O Brasil completa 36 anos de luta antimanicomial neste 18 de maio, mas, apesar dos avanços conquistados no período, a internação de crianças e adolescentes segue um desafio para o país. O movimento histórico tem como um dos principais resultados a lei da Reforma Psiquiátrica, de 2001. No entanto, as garantias previstas no texto parecem não alcançar a população jovem no mesmo ritmo.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a psicóloga e pesquisadora em psicologia social Flávia Blikstein aponta que existe uma defasagem no campo da atenção a essa população. "Historicamente, temos na história do cuidado com a infância esse processo de institucionalização bastante presente. Aquelas crianças consideradas - entre muitas aspas - anormais, na nossa história, desde que surge esse conceito de anormalidade na infância, surge a institucionalização. O que a prática de cuidado faz é retirá-las, colocá-las na exclusão."
Quando a lei da reforma foi promulgada, o Brasil tinha largo histórico na internação pessoas com doenças mentais. Mais de 100 mil cidadãos e cidadãs chegaram a essa condição, o maior número de toda a América Latina. A norma trouxe uma mudança de paradigma ao determinar que a atenção em saúde mental deveria ser realizada por uma rede de cuidados, afastando-se do enfoque na institucionalização e nos manicômios.
No entanto, em 2013, Flávia Blikstein, em sua dissertação de mestrado intitulada Destino de crianças - Estudo sobre as internações de crianças e adolescentes em Hospital Público Psiquiátrico, revelou que as internações de crianças e adolescentes persistiam, mesmo mais de dez anos após a lei.
Alguns anos depois, em 2019, ela publicou novo trabalho alertando para a persistência do asilamento como prática de cuidado em saúde mental para crianças e adolescentes. A tese de doutorado Políticas públicas em saúde mental infantojuvenil e filantropia analisou o modelo filantrópico predominante na área e as internações de longa duração em instituições para pessoas com deficiência.
"O que eu pude ver nas minhas pesquisas é que essa institucionalização da infância se prolonga para a vida adulta. São crianças que entram nas instituições de acolhimento da pessoa com deficiência e nunca mais saem", alerta.
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No mestrado, Blikstein notou que a maioria dos casos ocorreu por determinação judicial ou por meio de serviços de saúde. Muitas situações contrariavam tanto as normas da Reforma Psiquiátrica quanto do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Prevalecia uma lógica de encaminhamento, sem foco na atenção em rede. Além disso, a falta de serviços regionalizados nos territórios e comunidades reforçava as internações ocorridas sem ordem judicial.
Os estudos da pesquisadora mostram que as políticas implementadas não têm conseguido resolver o problema, levando à segregação e exclusão em vez de promover a inclusão social. A falta de ações intersetoriais, a escassez de dados e a ausência de regulação de instituições também foram apontadas como questões críticas.
"É um modelo que se demonstrou ineficiente. Defendemos exaustivamente a possibilidade dos diferentes modos de ser humano. É um direito que possamos ser como somos e que o adoecimento não implique na nossa absoluta exclusão social. No caso das crianças e adolescentes isso é mais grave porque a internação repercute na exclusão da escola, da convivência familiar e comunitária."
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Na tentativa de colaborar com a superação desse cenário, a Rede Nacional de Pesquisas em Saúde Mental de Crianças e Adolescentes (RedePq-SMCA) elaborou um documento público que foi encaminhado no mês passado ao Departamento de Saúde Mental e Enfrentamento ao Abuso de Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde. Ele traz a contextualização das conquistas e dos desafios e proposições para a mudança.
"Este momento de retomada da própria política, é um momento fundamental de colocar a infância, tal qual está prevista na nossa Constituição, como prioridade. É importante que a gente tome esse fato como um norte das nossas ações. As crianças continuam internadas, portanto, precisamos agir para que isso não aconteça, já que isso é uma violação de todo o tamanho", ressalta Flávia Blikstein.
Leia a entrevista na íntegra a seguir ou ouça no tocador de áudio abaixo do título desta matéria:
Brasil de Fato: Na sua tese de mestrado você observava que a internação de crianças e adolescentes ainda era uma realidade no Brasil, apesar dos avanços do movimento antimanicomial, da lei da reforma psiquiátrica e até mesmo do Estatuto da Criança e do Adolescente. Por que o Brasil parece não aplicar às futuras gerações a mesma lógica de tentativa de avanço?
Flávia Blikstein: Essa também foi a pergunta que me tomou quando fui fazer a pesquisa. Justamente porque a reforma psiquiátrica deixou claro que o modelo asilar é ineficaz e ineficiente. Ele não promove melhora se pensarmos na questão do adoecimento e muito menos na qualidade de vida. É um modelo fracassado. Me veio também essa questão: se é evidente que a institucionalização não traz benefícios, e se estamos pensando na desinstitucionalização e na saída das pessoas do contexto manicomial, e a porta de entrada? Essas crianças continuam entrando.
Historicamente, temos, na história do cuidado com a infância, esse processo de institucionalização bastante presente. Aquelas crianças consideradas - entre muitas aspas - "anormais", na nossa história, desde que surge esse conceito de anormalidade na infância, surge a institucionalização. O que a prática de cuidado faz é retirá-las, colocá-las na exclusão. Vamos vendo o surgimento de muitas instituições especializadas para a infância, nessa perspectiva de que a criança tem uma determinada necessidade. Ela era então encaminhada para uma instituição específica e a escola acabou ficando o lugar daqueles considerados normais.
A história desse campo da saúde mental na infância é marcada por esse início da exclusão. Então, é uma construção contrária pensar na garantia de direitos, no tratamento e na liberdade para a infância. O que percebemos é que, em relação ao campo do adulto, temos uma defasagem. Digamos, que a reforma psiquiátrica olha para a infância um pouco depois do que olha para o adulto.
Por isso mesmo, eu compreendo que este momento de retomada da própria política é um momento fundamental de colocar a infância, tal qual está prevista na nossa Constituição, como prioridade. É importante que a gente tome esse fato como um norte das nossas ações. As crianças continuam internadas, portanto, precisamos agir para que isso não aconteça, já que isso é uma violação de todo o tamanho.
Em 2019, no seu doutorado, as coisas não pareciam ter mudado muito. A institucionalização ainda era recorrente e ela estava muito atrelada a instituições filantrópicas, que não atuavam em rede, não tinham regramento específico. Além disso, a falta de dados sobre o tema também foi apontada como um problema. Esse cenário, em 2023, ainda existe?
Sim, ainda existe. Essa é uma questão fundamental, porque só conseguimos desenhar políticas públicas a partir de informações. Neste campo da infância, percebemos uma dificuldade real em rastrear, encontrar e qualificar como tem sido a atenção. De fato, o cuidado com a infância permaneceu, durante décadas, feito pela filantropia. E aí nós temos toda a formulação de direitos, do ECA e de políticas públicas. Mas ainda hoje, deixamos esse cuidado com a infância nessa rede paralela, filantrópica e particular.
O grande desafio é justamente como ampliar. Se pensarmos no campo da infância, é um campo interdisciplinar. Essa rede que compõe a infância precisa da articulação de muitos atores. Se esses atores não se articulam, o resultado é que não conseguimos responder às necessidades dessa criança. Quando não conseguimos responder às necessidades dessa criança, surge a necessidade da institucionalização, porque aqui no mundo ela não tem o que precisa. Então, a institucionalização é promovida, não pelo quadro ou pela situação da criança, mas sim pela desarticulação da rede.
Temos que pensar que no campo da infância não há exceção. Não há nenhum tipo de exceção no ECA que diga que a criança tem direito à educação, exceto se ela falar, gritar, cuspir. Não há exceção no campo da infância. O compromisso ético da sociedade é como os adultos vão garantir aquilo que nós mesmos definimos como o direito da infância, que é a inclusão de todas as crianças. Enquanto continuarmos funcionando numa lógica de exceção, incluindo apenas alguns, mas excluindo outros, não é uma atitude de cuidado, mas sim de tutela e violação dos direitos da população.
Quais são os impactos da falta de dados?
O campo da infância fica entre o público e o privado, entre o público e o filantrópico. Isso dificulta enormemente que tenhamos acesso aos dados. Os campos da saúde mental e da deficiência intelectual são absolutamente interligados. Crianças consideradas deficientes intelectuais e aquelas que foram institucionalizadas ocupam os mesmos espaços. Mesmo os levantamentos de moradores psiquiátricos adultos mostram uma população importante com deficiência intelectual.
Nesse vácuo vão surgindo muitas instituições e nós não conseguimos mapear, entender quais são as práticas de cuidado, quem são as crianças que estão nessas instituições e o que elas precisam. Nós tivemos aqui no estado de São Paulo o censo dos moradores de hospitais psiquiátricos, que levantou informações fundamentais para a gente promover a desinstitucionalização. Mas, no caso da infância, não temos esses dados.
O que eu pude ver nas minhas pesquisas é que essa institucionalização da infância se prolonga para a vida adulta. São crianças que entram nas instituições de acolhimento da pessoa com deficiência e nunca mais saem. Ou então crianças que vão para instituições especializadas e que não têm articulação com a rede pública ou com outros equipamentos públicos.
Que exemplos atuais podem ser citados e que apontam para o constante foco na institucionalização?
Não consigo te dizer em dados porque eles não existem. Mas nós formamos a Rede Nacional de Pesquisa em Saúde Mental para Crianças e Adolescentes, que são 26 universidades, com pesquisadores que se debruçam sobre essa temática, para justamente tentar levantar dados e informações sobre esse campo. Nos últimos anos, o que percebemos é que os equipamentos são insuficientes do ponto de vista da saúde mental. Vemos pouca articulação nesse sentido de ações intersetoriai, que precisam, sem dúvida, de um incentivo para que aconteçam e para promover a inclusão social.
Especialmente no campo do autismo tem um vácuo assistencial. Não há esse empenho importante de financiamento, custeio e de implantação de serviços e ações e as famílias vão em busca de atendimento. Temos visto, na última década principalmente, que os governos têm respondido essa demanda dos familiares com a implantação de serviços especializados na clínica do autismo. Temos que ficar bastante atentos, justamente porque não há tipificação, regulamentação. Cada uma dessas instituições vai funcionando de uma maneira e é um cenário que vem se ampliando.
É um cenário que vem se ampliando, mas isso não vem acompanhado de uma regulamentação. Isso não vem acompanhado de uma previsão de como essa população se articula ao SUS. Essa resposta pode vir tanto no campo da justiça, pela judicialização do tratamento, ou pelo próprio Estado. Ao invés de fomentar a rede pública, tem implantado essas instituições que nos remontam um pouco às as instituições especializadas do início do século passado.
Não temos informações sobre todas, como eu disse, mas temos tomado conhecimento de que partem de uma premissa de que toda pessoa autista precisa da mesma coisa. Ficamos bastante preocupados também com as formas de financiamento dessas instituições, que podem se vincular ao público ou podem ser pelos convênios. São muitas questões que não podem passar despercebidas.
A Rede tem chamado atenção para a urgência de olharmos para essa realidade, tipificar essas instituições e de fato enxergar quais são as instituições que atendem as crianças e adolescentes com questões de saúde mental. As crianças sofrem e precisam de atenção e cuidado. Essa necessidade de atenção e cuidado não pode representar a exclusão delas.
Por que é tão importante substituir essa lógica por uma dinâmica de atuação em rede?
A primeira resposta é que a pessoa com necessidade de tratamento não pode ser privada de liberdade por uma necessidade de saúde. Se compararmos essa especialidade com outras fica mais fácil entender. Se você tem uma questão cardíaca, você precisa de um tratamento, e isso significa que você então vai ser internado no hospital e não vai sair de lá para o resto da sua vida, porque você tem uma questão cardíaca?
Essa comparação pode nos ajudar a pensar que a psiquiatria é uma especialidade médica, a saúde mental é um campo de atuação e o adoecimento mental não pode representar a privação de liberdade. É inconstitucional. Por isso que clamamos por tratamento em liberdade.
Além disso, se olharmos para o que aconteceu com quem internamos, essas pessoas não melhoraram. Os sintomas das suas questões não foram sanados. Na verdade, o que produzimos foi um contingente importante de pessoas que tiveram seus vínculos rompidos, que tiveram sua liberdade tolhida, e que se tornaram uma população institucionalizada, que foi aos poucos perdendo sua autonomia e a capacidade de exercer a cidadania.
É, portanto, um modelo que se demonstrou ineficiente. Alguém pode constestar e dizer que estamos falando de locais horrorosos. E se for limpo e bonito, tiver um quarto? Mas a lógica é a mesma. Estamos falando de uma lógica de que, no mundo, precisam caber todos. Se no nosso mundo não cabem os autistas, quem precisa mudar é o mundo. É isso que vamos trabalhar nos territórios, nas comunidades, na sociedade.
Defendemos exaustivamente a possibilidade dos diferentes modos de ser humano. É um direito que possamos ser como somos e que o adoecimento não implique na nossa absoluta exclusão social. No caso das crianças e adolescentes isso é mais grave porque a internação repercute na exclusão da escola, da convivência familiar e comunitária. Portanto, ela fere uma porção de direitos garantidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
Edição: Nicolau Soares