No final da década de 1970 diversos movimentos populares e profissionais ligados à saúde mental passaram a fazer denúncias quanto ao tratamento de pacientes em hospitais psiquiátricos do Brasil. A partir dessas denúncias passou-se a questionar o cuidado com pessoas em sofrimento mental e a necessidade de uma reforma psiquiátrica foi colocada em questão.
Foi então que uma iniciativa empenhada pelo Movimento Sanitário e o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, que tinha a participação da população e de familiares de pacientes, passou a debater com a sociedade essas questões. Em 18 de maio de 1987, foi realizado o encontro que propôs a reforma psiquiátrica no Brasil e fez dessa data o Dia Nacional da Luta Antimanicomial.
Leia: Vozes Populares | Núcleo de luta antimanicomial em PE trava embate com comunidades terapêuticas
Após 36 anos, os desafios para o cuidado em liberdade permanecem e para entender um pouco mais sobre eles, o Brasil de Fato Pernambuco conversou com Ronaldo Pires, do Fórum Cearense da Luta Antimanicomial e da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (RENILA).
Brasil de Fato Pernambuco: Ronaldo, como surge o Dia Nacional da Luta Antimanicomial e qual a sua importância?
Ronaldo Pires: O dia da luta antimanicomial surge como um dia de celebração e também de afirmação política da luta pelos direitos humanos das pessoas com sofrimento mental. Ele surgiu principalmente a partir do movimento de luta antimanicomial com a organização dos trabalhadores que evidenciaram e denunciaram as violações que aconteceram nos hospitais psiquiátricos e se recusaram a ser coniventes com aquilo que acontecia nas instituições.
Nisso surge o movimento que marca o dia 18 como um dia importante de afirmar essas pautas, de dignidade ao tratamento das pessoas com transtorno mental e também acabar com o manicômio na sua estrutura física, mas também na sua estrutura relacional, na forma de mundo que o manicômio se atualiza, nos diferentes preconceitos, no racismo, LGBTfobia e na própria forma de vida capitalista que produz também o adoecimento e esse sofrimento no qual a gente está submetido.
Leia: Justiça confirma que comunidades terapêuticas não são espaços para crianças e adolescentes
Em 2001 é aprovada a Lei da Reforma Psiquiátrica, que determinou que a política de saúde mental no país passasse por uma transição, com o fechamento dos leitos em hospitais psiquiátricos e o desenvolvimento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Mas 22 anos depois, qual o cenário da RAPS?
O atual cenário é de subfinanciamento de uma rede que está abarrotada, porque a gente percebe que houve um aumento da demanda da população por serviços de saúde mental, principalmente após a pandemia, com todo o sofrimento que a gente viveu nos últimos anos, com a crise econômica que agrava também o sofrimento mental da população. É uma rede que não recebeu investimentos, que não foi ampliada de maneira suficiente e a gente convive com esses gargalos, com essas dificuldades imensas.
Apesar de todo o avanço de dispositivos que foram criados,a gente está ainda com uma rede subfinanciada, ainda muito restrita, que precisa chegar mais na atenção básica, fortalecer o serviço nos CAPs, um financiamento que precisa melhorar, precisa aumentar também. Então é uma situação onde a gente precisa reconstruir e ampliar essa rede que tem sido construída, que tem sido feita também com todas essas contradições de constituir dentro do Sistema Único de Saúde o acesso e o direito à saúde mental dentro do nosso país.
Em janeiro deste ano, o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) criou o Departamento de Apoio a Comunidades Terapêuticas, voltadas ao tratamento de pessoas que fazem uso abusivo de álcool e outras drogas. Essa criação foi bastante criticada pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos e organizações da luta antimanicomial. Por quê?
As comunidades terapêuticas têm sido criticadas porque elas têm sido palco de violações de direitos humanos. Isso não é uma mera opinião, isso está documentado em relatórios do Conselho Federal de Psicologia junto com o Conselho Federal de Serviço Social, que fizeram vistorias que estão documentadas. Tem um relatório também do IPEA, o Instituto de Pesquisa Econômicas Aplicadas, sobre irregularidades presentes nessas comunidades terapêuticas além de várias denúncias de usuários.
Quem trabalha nos serviços escuta muito os usuários falaram de maus tratos, de desrespeito às suas crenças, ao trabalho forçado dentro dessas instituições, então são instituições que não deveriam estar dentro da RAPS, mas foram colocadas de maneira totalmente errônea. Elas fogem aos princípios do SUS, não trabalharam com equipes multiprofissionais e não têm profissionais nesses serviços. Algumas até contratam alguns profissionais pra dar um ar de seriedade, mas grande parte delas têm sido alvo de inúmeras denúncias de usuários documentadas nos relatórios dos conselhos de classe, das instituições. É um erro permanecer colocando as comunidades terapêuticas dentro da Rede de Atenção Psicossocial.
Quais os desafios da luta antimanicomial hoje, pós governo Bolsonaro?
Os desafios são muitos. Eu acho que o primeiro é combater a mentalidade manicomial que foi muito difundida com o fascismo trazido pelo Bolsonaro, pelos seus representantes, por todos aqueles que ainda estão institucionalizados como deputados, senadores, difundindo ideias manicomiais, de desrespeito às diferenças, de formas preconceituosas. Então esse é um dos desafios muito grandes, principalmente pro campo antimanicomial.
E tem o desafio também de reconstruir essa rede, de ampliar esses pontos de atenção pra garantir o acesso à população. Eu trabalho em um serviço onde a gente percebe que cotidianamente as pessoas tem dificuldade de acessar atendimentos por conta do excesso de demanda, então a gente precisa ampliar, a gente precisa reconfigurar esses serviços para atual situação sanitária da população.
Leia também: Recife investiu quase R$ 4 mi em Comunidades Terapêuticas e nada no serviço equivalente do SUS
Fonte: BdF Pernambuco
Edição: Vanessa Gonzaga