Na última terça-feira, 9 de maio, foi celebrado na Rússia o Dia da Vitória, importante feriado no país que comemora a vitória contra a Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial. A data possui um forte simbolismo histórico e patriótico no país, considerando que o número de soldados e civis que morreram na União Soviética por conta da guerra é de cerca de 27 milhões.
Mas além de ser um dia de celebrar a memória da vitória sobre o nazi-fascismo, o feriado tem sido uma forma da Rússia engajar o espírito nacionalista no país e, com o início da guerra na Ucrânia, justificar a intervenção militar na nação vizinha.
No ano passado, as celebrações do 9 de Maio já haviam sido marcadas por grande expectativa em torno do significado do Dia da Vitória no contexto da guerra da Ucrânia, que havia sido iniciada cerca de três meses antes. Na ocasião, todas as atenções estavam voltadas para o discurso do presidente, Vladimir Putin, na Praça Vermelha. Não houve anúncios decisivos sobre a guerra, mas o líder russo evocou a vitória soviética sobre o nazismo para reforçar a narrativa do Kremlin sobre a atual campanha anti-Ocidente e contra a Ucrânia.
Este ano não foi diferente. No entanto, o 9 de Maio trouxe à tona o reflexo da situação política e militar da Rússia em torno da guerra da Ucrânia. Em entrevista ao Brasil de Fato, o cientista político e escritor Mikhail Sheitelmen afirma que a data comemorativa escancarou o desgaste das tropas russas, bem como o aprofundamento da propaganda ideológica do Kremlin para o público interno.
Tradicionalmente usada para demonstrar o poderio bélico russo, a parada militar foi marcada como uma das mais discretas dos últimos anos. Por conta dos ataques de drones ocorridos no Kremlin às vésperas do Dia da Vitória, em 3 de maio, as comemorações chegaram a ser canceladas em diversas regiões por “motivos de segurança”. Além disso, foi destacada a curta duração do desfile em Moscou e a escassa presença de equipamentos militares.
De acordo com o analista Mikhail Sheitelman, ficou evidente o desgaste técnico-militar russo, considerando que grande parte do potencial bélico do país foi enviado para a Ucrânia ou foi destruído. “A primeira coisa que o Exército russo mostrou é que, materialmente, não possui mais muito equipamento militar, não sobrou muita coisa para mostrar no desfile”, aponta.
Já no discurso do presidente Vladimir Putin e, em particular, na cobertura oficial que o evento teve na mídia russa, foi intensificado o paralelo entre a luta com o nazi-fascismo na Segunda Guerra Mundial com a narrativa de uma suposta ameaça do Ocidente aos valores e à integridade da Rússia.
“Hoje, a civilização está novamente em um ponto de virada decisivo. Uma verdadeira guerra foi desencadeada contra nossa pátria, mas lutamos contra o terrorismo internacional. Também protegeremos o povo de Donbass e garantiremos nossa própria segurança”, discursou.
“O objetivo deles [Ocidente], e não há nada de novo aqui, é alcançar o colapso e a destruição de nosso país, riscar os resultados da Segunda Guerra Mundial, finalmente quebrar o sistema de segurança global e o direito internacional, e estrangular quaisquer centros soberanos de desenvolvimento”, acrescentou.
No que concerne a cobertura do evento na mídia russa, o cientista político Mikhail Sheitelman observou que de um ano pra cá houve uma mudança drástica no tom e na retórica referente à parada militar. Segundo ele, voltada para o público interno, a televisão revelou o componente ideológico do Kremlin ao dar protagonismo aos soldados que participaram ou que ainda vão participar dos combates na Ucrânia durante o desfile.
“No ano passado, a parada teve praticamente o mesmo formato dedicado à Segunda Guerra Mundial, ou a Grande Guerra Patriótica, como é chamada na Rússia, e, em algum momento, de maneira escorregadia, Putin falou que aqueles soldados também estão em combate em Donbass. Agora, simplesmente a cada frase conectava-se a Segunda Guerra Mundial com a atual, a primeira chamada de Grande Guerra Patriótica e a segunda de Operação Especial Militar”, explica.
“Então o objetivo da parada militar para o público interno era conectar a vitória do passado com a guerra do presente. Afirmar que a guerra atual não é menos sagrada. Esse é o aspecto ideológico”, acrescenta.
Ucrânia troca Dia da Vitória por “Dia da Europa”
Com o prolongamento da guerra na Ucrânia, o Dia da Vitória deste ano também ilustrou o aprofundamento da ruptura entre Moscou e Kiev. A Ucrânia tradicionalmente seguia as comemorações de acordo com o calendário soviético, mas este ano foi decidido que as celebrações oficiais do Dia da Vitória aconteceriam no dia 8 de maio, reproduzindo a data comemorada na Europa. Coincidentemente, a data de 9 de Maio também é celebrada como o Dia da Europa – ou o Dia da União Europeia -, para celebrar o avanço da proposta de uma entidade que unisse a Europa.
Nesse contexto, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, assinou um decreto segundo o qual em 9 de maio o país celebrará o Dia da Europa. O líder ucraniano também apresentou um projeto de lei à Verkhovna Rada (parlamento ucraniano) com a proposta de celebrar o dia 8 de maio como o Dia da Memória e da Vitória (sobre o nazismo na Segunda Guerra Mundial). A medida foi encarada como um gesto simbólico de afastamento da Rússia e inclinação ao Ocidente por conta da guerra iniciada no país.
A decisão de Zelensky fomentou ainda mais o tom severo dos analistas pró-Kremlin em relação à Ucrânia, que ecoaram a narrativa russa de estabelecer um paralelo entre a luta contra o nazi-fascismo da Segunda Guerra Mundial com o governo de Kiev.
O cientista político russo e notório defensor das políticas de Putin, Serguei Markov, afirmou que as autoridades ucranianas abandonaram o feriado da vitória sobre o fascismo em 9 de maio porque seriam “herdeiras do fascismo”. Em postagem no seu canal do Telegram, Markov, publicou que “o regime fantoche pró-fascista roubou dos cidadãos da Ucrânia o direito de celebrar a vitória sobre o fascismo e, em vez disso, os faz glorificar os fascistas ucranianos”.
Já no plano da política internacional, as celebrações do Dia da Vitória também serviram de parâmetro para identificar o grau de influência e de isolamento da Rússia no mundo. Sete chefes de Estado da CEI (Comunidade de Estados Independentes) estiveram presentes nas celebrações do Dia da Vitória. Além do presidente bielorrusso, Alexander Lukashenko, tradicional aliado de Putin, todos os líderes presentes eram da Ásia Central: Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão, Uzbequistão e Armênia.
Hoje, apesar do isolamento da Rússia em relação ao Ocidente e seus aliados, o cientista político Mikhail Sheitelman observa que é notório que a Rússia tenha conseguido reunir sete chefes de Estado da noite pro dia, considerando que o Kremlin havia declarado que não havia convidado chefes de Estado para a cerimônia.
"Eu acho que isso foi conquistado sem a influência da China. A China de fato poderia, a partir de seus próprios interesses, ter enviado esses líderes na condição de mediadores do seu plano de paz", especula.
Em anos anteriores, as celebrações do Dia da Vitória eram compartilhadas com dezenas de líderes mundiais que vinham a Moscou para celebrar a vitória soviética e dos aliados na Segunda Guerra Mundial. O ex-presidente dos EUA, George W. Bush, a ex-chanceler alemã, Angela Merkel, e o ex-secretário-geral da ONU, Kofi Annan, entre tantos outros, foram alguns nomes que já estiveram na Praça Vermelha comemorando junto com a Rússia. E ao lado de Vladimir Putin.
“Houve paradas em que o Exército ucraniano desfilou. Soldados franceses, britânicos, americanos, ucranianos, já marcharam na Praça Vermelha. Ou seja, foram anos que a Rússia fazia parte da comunidade internacional. Isso não foi há tanto tempo e foi sob a presidência de Putin, não foi com qualquer outro líder, tudo isso aconteceu com Putin”, completa Sheitelman.
Edição: Rodrigo Durão Coelho