país, que são os gastos escorchantes com os serviços da dívida pública. Esses gastos deveriam, do ponto de vista técnico, ser o centro de qualquer política de caráter fiscal, visto que as despesas com pagamento de juros e amortizações, no ano passado, chegaram a R$ 780 bilhões, segundo análise da Auditoria Cidadã da Dívida (ACD).
Se poderia perguntar: mas a equipe técnica do Ministério da Economia desconhece essa centralidade do problema da dívida pública, cujos gastos alcançam praticamente metade do orçamento federal, acima de todos os itens de despesas primárias individualmente? Afinal, uma análise mais atenta nos leva a concluir facilmente que esse é o centro do problema fiscal. Por que o governo concentra seus esforços de controle nos gastos primários, que são uma fração muito menor do orçamento, e essencial para a esmagadora maioria do povo, que depende de saúde, educação, segurança, estradas, bolsa família etc.? Na realidade, tudo indica que se trata de um problema de avaliação da correlação de forças.
O governo avalia que não tem força suficiente para enfrentar os banqueiros e outros especuladores, especialmente nesse momento, em que são muitas as frentes de conflitos e enfrentamentos. Nessa avaliação, por ora, o governo não conseguiria enfrentar esse segmento, que, reconhecidamente, é muito forte. Não por acaso, nunca foi enfrentado de forma decidida. Os governos que tentaram reduzir os privilégios dos rentistas pagaram um preço elevado pela decisão. Por exemplo, quando sob a gestão do ministro da fazendo Guido Mantega, a taxa de juros reais caiu expressivamente, aproximando-se dos níveis praticados internacionalmente, os banqueiros cerraram fileiras, e investiram muito na oposição ao governo Dilma Roussef. O restante da história, todos conhecemos.
:: Governo anuncia medidas para expandir crédito e dobra valor que não pode ser penhorado ::
O setor público consolidado - formado por União, estados, municípios e empresas estatais - em 2022 apresentou superávit primário de R$ 125,9 bilhões, 1,28% do Produto Interno Bruto (PIB). Mas quando se coloca na conta os gastos com a dívida pública, R$ 780 bilhões, o país apresenta um déficit nominal gigantesco. Ou seja, por qualquer ângulo que se olhe o problema fiscal, conclui-se que o problema central são os gastos com a dívida pública, que não tem comparabilidade internacional.
Para efeitos comparativos, os juros anuais da dívida federal dos Estados Unidos em 2022 chegaram a US$ 853 bilhões, superior ao orçamento militar do país, que foi de US$ 847 bilhões no ano passado (de longe, o mais elevado do mundo). Com a elevação das taxas de juros (na média de 4,5%, um terço da brasileira), os gastos com a dívida subiram significativamente. Em janeiro o governo atingiu o limite legal de endividamento (US$ 31,4 trilhões) e vem utilizando manobras contábeis para pagar as demais contas públicas. Se isso acontecer, claro, os efeitos serão catastróficos e de repercussão mundial, dado o peso da economia norte-americana no conjunto.
Mas o peso dos juros no orçamento público norte-americano é muito inferior ao do Brasil em termos proporcionais. O orçamento fiscal dos EUA em 2022 foi de US$ 6 trilhões, sendo que os gastos com juros equivaleram a cerca de 14% do orçamento, muito abaixo do Brasil. A taxa de juros dos EUA, apesar de ter aumentado significativamente no ano passado, ainda é negativa, ou seja, inferior à inflação (que está em torno de 6,5%). Enquanto o Brasil pratica juros reais básico de 8%, em 90% dos países do mundo, neste momento as taxas de juros são inferiores à inflação, isto é, são negativas.
:: Austeridade e desmonte: prejuízos deixados por Bolsonaro seguem desafiando o Brasil ::
A PEC da Transição garantiu ao orçamento federal o montante de R$ 145 bilhões, por fora do teto de gastos, em 2023 e 2024. O valor está sendo destinado ao Bolsa Família e para outras áreas sociais como saúde, combate à pobreza, educação etc. O presidente Lula e sua equipe tiveram que enfrentar um acalorado debate depois das eleições, inclusive com economistas ligados aos banqueiros, em nome de uma suposta "saúde fiscal" do Brasil. No entanto, sem nenhum debate ou justificativa pública, os gastos do governo federal com o pagamento de juros e amortizações da dívida pública em 2022 foram de R$ 1,879 trilhão, 46,3% do Orçamento Federal Executado, ou seja do pago, como mostra ester artigo.
O aspecto impressionante é que, mesmo tendo o governo brasileiro pago essa fortuna em nome dos serviços da Dívida Pública Federal, ela aumentou R$ 464 bilhões no ano passado, quase meio trilhão de reais, tendo chegado aos R$ 8,1 trilhões atuais. É simplesmente um saco sem fundos. Somente o aumento do estoque da dívida no ano passado equivale a quase três vezes o valor previsto para o Bolsa Família para este ano (R$ 176 bilhões), programa que tira da fome 23% da população brasileira. O sistema da dívida é um sistema de extorsão de dinheiro público, que esfola o povo em benefício dos rentistas. Sem legalidade e sem fundamento técnico.
O crescimento do estoque da dívida, mesmo com pagamento de somas astronômicas na forma de juros todo ano, neste momento se explica pela elevação acelerada da Selic pelo Banco Central, que está em 13,75% desde agosto de 2022 (a taxa foi mantida na última reunião do Comitê de Política Monetária, em 3 de maio). Como dito, o valor estimado dos juros em 2022 foi de, no mínimo, R$ 780 bilhões. Não existe nenhuma transparência nesses números. Essa estimativa conservadora, feita pela Auditoria Cidadão da Dívida (ACD) (que, conforme a organização explica, sequer considera os juros decorrentes de novas dívidas surgidas em 2022) é feita com dados oficiais, aplicando-se a taxa média de custo da dívida, divulgada pelo Tesouro Nacional (10,21% a.a.) pelo valor do estoque da dívida federal no final de 2021 (de R$ 7,6 trilhões). Segundo a Auditoria Cidadã, grande parte dos juros tem sido indevidamente registrada como se fosse amortização, conforme tem sido denunciado pela organização desde a CPI da Dívida Pública realizada na Câmara dos Deputados (2009/2010).
O gasto com juros no Brasil, R$ 780 bilhões de reais, apenas em 2022, daria para:
a. multiplicar por 4,4 os gastos previstos com o Bolsa Família, que neste ano serão de R$ 176 bilhões. Daria para pagar R$ 3.102,00 para cada um dos brasileiros que recebe o benefício;
b. zerar o déficit habitacional no Brasil. Atualmente, no país, existe um déficit habitacional de cerca de 5,8 milhões de moradias, conforme os dados oficiais. Com os juros pagos no ano passado daria para fazer 6,5 milhões de moradias 4 populares (ao preço de R$ 120.000,00). Ou seja, com um ano de gastos com os juros da dívida pública se resolveria o secular problema do déficit habitacional do país, com sobras.
:: Fim de isenções será chave para nova regra de investimentos em saúde e educação, diz Haddad ::
Tentando justificador o assalto que os rentistas fazem à população brasileira todos os anos, em audiência solicitada pelo Congresso Nacional, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, afirmou que existem cinco milhões de pessoas físicas no Brasil que se beneficiam dessa política de juros nas alturas, que está na contramão do que acontece no mundo. Mas o Brasil tem 220 milhões de brasileiros. O Banco Central retira do orçamento da União quase 1 trilhão de reais, todo ano, para encher os cofres de 2% da população, grupo formado de milionários e bilionários.
Se for verdadeiro esse número, ele vem engrossado por pessoas que têm, talvez 10, 15 ou 20 mil reais em títulos do governo, trabalhadores de classe média que compram títulos para fazer uma poupança para a velhice. Na realidade, sabe-se que os valores pagos aos rentistas são concentrados em um grupo muito reduzido de milionários - talvez algumas centenas de milhares - que levam a parte do leão dos lucros financeiros.
O valor total das receitas do governo federal previsto para 2023 é de aproximadamente R$ 5,3 trilhões. Destes, cerca de R$ 2 trilhões são destinados ao pagamento dos juros e encargos da dívida pública federal e em torno de R$ 213,9 bilhões vão para investimentos. Ou seja, o que está previsto para ser investido em estradas, energia, infraestrutura, postos de saúde etc. neste ano, corresponde a cerca de 10% dos gastos públicos com meia dúzia de banqueiros.
Os capitalistas no Brasil investem pouco porque o melhor negócio do país é colocar o dinheiro na especulação financeira. Não precisa contratar trabalhadores, comprar matéria prima, obter licença ambiental, não tem delegacia do trabalho, e são garantidos juros reais de 8% ao ano. É um verdadeiro presente de Natal, com a diferença que vem todo dia. Ou seja, os juros "fora da curva" praticados no Brasil, além de comprometerem as finanças públicas e arrancar o couro dos brasileiros, desestimulam o investimento privado. O dinheiro dos capitalistas e da classe média que tem algum recurso vai todo para a especulação.
:: Teto de Gastos x Novo Arcabouço: entenda as principais diferenças entre as regras fiscais ::
A responsabilidade fiscal vale apenas para a população pobre do país. A taxa de juros exorbitante e esses pagamentos insuportáveis são o grande nó fiscal do país, que deve ser desatado. Não tem sentido estabelecer mecanismos rígidos de controle de gastos públicos primários, em um período em que a economia brasileira está completamente parada, e ao mesmo tempo manter a torneira aberta para o pagamento de juros aos especuladores.
É uma evidente desigualdade no tratamento do orçamento público, que é extremamente restrito para a população pobre e completamente liberado para o segmento mais rico da população, que está no topo da pirâmide de renda. A dívida é um mecanismo infinito de exploração da maioria, que deveria ser denunciado e enfrentado, juntamente com a população. O custo fiscal dessa política de juros do Banco Central é gigantesco, enfrentá-lo é pré-requisito para o desenvolvimento do país.
* José Álvaro de Lima Cardoso é economista.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Thalita Pires